[#18 OutraCozinha] Deixa desandar
Foi por um acaso que encontrei o 'Projeto Desandar'.
Parecia um perfil desses que a pessoa fotografa a roupa do dia, mas me chamou a atenção a cabeça cortada em várias imagens. Achei que faltava exibição.
A figura principal supostamente é a moça que repetidamente aparece, mas nem mesmo consigo identificar seu nome. Lendo as legendas vi que ela pega roupas, acessórios e toda a parafernália de se vestir de outras pessoas e experimenta se fantasiar. Cada semana usa as roupas de outro alguém. Há roupas de mulheres e de homens; há roupas claramente de tamanhos inadequados. Senti que ela apenas se fantasia.
Há registros dos encontros com os usuários originais das vestes, e eles trocam instruções sobre o "modo de usar", feito quem dá receita de como ser eu (outro).
Além das imagens, a artista escreve legendas que sintetizam suas sensações e sentimentos enquanto faz uso daqueles objetos, bem como reações que capta ao longo da performance. Fala as vezes dos cheiros, registra fotos das roupas ainda nos cabides, dentro do armário, esperando para se avivarem como um sonho no corpo do outro.

A performance pareceu tão provocativa porque me faz pensar sobre habitarmos nossa própria pele. O que faz com que eu seja eu? Como é ser alguém que faz determinadas escolhas, leva uma vida, gosta dessas cores? Que fantasias são essas que a gente habita? Que história estamos sempre contando sobre nós mesmos nas coisas mais miúdas?
Frequentemente penso sobre fantasias, sobre me sentir fantasiada em situações que são desconfortáveis, sobre ser eu mesma. Nunca me pareceu simples definir as coisas que sou e gosto, e, no entanto, quando vejo essas fotografias penso que talvez seja mais simples do que suponho. Somos o que vamos fazendo, a cidade que habitamos, as coisas que comemos, as microescolhas que vão se somando. A história de quem somos é aquela que vai se repetindo nos gestos mais banais: nas roupas que vestimos, nas combinações que fazemos, na vida que sem querer levamos.
A vida tem muito a ver com essa nossa capacidade de ficar bem com as coisas que tomamos emprestadas. Todos nós construímos nossa existência, esse conjunto de atos cotidianos, recorrentes e ainda assim imprevisíveis, entre cidades, pessoas e coisas que estão por aqui muito antes de chegarmos — e que continuarão entre nós depois que partirmos. Vários desses aspectos não agradam propriamente o nosso gosto, nos causam estranhamento, repulsa, certo constrangimento. E ainda assim, tentamos nos sentir à vontade com as coisas como elas são.
Se é possível se sentir outra vestindo roupas que não são nossas, ou em qualquer fantasia, também deve ser possível sentir-se outra com qualquer tentativa de mudar nosso cotidiano.
Fazer comida como outro é dessas tentativas cheias de faz-de-conta que nos permitem por ao menos algum tempo pensar como é viver uma vida alheia. É uma tentativa de estabelecer uma conexão, tensionando proximidade e distância (gosto, mas é a comida do outro), que nos faz oscilar entre a intimidade e o estranhamento. Fica aquele gosto de que não levo a vida do outro, não tenho o tempo que o outro tem pra cozinhar, e não uso ou nem tenho acesso a seus exatos ingredientes. Qualquer receita é um registro do outro, do seu modo de viver, do tempo que ele dispõe pra cozinhar, das habilidades e combinações que ele conhece, dos seus ingredientes mais comuns. Para incorporar o outro de fato é preciso tomar pra si as receitas, como quem coloca no corpo uma roupa que não é sua, e a incorpora nas sua vida cotidiana. Cozinhar é sempre uma performance.
Prato Principal — Desandar na cozinha
Fiz um prato indiano conhecido como Palak Paneer. É um creme de espinafre com cubos de ricota (palak é espinafre, paneer, um tipo de queijo caseiro que lembra nossa ricota).
Uma série de temperos são necessários. Improviso; não tenho todos nem se comprar. Parece tempero demais, fico inundada de sabor com a lista sem nem mesmo usá-la. Ponho cebola, alho, pimenta, cominho, feno grego, açafrão, assafétida, garam massala (que já é uma mistura de temperos!).
Também nosso espinafre não é que nem o deles. Nossa folha é áspera, meio dura. É originária da Nova Zelândia. Já o deles é uma folha bem macia, e cumprida.
Pra me sentir um pouco indiana acabei sendo um pouco eu: usei folhas de batata doce. Folha de batata doce é uma PANC — porque a gente usa as batatas, mas raramente se vê falando das folhas. É uma folha muito verśatil, saborosa, bem macia. Lembra bastante o espinafre indiano (que é o mesmo que existe na Europa).
Cozinho por 1min em água fervendo, escorro, coloco em água gelada. Faço isso porque essa folha tem um pouco de oxalato, partícula antinutricional que vai embora cozinhando em água. Nosso próprio espinafre tem oxalato, e raramente conheci alguém que tomava a precaução de aferventar antes de cozinhá-lo. Ninguém vai morrer se não fizer, mas acabo fazendo.
Refoguei os temperos na manteiga, pus um pouquinho de água pra bater com as folhas cozidas usando um mixer, e engrossei o creme com 2 colheres de sopa de natas e mais um tempo de fogão, até ficar na consistência que o prato tem na minha memória e nas fotos. Por último, a gente põe cubinhos de ricota. Poderia servir com arroz, mas comi com pão tipo naan, que improvisamos de fazer na frigideira. Não usamos talheres. Picoto pedaços de pão pra levar o creme à boca. As mãos e a casa ficam cheirando a tempero o resto do dia. Comer sem talheres faz a mão ganhar uma cor levemente amarelada, talvez pelo açafrão. A tinta custa a sair. Comer com as mãos é muito sensorial, e impõe uma relação com a comida tão mais íntima que o uso do talher. Me sinto jovem, uma criança brincando com o prato. A mesa parece mais divertida, e a quantidade de temperos parece desanuviar o peito, levando tudo o que parecia preso. Tudo ali me faz sentir leve.
Sobremesa
A propósito de desprender-se de si e se fazer em outro, nem sou muito de vídeos mas vi essa série sobre autoconhecimento chamada [Des]Encontros, cujo cenário é uma viagem à Chapada dos Veadeiros — Alto Paraíso de Goiás e gostei bastante. O episódio de abertura fala sobre sermos personagens, e como o cenário afeta quem somos: Alguns lugares funcionam como chaves; tá tudo ali dentro de você, mas as vocês você não consegue nunca trazer aquilo ali à tona, as coisas boas, maravilhosas, que você tem lá dentro. E alguns lugares é como se fosse a chave, você vai lá, pronto: abre tudo. Não é que está no lugar, está em você, mas ali ativa. (Geraldina Lombardi, escritora entrevistada na série)
Escrevi sobre comer a comida do outro e incorporá-la ao seu repertório um tempo atrás. Talvez você já tenha visto, mas pelo sim e pelo não, deixo aqui o link. Na história que conto, aproveito pra ensinar uma salada adocicada e bem fácil de beterrabas com lentilha que originalmente era iraniana, mas que acabei travestindo de minha.
Ando escrevendo mensalmente em um projeto chamado Mulheres que Escrevem sobre livros. Nesse mês, por um acaso, o que publiquei tem muito a ver com fantasiar-se e as sensações que se passam quando fazemos isso. Falei sobre a sensação de se sentir uma leitora e escritora impostora: é uma sensação que vem exatamente quando a gente acha que o papel que desempenhamos não está bom o suficiente e que nossa performance vai ser desmascarada. Além do que venho publicando por lá, sempre tem ensaios muito interessantes de várias autoras circulando nesse projeto, e vale a pena acompanhar.
Obrigada por continuar por aqui. Se quiser comentar, já sabe: me escreve.
Um abraço carinhoso,
Carla Soares