[#19 OutraCozinha] Faminto de afeto

Eu contei: eram 6 mesas além da minha em que alguém comia sozinho. Eu voltava de viagem, e Curitiba era a metade do caminho até minha casa. Depois de 8 horas de cadeiras entre aviões e aeroportos, ainda tinha pela frente mais 9 horas de viagem de ônibus. Curitiba era o meio do caminho, e eu ficaria por lá umas 4 horas. No interlúdio que separava minha aterrissagem na cidade e a partida do meu ônibus, fui andar pelo Mercado Municipal, que fica logo na frente da rodoferroviária. Vaguei por um tempo pelos corredores, admirando a beleza das frutas, a organização do lugar, e prestando atenção no que tinha disponível por ali. Comparava o tempo todo ao que eu, agora morando numa cidade do interior, tenho acesso. Pensava nas coisas que só existem por aqui, na proximidade que desenvolvi com os feirantes — que também são agricultores — e nas possibilidades que existem em cada contexto. Me perdia nesse tipo de pensamento, comparava coisas que nem deviam ser comparadas, mas isso organizava meu tempo livre e as coisas que eu via.
Ainda era cedo, e sentei pra esperar o restaurante abrir porque estava cansada. Quando me servi, observei outras 6 pessoas que comiam sozinhas como eu, todas em mesas próximas à minha. Sozinha, eu precisava me distrair com alguma coisa, nem que fosse com a solidão alheia. Eu não sei comer sozinha.
Sempre julguei meu incômodo com esse tipo de situação meio excessivo, porque afinal, fazendo ao menos umas três refeições diárias, as chances de hora ou outra eu precisar comer sozinha são muito grandes. As 6 mesas habitadas por pessoas sozinha naquela meia hora que fiquei no restaurante em Curitiba atestava isso. Achava que devia aceitar que cedo ou tarde todo mundo está fadado vai ter de se haver com a coisa; comigo não seria diferente, e eu devia era caçar jeito de aprender a lidar com isso.
Porém, a verdade é que eu evito esses momentos. Ligo pras pessoas, mesmo um pouco constrangida, com medo de incomodar, e convido pra comer. Quando morava sozinha, comia em frente ao computador, cercada por companhias que nunca eram físicas, mas que certamente estiveram sem saber conversando comigo em vários dos meus jantares. E nesse almoço em Curitiba, além de contar mesas unitárias, eu tinha um olho no prato e outro no celular. Acho que falhei em almoçar sozinha, mais uma vez.
Dias antes desse almoço solitário no mercado de Curitiba, eu lia The Lonely City — adventures on the art of being alone, da inglesa Olivia Laing. Nele Olivia olha pra obra de alguns artistas que ela admira e nos quais ela interpreta que a temática da solidão está presente. Ela assume uma leitura bem própria e corajosa, daquelas que faz a gente entrar no google com uma interrogação na cara pra conhecer ou rever as obras de que ela fala.
No entanto, seu movimento no livro é de entender essas obras, mas nunca separada de quem a produziu. Olivia Laing tenta entender que solidão foi vivida pra entender as manifestações que ela enxerga nas obras. Ela examina infâncias terríveis, que me pareceram completamente habitadas pelo sentimento de abandono. Fala sobre a experiência que várias dessas figuras tiveram de mudar de cidade em busca de não se sabe bem o quê, e de se encontrar completamente isoladas, perdidas. E embora quase sempre ela recorra a biografias e documentos esquecidos em bibliotecas e arquivos públicos pra falar da vida desses artistas, ela também não poupa a sim mesma: ela compara o tempo todo essas vivências com as suas experiências mais solitárias por Nova York, pra poder compor melhor de que cores são feitas esse sentimento.
Sentir-se sozinho, a autora conta, não tem muita relação com estar fisicamente sozinho, sem ninguém próximo. É por isso que a solidão na cidade é um tema que ela retoma o tempo todo. A vida urbana, apesar de tão densamente povoada pelo contato incessante com os outros, pode ser incrivelmente solitária.
Sentir-se sozinho é sentir-se privado de afeto, de relacionamentos íntimos, de pessoas com quem dividir profundamente seu cotidiano. A vida urbana constantemente nos faz ficar reservados, porque apesar da quantidade de pessoas, ou justamente por conta da quantidade enorme de pessoas, a gente precisa criar uma proteção contra essa avalanche de estímulos que é viver nas cidades. A gente não se relaciona com todo mundo a nossa volta porque isso é absolutamente impossível. Só é possível se filiar a pessoas escolhidas a dedo, que tem alguma coisa em comum pra dividir com a gente que seja menos óbvio que o fato de morarmos no mesmo lugar.
Encontrar quais vão ser os nossos critérios de afinidade, e como vamos achar as pessoas que atendem esses critérios, qualquer morador de cidade sabe: são questões tremendamente angustiantes que estamos sempre tentando responder, mesmo de forma involuntária.
Talvez justamente por estarmos tão acostumados com a vida urbana, cheia de solidão na sua gênese, a gente nem se dê conta do quanto o sentimento é pervasivo e dolorido. Quando nos sentimos solitários, Laing escreve, experimentamos uma espécie de hipervigilância de ameaças sociais. É bastante compreensível: ver-se sozinho significa que a gente tem de dar conta de tudo. De qualquer coisa que aparecer pelo caminho. Nada melhor do que redobrar o cuidado e inspecionar tudo o que vier pela frente.
Só que estar hipervigilante é cansativo. Além de exigir um alerta fora do comum, significa estar sempre com uma expectativa negativa das coisas, esperando que elas possam dar errado. Pressupõe também que os momentos de rejeição, grosseria e atritos com os outros fiquem girando dentro da nossa cabeça, remoendo o que deu errado pra evitar uma nova catástrofe. E, é claro, quanto mais a gente fica ali tentando digerir esse tipo de acontecimento passado ou antecipando os futuros, mais difícil é encontrarmos companhia: ficamos sobressaltados, com medo de nos relacionar com os outros e nos isolamos mais ainda.
É uma reação em cascata bastante perversa pra menosprezarmos. Mas nós menosprezamos. Achamos que podemos passar por cima desse tipo de sentimento. Eu nunca soube comer sozinha, mas não tem nada de estranho nisso. Não é como se alguém soubesse. A gente só finge que sabe, passa por cima, faz como dá, mas isso nunca significou qualquer coisa boa.
Pra não mostrar o tamanho da barriga vazia, a gente faz-de-conta que não está sempre faminto de afeto.
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Não se sentir compreendido, não ter abertura suficiente para falar, não saber como se colocar, se colocar mal, não saber usar as palavras certas, ser interrompido, não ser ouvido, não saber ouvir. Tudo isso são pequenas formas em que a solidão se torna concreta, e que nos lembram do quão precárias e imperfeitas são as nossas possibilidades de estar juntos, especialmente através da linguagem verbal. Restringir-se apenas a ela é um risco muito grande e é por isso que a gente se apega a tantas outras formas simbólicas. É por isso que a gente cultiva a arte, com todas as várias formas que ela pode assumir, pra tentar expressar o que for necessário; a gente se apega ao gesto, ao riso, ao toque dos corpos e ao modo como eles comunicam o que seria incomunicável de outros jeitos; e a gente se anima com os rituais, aqueles em torno da comida, da bebida, da festa, do calendário.
Querer ter companhia pra comer e ser nutrido também de afeto é um desejo sincero, humano e bastante compreensível. Estranho mesmo é sentir vergonha de desejar tanto isso.
O sentimento de solidão diz do nosso desejo de intimidade, mas relutamos em achar esse sentimento negativo porque se tornar íntimo de alguém não é simples. Dá um bocado de medo. É preciso se revelar um pouquinho, e contar daquilo que gostamos, acreditamos ou fazermos. Falar de si mesmo é arriscado: a gente se submete ao escrutínio do outro, e pode ser que não gostem do que vêem (ouvem, sentem), e a gente seja rejeitado. A vontade de ficar sozinho tem um pouco desse gosto, de querer se preservar pra não se ver sozinho de fato, de um jeito irremediável. É uma pergunta que todos nós nos fazemos, mesmo quando não a anunciamos em voz alta: Prefiro correr o risco de ser rejeitada ou de me sentir isolada? As duas opções são difíceis.
A gente ouve por aí que estamos vivendo uma crise de intimidade por conta da internet, do smartphone, e dos dispositivos tecnológicos. Espalham certo pânico falando das crianças que não sabem mais olhar nos olhos porque se acostumaram a só olhar os rostos pelas telas. Você já viu isso: aquela velha cena de duas pessoas sentadas à mesa, cada uma completamente obcecada com sua própria central brilhante de entretenimento. Elas estão num espaço público, mas parecem estar isoladas em cabines privadas. Não nego que eu tenha uma agonia quando vejo qualquer umas dessas cenas. Porém, a gente erra em achar que qualquer crise de intimidade é causada por esses dispositivos e se esquece de pensar o oposto. E se só inventamos tudo isso pra poder lidar com nosso desejo de conexão com o outro? A gente já inventou a arte, a festa, o gesto, o ritual. Nada mais aceitável que continuar tentando. E que essa tentativa tenha contornos diferentes das conexões que a gente já tentou. Precisamos fazer diferente pra poder lidar ou tentar diminuir nosso medo de sermos incompreendidos, rejeitados, oprimidos. Esses dispositivos não necessariamente são a causa dos problemas de intimidade, mas talvez uma consequência de que isso seja tão difícil de resolver.
As telas são um modo da gente olhar pros outros e também sermos vistos. Postar uma foto, compartilhar uma notícia, escrever uma newsletter são todos manifestações do nosso desejo de não estamos sozinhos e encontrarmos ressonância. De nos sentirmos inteiros. No entanto, por mais que a gente procure pessoas pra comer com a gente ou pra estar com a gente nos smartphones e computadores, eu não sei se é possível fazer esse desejo ir embora. A verdade é gente fica aí, sempre atrás de mais, pensando em quem convidar pra próxima refeição, na próxima foto, no próximo click, no próximo like, no próximo tuite. Nunca nos satisfaz. Antes de continuar esse ciclo infinito de busca de afeto, é preciso pensar então o que fazer com o sentimento.
Lidar com a solidão não tem a ver com encontrar companhia, mas com estar a vontade na própria pele — inclusive admitindo que está estraçalhado, e que o sentimento de estar sozinho é desolador. Não sentir vergonha por ver aparecer esse sentimento, nem se sentir incapaz de admitir que precisa de estar com o outro. Ser honesto é melhor que disfarçar nossa angústia, pois nos dá chance de ao menos nos reconhecermos uns nos outros pelo sentimento comum que a gente partilha. Procurar companhia é tão digno quanto suportar a solidão.
Outro antídoto importante é entender que várias das coisas que afligem a gente não são resultado apenas de algo individual, pessoal, das suas experiências, mas parte de um contexto maior, do modo como nos organizamos nessa sociedade e nas nossas cidades, e até mesmo da nossa existência. Quando a gente enxerga isso, entende que sempre teve alguém com a gente, mesmo que seja meio torto. Eu rezo a oração: Alguém por aí, eu sei, também deve ter sentido isso pois eu sei que somos sozinhos, mas é sempre muito bom encontrar companhia.
Sobremesa
A newsletter do Thomaz Amâncio dessa semana trouxe uma conversa bem interessante sobre beleza, perfeição e o vazio. Pra compor o argumento, ele gasta um bom tempo falando da cerimônia do chá, que é regida por uma miríade de detalhes, mas é de uma assombrosa simplicidade. O rituais são importantes porque instauram uma momento de pausa no fluxo contínuo da vida. Na cerimônia do chá a pausa é nos afazeres cotidianos, abrindo espaço pra estar em contato consigo e com o outro. Quando consideramos quão pequena é afinal a xícara do prazer humano, quão rápido ela transborda de lágrimas, quão fácil se esgota em nossa sede insaciável por infinitude, deixando apenas borra, não deveríamos nos censurar por darmos tanta importância à xícara de chá.
E já me justificando: demorei um pouco mais a enviar a newsletter desse mês, mas tenho um bom motivo. Andava um pouco descontente com o espaço que eu tinha no medium, e resolvi dar uma mudada na cara do Outracozinha. Gastei um bom tempo fazendo essa migração. Espero com isso ter vontade de escrever notas curtas com mais frequência, ou pelo menos isso é o que eu pretendo experimentar. Dá uma passada por lá e me conta o que achou? :)
Obrigada por continuar por aqui e até o próximo mês!
Um abraço,
Carla