Eu estava pensando na quantidade de bichos com que eu convivo e no quanto é diferente de qualquer coisa que eu já experimentei, e por isso acabei pegando um livro de filosofia sobre o assunto pra ler. Mas quanto mais eu lia, mais eu sabia que não queria pensar sobre isso de um jeito abstrato. Eu queria era falar dos bichos que me aparecem, e de como eu me sinto fazendo parte disso daqui.
O lugar onde estou tá longe de ser uma floresta encantada - é uma área bastante antropizada, com várias chácaras de cerca de 3mil metros quadrados dispostas uma ao lado da outra, seguida de outras propriedades maiores com grandes área de pasto e umas tantas vaquinhas. Na maioria do tempo essas casas ficam fechadas, mas aos fins de semana as pessoas aparecem. De toda forma, isso significa que a área já foi muito mexida, e que a vegetação é basicamente grama e um tanto de frutíferas e ornamentais escolhidas por outros critérios que não a afinidade com o lugar. E ainda assim, eu frequentemente me pego rindo e falando que isso daqui é um zoológico, a coisa mais parecida que reúne tantos bichos que eu devo ter experimentado antes.
Então eu comecei a colecionar pequenos trechos, como num diário, como fiz meses atrás pra falar das mudanças trazidas pelas chuvas, e das repetições e miudezas que são o próprio cotidiano. Esta daqui é a minha costura das lembranças dessas relações com os bichos, com essa época de seca, e de como eu me sinto nessas experiências bestas que eu não queria esquecer.
Tem seis gatos que agora visitam a minha casa todos as noites. Dois deles estão sempre aqui e já tem nome: Caju e Cajá. Caju é um doce. Deita com a barriga pra cima e se esfrega na gente, mia nos chamando, faz xixi mais ou menos onde a gente se encontra, pra marcar que quer muito ficar aqui. Cajá é um pouco mais espinhuda. Ela parece se interessar pela gente e querer carinho, mas não sabe muito bem como pedir isso. Chega perto da nossa mão estendida mas desiste no meio do caminho, e depois se esfrega voluntariamente nas nossas pernas. Se aparece algum cachorro nas redondezas enquanto estão comendo, é ela quem fica arqueada e soltando gritos ameaçadores enquanto os outros só se afastam.
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Foi a Cajá que começou nosso contato. Eu já tinha visto várias vezes o Caju quando ele não se chamava Caju - era “farofa do mundo invertido”, porque me lembrava um pouco a minha gatinha Farofa. Mas foi Cajá quem começou a aparecer no fim da tarde miando alto e olhando pra mim. Eu tentava me aproximar, mas a Cajá é a Cajá. Tem muita noção do seu espaço e está sempre pronta pra se levantar por si. Depois de uns dias conversando assim, resolvi pegar a tampinha de uma vasilha qualquer da cozinha e colocar um pouco de comida. Saí de perto e fiquei observando ela se interessar. Foi ela quem avisou os demais que aqui parecia ser um bom lugar.
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Comentei com minha mãe, que havia passado muitos dias aqui, que parecia que os passarinhos estavam cantando mais. Ela nem esperou que eu terminasse de falar pra concordar, ela também reparou. Ficamos especulando as razões - será alguma época de acasalamento? - mas eu me lembro que no início das chuvas é que isso aconteceu, e não observei esse acontecimento pelo aumento do piar. Eu via os pássaros trazendo palha pra dentro do telhado, e só depois passei a ouvir uns piadinhos que eram muito diferentes, fininhos. Era dos filhotinhos que nasceram. Não acho que deve ser outra temporada de acasalamento. No fim de semana anterior fizeram uma festa aqui nas redondezas com um barulho insuportável. Foram mais de 24h de música muito alta, tão alta que parecia que estava tendo festa dentro da minha casa. Os passarinhos devem estar comemorando que essa bestialidade acabou. Eles devem ter ficado felizes sim.
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Esses fins de semana barulhentos são muito frequentes - não tanto quanto esse que os pássaros comemoraram quando acabou, mas geralmente são bastante incômodos. As pessoas parecem que tem um tempo muito curto pra aproveitarem, e aí precisam espremer todas as coisas que desejam de uma vez. Elas bebem muito pra relaxar e entrar no clima festivo rápido, falam gritado, e deixam a música ocupar todo espaço. É tudo muito intenso. É meio triste porque o tempo curto é tudo que elas tem pra aproveitar, e não dá pra perder tempo tentando se ambientar, mas eu fico pensando se elas realmente conseguem perceber tudo isso. De vez em quando eu acho que é besteira minha e me sinto muito espaçosa por estar querendo morar não em metros mas em hectares, mas aí eu penso: você já reparou no quanto espaço essas pessoas que dizem se contentar com metros ocupam?
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Minha mãe me avisou que um dos cavalos do vizinho pulou a cerca e está ali no nosso quintal. Olhei pela janela da cozinha - ele estava bem pertinho, mas pra chegar na área da horta eu iria acabar escutando ele passando, então nem me preocupei. Ano passado na época das secas foi a mesma história. Acho que ele fica sem ter tanta opção, e aqui sempre tem algum mato que eu não corto. Ele veio porque aqui tem o que comer.
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O mesmo lugar preferido do cavalo é o lugar preferido das abelhas. Na seca as abelhas ficam concentradas num pedaço do gramado onde nasceu um monte de erva de touro e que eu me recuso a cortar. Ao meio dia o barulho do zumbido delas ali é enorme, é bom de ficar parado só escutando a cantoria.
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Outros dois gatos que vêm aqui são filhotes do Caju e da Cajá e vem na companhia deles. Já tentamos dar diversos nomes pra eles - siriguela e acerola, ubá e umbu, mas a verdade é que a gente só chama eles de branquinho e neném. Branquinho mia muito alto, praticamente exigindo que a gente coloque mais comida. Já Neném é a cara da Cajá. É uma gatinha bonitinha daquelas de estampar pacote de ração, que parece que usa uma meinha listrada nas pernas e mia abrindo a boquinha pequena com um tom estridente muito engraçado. Os dois, que ainda são pequenininhos, são bem mais ágeis e ariscos que os pais, e apesar de já estarem frequentando aqui tem um tempo mal conseguimos ainda tocar neles.
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Os últimos dois gatos do grupo de seis visitam a gente muito de vez em quando, mas no dia em que eu trouxe seis tulipas de frango de presente especial todos eles vieram, e voltaram depois por 3 dias seguidos.
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Depois que cortaram um matinho que ficava logo na frente da minha porteira as siriemas diminuíram muito a vinda delas por aqui. Sinto saudades.
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Minha mãe adorou observar as cabecinhas dos patos selvagens no lago que desapareciam e custavam muitos minutos até retornar para superfície. Ela nunca tinha imaginado que eles podiam mergulhar por tanto tempo pra caçar peixes.
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Praticamente em todos os lugares em que tem algum cultivo nosso plantado apareceu um formigueiro assim, no pé das plantas. Elas foram carregando terra pra cima da cobertura seca que invariavelmente está em volta de cada coisa que a gente está cuidando, e por isso foi impossível não notar. Mas eu nunca fiz nada quanto a isso, deixei elas lá. Nos últimos dias precisei mexer num dos canteiros e me atrevi a tocar na terra de um desses formigueiros. Aerada, o dedo afunda tão facilmente e de um jeito tão agradável que imagino que qualquer planta um dia vai amar se desenvolver ali. Na verdade, pensando bem, elas já devem estar amando. Sei que do ponto de vista humano formiga muitas vezes é um problema, e eu mesma tive vários cultivos depenados por elas, mas as vezes elas também são a solução.
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Mexendo nessa mesma terra dos canteiros pra semear coisas novas, repor o adubo e a cobertura, além do formigueiro também vi alguns besouros vivendo embaixo da terra. Minha amiga que é entomóloga sempre fica curiosa quando divido com ela sobre esse tipo de observação, e me deu a missão de tentar fotografar os bichos que estão vivendo ali.
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Lembrei que um dia perguntaram pra essa minha amiga para que servem as cigarrinhas que ela mostrou que estavam morando e sugando a seiva de um pé de laranjeira que ela cuidava. Ela respondeu que não sabia, mas devolveu atrevida: mas e você, pra que quê serve?
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Eu me escondi e fechei a porta da cozinha o dia que ouvi um vizinho chamar um empregado pra levar um pau e matar uma cobra. Que coisa gratuita, a cobra tava lá fazendo nada, tanto que dava tempo tranquilo de gritar pro outro vir lá de longe. Eu achei aquilo tão esquisito, mas se eu falasse qualquer coisa a esquisita era eu.
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Outro dia ficamos vendo os urubus sobrevoando à beira do lago bem na frente da casa e ficamos muito curiosos. Sabia que ia atrapalhar o almoço se eu fosse lá ver, mas também podia tentar ser rápida e silenciosa, só pra eu saber. Não foi difícil enxergar uma piranha morta que deve ter sido trazida pela correnteza e acabou deitada na beira. Fui embora no mesmo passo com que cheguei, e os urubus voltaram pra terminar de lanchar.
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As seis horas da tarde acontece a troca de turnos do telhado. Os passarinhos voltam, e os morcegos saem fazendo razante.
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Fiz um vídeo bonito que não tive coragem de postar no Instagram. Era uma goiaba meio oca e esburacada ainda no pé, com uma vespa grande posada. A vespa parecia estar comendo a goiaba, e fiz o vídeo porque dava pra aproximar e ver ela direitinho se esbaldando na fruta. Só que aí de repente do meio do oco da goiaba sai uma mosca. Logo que ela saí, a atenção da gente vai direto pro meio do oco de onde ela saiu e aí a gente percebe que tem outras vespas e moscas lá dentro. Todo mundo parecia estar comendo ali de boa e eu adorei o efeito surpresa da mosca de repente aparecendo, mas eu tenho certeza que no Instagram eu ia esbarrar em alguém que ia pensar no que nojo da mosca, no que dó da perda da fruta. Eu não queria ter paciência pra lidar com isso dessa vez e guardei o vídeo só pra mim.
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Tenho outros dois vídeos que eu gosto mas que jamais alguém vai ver no meu Instagram. O primeiro eu fiz quando encostei o carro na estrada de terra porque avistamos uma aranha enorme andando. Eu desci com o celular ligado, já gravando, e comecei a narrar o que estava fazendo. Fui caminhando até onde a aranha estava e dou um zoom: é uma enorme caranguejeira, que vai se afastando e escondendo no meio do mato rasteiro da beira. Enquanto eu filme, o marido aponta: alá, tem outra! Dou um gritinho, meio de medo, meio de euforia, foco na segunda aranha e o vídeo termina.
O segundo vídeo também é na estrada. Dessa vez era um jabuti. Ele estava atravessando a estrada, mas fiquei com medo que alguém passasse correndo demais e o atropelasse. Então a gente parou, eu abri a porta, liguei o celular e fui de longe tocando ele até a beira, filmando os passinhos devagar.
Eu filmei porque queria registrar essas conversas, mas isso é coisa minha. Eu não acho que vendo os vídeos alguém ia dar conta de entender isso.
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Tem uma outra razão que me fez saber que era época de acasalamento dos pássaros. Foi a época que os gatos comeram passarinho. Uns porque batiam no vidro de alguma janela. Eu ouvia, checava se estavam bem, e se infelizmente não fosse o caso eu chamava um gato como se fosse um urubu pra limpar e apreciar o lanche. Os gatos também apareceram sozinhos com passarinhos na boca. Miudinhos, ainda aprendendo a voar, sob encomenda pras esses gatos que viveram a vida toda em apartamento e são meio bestas pra caçar. Eu ficava aflita, mas também pensava nas janelas assassinas que devem ter pego mais pássaros que os gatos, no boi que vai dentro da ração e que pra existir precisa criar um deserto de capim onde mal existe inseto e mal existe pássaro.
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Levei um susto o dia que a Coruja suindara deu um razante e apanhou um morcego no ar com o bico. Foi muito pertinho, bem ali onde a gente tava sentado, e ainda deu pra ouvir a agonia do morcego. Ficou todo mundo na varanda meio cabisbaixo. Na semana seguinte, foi a vez de outro ser pego pela Neném, que ficou um tempão mastigando e me fez pensar que morcego deve ser borrachento. Apesar de terem casa aqui no telhado, a vida dos morcegos parece ser muito difícil.
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Fiquei sentada ali fora durante um tempo depois que coloquei a comida do Caju e ele mal tocou. Acho que hoje ele só veio nos ver.
Sobremesa
Fiquei muito feliz com o texto novo da Gabriela Ventura, de quem eu clico pra ler qualquer coisa que ela escreva, e que há muito tempo não escrevia. O retorno dela tem a ver com memória, cotidiano e apocalipses pessoais que levaram entre outras coisas queridas dois de seus gatos. O texto longo e cheio de referências interessantes que se segue abre perguntando: Se você tivesse que escolher uma única memória, dentre todas as que você possui, para levar consigo para a eternidade, qual seria a sua escolha?
Esse vídeo curtinho sobre como os outros animais nos humanizam tem um texto bonito demais;
Escrevi esse relato pessoal sobre alimentação natural para gatos em 2021. Tenho há 8 anos esse compromisso mensal de preparar as comidinhas do meus gatos, e é um processo difícil - especialmente sendo vegetariana e tendo que manipular um monte de carnes - mas também é gratificante me envolver com a comida deles desse jeito. Comida - nossa ou dos outros - sempre é capaz de nos fazer acessar muita coisa que ainda não tínhamos parado pra pensar.
Cafezinho
OutraCozinha é um projeto para se pensar nos ingredientes do que significa viver bem. É parte de uma construção de alternativas de vida fora dessa lógica capitalista, em que o cuidado é negligenciado, o indivíduo é culpabilizado, o tempo escasso, e a vida é um mar de obrigações para pagar boletos. E começa no prato, mas vai muito além das refeições.
O meu trabalho aqui é mantido com o apoio dos leitores, que permitem que o site, a newsletter e as redes sociais continuem sendo alimentados. Eu fico sempre muito agradecida por essa possibilidade independente e sem publicidade existir.
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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Um diário de zoologia de quem enxerga com o coração.
Dos textos que mais amei.
Gosto muito do bichos e ler estes teus relatos me deixou bem feliz. Me fez até querer observar mais os que tem aqui pelas minhas bandas. ☺️
Aaaah, e fiquei querendo muito ver esses vídeos das aranhas e do jabuti, hehehehe. Bjo