Eu não podia te dizer como picar os legumes.
Quando você trouxe os pratos que preparou e me perguntou se eu achava que a forma que você picou os legumes estava boa, eu só consegui te perguntar se era assim o que você queria comer hoje.
Aquela guacamole, era assim mesmo que você queria que ela fosse? Com cubos médios de tomate, cebola e pimentão, que a gente coloca na boca e consegue distinguir as diferentes texturas e sabores? Ou você preferiria que ela se parecesse mais como um molho, com pedacinhos tão miúdos, em que ninguém consegue saber direito quais são os legumes, mas os gostos estivessem ali, todos presentes e misturados?
E o feijão tropeiro? Você queria que tudo estivesse mais ou menos do mesmo tamanho, misturando texturas e gostos em uma única garfada, ou queria que de vez em quando você pudesse pescar um pedaço grande distinto de tofu defumado que estivesse ali no meio?
Quando você me perguntou se a forma como você picou os legumes estava boa, achei que na verdade você estava me perguntando se EU achava certo ou errado o que você tinha feito. Mas isto aqui é o que eu consegui te dizer: o que você imagina que eu espero que você faça de um corte é um péssimo parâmetro! Você nunca vai adivinhar.
Eu poderia te explicar que existem cortes de cubos minúsculos, pequenos, médios, grandes. Cortes de palitos julienne ou bastonetes. Os legumes poderiam ser fatiados, torneados, boloteados. Poderiam ser cortados na transversal, aumentando o tamanho e formando leques, ou com facas especiais fazendo ondas ou florzinhas. Daria ainda pra ignorar todas essas coisas clássicas, e fazer um corte em que ninguém se importa.
Tudo depende do tempo que você pretende deixar os legumes cozinhando. Do tamanho dos outros ingredientes do prato, da textura e da intensidade do sabor que você quer sentir. Em suma: tudo depende de como você gostaria no final que fosse o gosto da coisa toda.
Se eu te dissesse pra você parar de se preocupar com como eu gostaria, não sei se isso ia ser útil. Ia ser difícil você simplesmente me ignorar. Não sei se daria pra realmente fazer ir embora essa insegurança só de falar assim - "pare de se preocupar com isso" -, porque isso pressupõe que existe um jeito mágico de controlar o pensamento. Dá a entender que é uma escolha se preocupar ou deixar de se preocupar, como se você estivesse fazendo isso de propósito, ou que não fosse importante oferecer algo bom pra mim. Eu não acho que se dissesse pra parar de se preocupar com o que eu penso você se tornaria uma pessoa mais tranquila e desencanada, nem acho que te ajudaria a atingir uma felicidade com a sua própria produção.
Muita gente na verdade nem pensa sobre como picar os legumes. Não gasta tempo pensando que existem tantas diferentes formas, e que elas têm um impacto tão significativo em como nos sentimos no final com o que experimentamos. Às vezes tenho a impressão de que pra evitar entender do que realmente gostam, muitas ficam lá picando um monte de cubos médios, nem tão pequenos que se misturam impecavelmente, nem tão grandes que se sentem intensamente, porque assim elas acreditam que não correm tanto o risco de desagradar. Eles funcionam pra alguns pratos. Mas sempre vai ter quem deteste os cubos médios. Como eu quis te dizer, é uma ideia terrível tentar usar as expectativas alheias como medida. E ainda assim, muitas vezes não se pode evitá-las.
Então ainda que você estivesse preocupado se eu achei bom, acho que a melhor coisa que eu poderia responder - e foi isso o que eu te disse - foi te perguntar o que você gostaria pra hoje.
Sobremesa
1. Não se deve subestimar as pessoas, nem a capacidade que elas têm de encontrar as respostas para si. Nesse texto, a
reconhece a artesania e a importância de contar histórias no seu ofício com o oráculo, enquanto reflete sobre os horóscopos prontos, os mapas astrológicos digitais e as leituras massificadas. Para ela, a astrologia (e acho que qualquer trabalho que envolva o cuidado com a vida, seja saúde, oráculo, estética…) se dedica na forma singela de pessoa para pessoa, caso contrário será uma fila de histórias atrás de histórias me (nos) cansando. O esvaziamento do cuidado começa quando se deixa de manter nossa própria integridade.2. A arte nos permite fazer dessa insistência em achar que a natureza inteira é um contrarregra de sinais e respostas para nossas questões humanas uma oportunidade de exercitar a curiosidade pelo olhar do outro.
, num ensaio entremeado por ótimos quadrinhos, faz um exercício de lembranças de lendas e histórias que contamos sobre diferentes pássaros. Para tornar suas diferenças mais próximas de nós e suas semelhanças menos assustadoras, ela pergunta ao passarinho.3. Em pedra ou em aço, as palavras grafadas ou invisíveis são: never forget. Mas a lembrança sem apagamento tem o seu custo: perguntados sobre o que faz deles judeus, o antissemitismo surge como um traço de identidade do judeu americano. Em Relembre e apague seu nome,
celebra o jogo dúbio de ser capaz de se lembrar, pra em seguida condenar ao desaparecimento, ou registrar e esquecer. Uma habilidade necessária para que a identidade não seja somente marcada por tudo aquilo que nos é negado ser.Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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As artes dessa edição são do trabalho Camuflagem para descansos, da artista visual Camila Fontenele, publicadas na The Fat Zine. A camuflagem é um método performativo de desparecimento/aparecimento que possibilita uma trégua para corpos que vivem a invisibilidade severa em decorrência da visibilidade extrema. Ela comercializa as impressões no seu perfil.
Carla, é tão bonito como você faz da cozinha um microcosmo pro mundo todo. Bjos
Como eu adoro a tua escrita, Carla! Que presente!