[OutraCozinha #20] Verde que te quero rosa
Costumamos nos lembrar anedoticamente daquela história de que os esquimós possuiriam mais de 50 nomes para se referir à cor branca. Para o povo esquimó, seria uma questão de sobrevivência conseguir nomear nuances de brancos diferentes, seja para identificar ou comunicar probabilidades de cair num buraco ou de conseguir comida. Daí, eles não poderiam deixar de expressar os vários tons de branco na linguagem.
Embora essa história seja mesmo quase verdade, e que seja contada por muitas pessoas como uma curiosidade, eu nunca ouvi ninguém parando para pensar em como nós usamos as palavras para nos referirmos às cores. O professor e pesquisador John Warren se interessou pela pergunta. Ele conta no seu blog que muitas das línguas ocidentais contemporâneas possuem uma gama imensa de palavras para se referir à nuances de uma cor muito mais do que outras, e essa cor é o verde. Isso acontece porque vivemos em um planeta dominado pela cor verde, e portanto, faz sentido que as forças naturais de seleção tenham nos equipado com olhos que são particularmente sensíveis à essa luz do espectro.
É basicamente a mesma história do esquimó. Porém, Warren afirma que a adaptabilidade nesse caso não é somente linguística, como no caso deles, mas também biológica. Nossa sensibilidade retiniana para a cor verde é tão conhecida que nossas telas (como a TV, o cinema e as câmeras fotográficas, por exemplo) são calibradas para terem maior espectro verde, e assim, serem mais “reais”, mais da forma como estaríamos acostumados a ver.
Mas pense bem: se você é biologicamente adaptado para reconhecer o verde em todas as suas nuances, mas não consegue nem distinguir entre a salsa e o coentro na feira, será que você está aproveitando toda a potencialidade que a seleção natural te deu? A salsa e o coentro, claro, é só um pequeno exemplo. Pense no número de árvores espalhadas pela sua cidade. Os jardins. Uma praça. Pense ao menos no matinho que nasce no meio fio da calçada. Você consegue dizer o nome de quantas dessas plantas? Ou seriam todas elas “mato”, assim, sem nenhuma distinção?
Prato principal
Uma das coisas que mais gosto das PANCs é a possibilidade de mudar nossa relação com o mundo a partir da linguagem, da nomeação. A gente só chama essas plantas de mato porque nos falta uma certa alfabetização verde. A primeira PANC que provei - assim, sabida do nome - foi um caruru que nasceu espontâneo na minha jardineira, e que pela primeira vez eu dei nome, e resolvi cultivar ao invés de arrancar pra não "atrapalhar" o crescimento das plantas que eu cultivava.
Nossa visão higienista de que existem as plantas "certas", as que merecem ser cultivadas, e as outras - "o mato", genérico, sem merecer nenhum nome próprio - contribuem pra gente construir uma relação de desconhecimento (anomia) com a paisagem verde. Dar nome é um instrumento muito interessante de construção de sentidos porque os nomes que a gente dá pras coisas treinam nosso olhar pra ler o mundo. Os motivos pra se nomear algo nunca são puramente linguísticos.
Pra quem se interessa por conhecer o nome, mas também a cara, o gosto e os usos dessas plantas, vale conhecer este livro maravilhoso só sobre PANC do Valdely Kinupp. É uma edição muito bem trabalhada, daquelas que a gente vê o carinho em cada página. Todo em couchê brilhante, fotos coloridas das várias partes da planta, e três sugestões de uso da planta na cozinha. As fotos são realmente úteis e detalhistas, e a partir delas já consegui identificar e provar muita coisa que sem essa ajuda eu não provaria. Foi um dos dinheiros mais bem empregados em livros na minha vida.
Ando falando bastante das PANCs que eu uso no twitter: que gosto tem, como dá pra usar, e gosto também de falar como cultivar, porque grande parte delas é muito pouco trabalhosa. Estou marcando essas falas com a hashtag #PANCdodia, como um jeito de criar um acervo legal pra quem estiver interessado no assunto. Fica o convite: se você está por lá e conhece alguma dessas plantinhas, aproveita e usa a # pra falar das PANCs que você conhece, pra gente também criar uma conversa.
Eu me surpreendi, depois que comecei a usar o twitter pra falar de PANC, com o tanto de coisa que eu sempre tenho em mãos que não é muito comum. Privilégio de morar em uma cidade pequena e poder saltar uns elos na cadeia da produção da comida e conversar com quem planta (e fico satisfeita de fazer bom uso desse privilégio). Muitas vezes eu cozinho com elas por aqui e nem posto, algumas porque uso com uma frequência alta e seria apenas repetição, e outras, admito, por uma certa preguiça de parar pra fazer fotos ou algo assim. Alguns desses twittes acabo transformando em uma postagem no blog também. Pra quem não tem twitter, pode dar uma passada no blog de vez em quando, ou colocar ele no feed, que continuarei falando do assunto.
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Pra não deixar ninguém de fora, nessa newsletter tem uma #PANCdodia.
Essa PANC não é novidade pra quem é de Minas Gerais: umbigo de banana. É esse aí da foto. Ele é o que fica pendurado no final do cacho de bananas. Geralmente se corta esse pendão depois que as penquinhas de banana já se formaram, pra dar força pras bananas se desenvolverem, e aquilo ali se joga fora. Pois aqui a gente faz a festa.
Acho que o gosto lembra um pouco palmito fresco, e a textura se parece com a do alho poró. Quando peço na feira pra trazerem um pendão pra mim, fica todo mundo curioso, e eu faço questão de contar como uso, explico a receita (e já até levei na semana seguinte uma vasilha com a receita pronta pra levarem pra casa e experimentarem). Eles quase sempre me dão o pendão de presente - até nisso as PANCs propõe uma nova relação, que é menos comercial e mais de trocas afetivas e curiosas.
Em Minas o mais comum que vejo é usarem de recheio pra pastel de angu - um pastelzinho frito cuja massa é feita de angu bem durinho e empanado. Como eu tenho preguiça de fritar qualquer coisa, resolvi explicar como fazer um antepasto, que dá pra comer como salada depois de fria ou como um complemento em cima de um pão, feito uma brusqueta. É assim:
Antepasto de umbigo de banana
1 umbigo de banana (em alguns lugares também se fala "coração" ou mangará)
1 cebola branca
1 cenoura
2 colheres de sopa de manteiga
1 colher de sopa de açúcar
1/2 xíc de chá de castanha de caju picada
1/2 xíc de chá de uva passas pretas (deixe hidratar em vinho tinto por 1h antes de usar)
Sal à gosto
Como usar o umbigo de banana:
1. Se houverem folhas mais soltinhas, abertas, como que despencando, descarte, pois elas geralmente estão duras. Deixe o "umbigo" somente com a parte que estiver compacta e mais firme como na foto mais em cima;
2. Pique bem fininho, e vá colocando o que for picado numa vasilha com água e um limão espremido. O umbigo de banana oxida muito rápido, e a gente faz isso pra que ele não escureça. Deixe descansar ali por uns 30 minutos.
3. Em seguida, vamos tirar o amargo do umbigo: jogue na água fervente, e cozinhe por 5 minutos. Escorra e prove, e se ainda achar amargo repita este processo mais uma vez. Uma fervida, no entanto, costuma ser suficiente. Isso varia do tipo de espécie de banana que você está usando.

Picando e colocando na água com limão ainda enquanto se pica
Agora você pode fazer a receita: 4. Pique as cebolas em meia-lua, para ficarem em um formato semelhante ao corte do umbigo de banana. Doure devagar na manteiga, em fogo baixo, por pelo menos uns 10 minutos.
4. Quando as cebolas já tiverem murchado um bocado, acrescente o açúcar para ajudar a realçar a caramelização;
5. Acrescente a cenoura ralada, deixe amaciar. Você pode aproveitar e tirar o fundo queimadinho da panela com um pouco de vinho branco. Em seguida coloque o umbigo de banana já previamente fervido, refogue rapidamente e desligue o fogo.
6. Para finalizar, acrescente as castanhas de caju quebradas e as passas. Acerte o sal.

Eu sei, deu água na boca. Pois tava muito bom mesmo.
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Sobremesa
Hoje tem duas vozes bem diferentes da minha:
Em Como é ser vegana e favelada, uma discussão sobre como ser vegano, ao contrário do que se diz por aí, não é caro, mas o discurso do veganismo (e também do vegetarianismo) podem ser bastante elitistas. Muito bom repensar lugares de fala.
E na reportagem Feminismo que brota da terra são entrevistadas mulheres campesinas que fazem parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST), falando sobre um feminismo que não reivindica a saída das mulheres das cozinhas. Pelo contrário: elas reconhecem que as cozinhas no campo são espaços políticos, onde as decisões são tomadas, e por isso fazem questão de estar lá.
A reflexão também tem validade pra pensar nas nossas cozinhas no espaço urbano, aquela, que quase ninguém mais quer estar. Acho rasa a ideia de que o feminismo é sobre escolhas, e a mulher pode escolher ficar na cozinha - se quiser. Feminismo é tão mais que isso. E cuidar da cozinha dificilmente pode ser uma escolha, já que todo mundo - todo mundo mesmo - precisa que essas tarefas sejam realizadas. Alguém vai ter de fazer, e se não formos nós, homens e mulheres comuns, será a indústria, com valores que nem sempre se parecem com os nossos. Então, me parece que só temos uma alternativa: repensar nossa relação com a cozinha, com a casa, com o cuidado das crianças, dos idosos, dos doentes. Repensar o valor que damos a isso, independente de quem serão os responsáveis pelo trabalho. Questionar porque essa continua sendo uma tarefa não remunerada, invisível, *por amor*, quando na verdade é um trabalho, uma tarefa indispensável, que possibilita que as tarefas remuneradas e as "carreiras bem-sucedidas" existam.
O que essas mulheres campesinas entrevistadas escancaram é que não faz nenhum sentido essa dicotomia entre público e privado. Essa separação é artificial, é uma barreira criada pra manter as mulheres confinadas em certos espaços, longe dos lugares de decisão, mas é cada vez mais difícil não enxergar como as decisões estão em toda parte, e cada um desses espaços é vital para a manutenção dos outros.
Por hoje é isso.
Se você arrumar um umbigo de banana com algum feirante ou amigo que tenha um quintal ou um sitiozinho, não deixe de me escrever pra contar.
Obrigada por continuar por aqui, e apareça pra tomar um café!
Um abraço,
Carla
OutraCozinha