[OutraCozinha #21] Medicina do mato

No inverno do ano passado, resolvi misturar algumas cascas e folhas secas num vaso grande em que tenho um pé de louro, pra servir de adubo quando chegasse a primavera. Uns meses depois, começou a crescer alguma coisa junto do louro, e fui observando a folha. Era batata-doce. Provavelmente algum pedacinho de casca que joguei resolveu virar uma planta nova ao invés de se decompor. E eu teimei junto com a planta. Joguei água, guiei as ramas das folhas que vinham, ia deixando aquela planta crescer.
Depois de um ano, era hora de podar e adubar de novo – esse ritual corriqueiro de inverno de quase todo mundo que resolve ser jardineiro. E aí decidi que era hora de cavucar pra chegar nas batatinhas.
Eu sei, não vai matar a fome nem nada, mas tem tanta coisa bonita que eu experimentei ao ver essa batatinha crescendo que eu me sinto alimentada. Penso na relação diferente com a jardinagem, que as vezes deixa a gente com tanto medo de matar as plantinhas, mas se mostra ali quase uma coisa inexplicável de tão viva. No jeito diferente de perceber o lixo, que pode ser aproveitado nos vasos, mas tem tanto valor que pode se transformar numa nova planta e em alimento. Na resiliência da casca, no tamanho do ciclo pra se produzir uma batata – lá se foi um ano! Na mão suja de terra procurando as batatas e as unhas pretas, que me lembraram que plantar dá trabalho e é bem diferente do que se vê no supermercado. No querer muito cozinhar também as folhas – elas são uma PANC incrível, macia, saborosa – porque você não quer perder nada dessa experiência assombrosa de ter conseguido produzir uma batata-doce, umazinha que seja, num vaso em casa.
Insistir em ter plantas comestíveis em casa é das coisas mais poéticas e gratificantes que eu consigo pensar.
Como eram poucas as batatas-doces produzidas em casa, assei junto com outras compradas, temperadas com curry, sal e azeite. E fiz questão de separar na vasilha as batatas que nasceram aqui em casa pra saber quando as comesse - estava curiosa. É claro que a minha batata era a mais macia e a mais gostosa.
Prato Principal
Quem já cultivou qualquer vasinho com temperinhos é capaz de entender como produzir demanda, mesmo numa escala reduzidíssima, um bocado de paciência, atenção, presença, espera.
No entanto, quando se trata de comer a ervinha que se plantou, o gosto parece ser outro. Não é só por que você não usa adubos químicos, ou qualquer tipo de agrotóxicos para tratar os insetos, os fungos e outras dificuldades que porventura apareçam. O gosto é o do saber-se presente, de saber que você fez parte daquela obra; é o gosto do cuidado: com a planta e consigo mesmo.
Na Alemanha essa relação entre terra e cuidado é tão presente que as cidades possuem espaços pensados para incentivar isso. São os Schrebergarten: pequenos lotes na área urbana, subsidiados pelo Estado e que são alugados às famílias para que as pessoas possam praticar a jardinagem. Exige-se que pelo menos 70% do espaço deve estar plantado com espécies comestíveis. Esses espaços foram pensados originalmente por um médico alemão chamado Daniel Schreber - e por isso o nome de Scherebergarten, ou jardins de Schreber - , que via no contato urbano com a jardinagem um potencial terapêutico. Atualmente são uma parte importante da cultura alemã, apesar de muitas pessoas criticarem esses espaços como excessivamente burgueses (não são exatamente públicos apesar de parcialmente custeados pelo estado), muito cheio de regras, e de atualmente ser difícil de se conseguir alugar um. Ainda assim é um exemplo interessante da valorização desse fazer com as próprias mãos e da sua correlação com um ato de cuidado consigo.
Apesar de ser possível produzir comida de verdade em vasos, quintais e varandas, plantar no espaço urbano, no fundo, não é sobre colher e sim sobre experimentar. Experimentar a observação e a confiança no processo, aprender a estar presente e a tolerar o que dá errado. Ter um pouco mais de medida do quanto a tarefa é trabalhosa e demorada, mas também de que o processo é generoso e abundante. Não é preciso se tornar especialista, ter dedo verde, ou ser uma 'pessoa de plantas', mas é preciso sim paciência, resiliência, querer ao menos um tiquinho. Várias plantas vão morrer no meio do caminho, e isso não te torna alguém horrível nem menos capaz. Algumas delas vão morrer apenas porque terminou o seu ciclo.
Aliás, esta é outra coisa que fica evidente no meio do caminho: os ciclos.
Quando brincamos de jardinar, descobrimos que tanto ele quanto nós temos tempo de nos sentirmos mais à vontade, com mais energia, disposição; e temos tempos de balanço, de recolhimento, de armazenagem. Isso não só é normal, como interessante. Quando se enxerga o jardim transformar, é mais fácil reconhecer que a fase minguada também teve sua importância e te levou a cuidar, podar, adubar e esperar pra que um dia tudo pudesse se aprumar e florir.
Plantar é retomar um contato com a terra, com o presente, com o mundo em que a gente vive, um contato que alimenta tanta coisa que andamos esquecendo de alimentar. É uma cura pra muito descompasso e cegueira que estamos vivendo. É cuidado, é também prazer e uma medicina: uma medicina do mato.

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Na mudança de clima, acabei ficando com uma gripe bem forte, que quando terminada não terminou: virou uma sinusite. Sinusite é um coisa muito incômoda - a cabeça fica dolorida, os dentes também podem ficar desconfortáveis por conta da pressão, e é difícil de se tratar. Muita gente tem sinusite crônica. A medicina alopata costuma, algumas vezes, receitar anti-inflamatórios, antibióticos, cirurgias, por vezes sem muito sucesso.
Ouvi de duas pessoas diferentes sobre um fitoterápico pra este problema pouco antes de passar por ele. Como nenhuma coincidência me parece só uma coincidência, resolvi escutar o universo e experimentar. Comprei uma buchinha do norte (ou buchinha do pará) nessas casas de ervas/chás.

As buchinhas do norte que comprei
Você coloca uma buchinha na água fervendo, deixa por 5 minutos, e desliga. Pega uma toalha, coloca sobre a cabeça pra conter os vapores em volta de você e se debruça sobre a panela. Vá respirando o ar que solta da vasilha com água+buchinha. Fique por ali enquanto houver vapor.
O resultado demora um pouco pra aparecer, mas ao final de um dia a secreção começou a soltar. Em 2 dias meus dentes, que estavam muito doloridos, melhoraram. Em 3 dias, eu sentia dor na cabeça apenas quando apalpava em volta dos olhos. Fiz então, no terceiro dia, mais uma inalação, tive mais um pouco de paciência e fiquei definitivamente livre da sinusite. Foi a crise mais curta que já experimentei.
Assim como não sabemos muito mais sobre a terra também não conhecemos muitos cuidados e tratamentos a partir de elementos dela. Ter em mãos algum conhecimento para cuidar de si e tentar remediar alguns problemas cotidianos não deveria ser uma tarefa abandonável. Mas parece que andamos abdicando disso.
Não se trata também de cultivar independência dos médicos, da medicina tradicional, do cuidado que os outros nos oferecem - ninguém pode ser completamente independente de outras pessoas, nem econômica nem emocionalmente, e muito menos em termos de conhecimento. Porém, é preciso acreditar tal e qual quando se 'ouve' uma plantinha, que você é capaz de ouvir um pouco do seu corpo. Não me sinto muito bem quando uso antibióticos - quase sempre quando acabo de tomar uma caixa logo aparecem outros problemas - e por isso é importante dizer não a eles em algumas ocasiões e fazer outras tentativas. Isso não quer dizer abrir mão da medicina pra sempre, ou escolher uma única forma de cuidado. Isso quer dizer apenas entender e acolher que você é uma parte importante nessa equação. O maior especialista no seu corpo é você mesmo, mas para isso é preciso voltar a cultivar a auto-observação e a confiança no processo, e deixar florescer a atenção com o entorno, o respeito aos ciclos, e todas aquelas coisas que andamos esquecendo que também são alimentos.

Sobremesa
Na Femrecs #32, a Letícia Arcoverde falou sobre identidades e o sentimento de fraude. Ela partiu de uma observação durante as aulas de yoga do quanto se sentia insuficiente enquanto praticante, porque apesar dos dois anos de tentativas ainda sente dificuldade de se concentrar, de se perceber flexível, e até de se considerar uma pessoa ~natural, como ela imagina que um praticante de yoga deveria ser. Ela percebeu que se sentir uma fraude está relacionado com a identidade que achamos que temos, a que desejamos ter, ou a que decidimos que não merecemos. Pra remediar isso, conhecer seus limites e manter a mente aberta para descobrir suas novas facetas e suas novas identidades parece ser a chave. Não é preciso uma caixa fechadinha pra gente se abrigar: dá pra saber algo sem precisar ser especialista e isso é deixar que o seu espaço de ser experimente um alargamento que pode ser muito interessante. Clique pra ler o ensaio completo ou assine a newsletter, vale muito a pena.
Pra quem é de poemas, um caroço de abóbora japonesa da Estela Rosa é uma ilustração incrível da poética e da resistência ao processo de se deixar brotar.
E já que falei sobre contato com a terra e experimentar plantar, tenho duas sugestões pra colocar a mão na massa. A primeira é a Sementeria, no qual você pode trocar sementes em pequena escala com outras pessoas e encontrar aquela plantinha que você tanto queria em relações mais afetivas e menos comerciais. E a segunda é uma postagem que fiz no blog sobre uma erva PANC que é tempero, é brasileira nativa, e é uma delícia: a erva baleeira. Não precisa se assustar, não é tão difícil assim de achar, e é fácil de cultivar. Em qualquer casa de ervas/chás se encontra dela seca, mas pouca gente sabe da belezinha que essa erva é na cozinha. Afinal, é preciso conhecer pra se animar de tentar coisas novas.
Obrigada por estar mais um mês por aqui e até a próxima!
Um abraço,
Carla Soares
OutraCozinha