[OutraCozinha #22] As coisas que não conseguimos controlar

Quando se fala a palavra cozinhar, é muito provável que te venha à cabeça a imagem de alguém colocando um alimento no fogo, seja na brasa, no fogão ou através da água fervente. Há também quem acabe se lembrando da imagem de uma tábua e uma faca, e do ato de descascar, cortar, picar, fatiar, que é uma transformação física importante pra se entender o aspecto humano do ato de cozinhar. Dificilmente, no entanto, a imagem que nos aparece é a do processo de transformação realizado pelos microorganismos, que transformam o alimento de maneira química, e que a gente chama de fermentação.
Apesar de não associarmos tão naturalmente o cozinhar com a fermentação, várias coisas importantes são produzidas usando este processo: o pão, o queijo, o vinagre, o iogurte, o chocolate (a fermentação da semente de cacau é a primeira etapa, a que dá o gosto característico), a cerveja, o vinho. São alimentos com história e tradição, e são muito importantes do ponto de vista de várias culturas.
A ausência da imagem diz muito sobre como enxergamos o ato de cozinhar: uma técnica na qual a gente tenta controlar as transformações que vão ocorrer com um alimento e quanto mais visíveis, mais parece que somos capazes de manter o domínio. As fermentações dificilmente aparecem na nossa primeira lembrança porque são o oposto disso: são a manifestação de um mundo que não somos capazes de ver - o micro - agindo sobre os ingredientes e transformando-os em outros. É um treino importante na nossa entrega, no acreditar no processo e do saber esperar.
Não é um acaso que esses processos são os que atualmente menos temos contato dentro das nossas cozinhas. O medo daquilo que não podemos entender é um subproduto do mundo que ama o controle, e por isso o sentimento de ser incapaz, de que isso é muito difícil, de que se precisa de muitos conhecimentos e técnicas pra poder brincar aparece. A gente aprendeu a deixar isso pra indústria, que parece ter o necessário pra monitorar tudo aquilo que é imperceptível.
Nos fixamos e valorizamos demais controle e uniformidade, e a fermentação não é sobre isso. Deixar de experimentar cozinhar usando deste processo promove uma distorção importante na nossa percepção sobre o que é cozinha. E só porque imaginamos que o controle é indispensável, isso não significa que seja assim.
Prato principal
Eu me iniciei no mundo das fermentações experimentando fazer bebidas gaseificadas. Minha primeira bebida foi o Ginger Ale, um refrigerante de gengibre que pode ficar levemente alcoólico se você estiver a fim e tiver paciência. Basicamente se mistura gengibre, limão, água e mel e inocula-se um pouco de fermento - vale fermento de pão ou soro de leite - e se espera alguns dias. Não sei quanto álcool consigo produzir ao certo, só sinto um pouco daquele relaxamento leve que ele produz no corpo.
No início tinha muito medo que o processo fosse dar errado. Eu vigiava a garrafa constantemente porque sentia medo que a garrafa estourasse, a ponto de acordar espontaneamente no meio da noite com a urgência de me certificar que tudo corria bem. Com o tempo, eu entendi que explosões do meu erro não iam acontecer. Quer dizer, nunca aconteceu, e se acontecesse era mais provável que a tampa e o gargalo explodissem e não a garrafa em si. Também era tranquilizador me lembrar de que a garrafa estava num ambiente resguardado, poderia fazer uma sujeira mas dificilmente ia machucar alguém. O tempo que eu gastava me preocupando com o que aconteceria era inútil, porque de fato eu nunca tive o poder sobre as transformações que aconteciam. Ter atenção na preparação inicial que me cabia, e depois ficar relaxada e aguardar era a única atitude que parecia fazer sentido. E ainda assim, foi difícil de fato conseguir ficar tranquila.
Fazer Ginger Ale ou refrigerante de gengibre é uma experiência que recomendo a todo mundo que se interessa por cozinha, porque com o olhar atento pode-se entender muito sobre medo, sobre vigilância versus deixar acontecer. Agora levo dias pra ir olhar a garrafa e apertar a tampa, verificando se está dura pela pressão produzida com a gaseificação do suco. Sei que leva tempo, e que tudo o que preciso é confiar um pouco no processo.
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Um livro que acabou me fazendo repensar muito no controle que eu tentava estabelecer nos processos é esse da foto, Wild Fermentation (em inglês). Não há uma tradução deste livro específico, mas Sandor Katz, o autor deste volume, tem outros títulos sobre o mesmo assunto. A arte da fermentação, por exemplo, é um livro dele de conteúdo similar que a gente encontra pra comprar em português.
O livro me fez pensar sobre como é importante não se concentrar no produto mas sim no processo. Ele é muito favorável a não nos preocuparmos em comprarmos "os utensílios corretos" porque isso não existe. O melhor utensílio é o que está à nossa disposição no momento. A melhor técnica é que a gente consegue executar. Isso não significa que a gente não precisa estar atentos, nem que não possa estudar e melhorar, ou que não valha a pena comprar bons utensílios de cozinha (pelo contrário!). Significa apenas que não temos porque julgar os nossos processos, as nossas habilidades, as ferramentas que temos no momento. Faça do melhor jeito que for possível agora. A fermentação existe desde que o mundo é mundo, e nunca precisou de modelos em aço inoxidável, geringonças plásticas, colheres de polipropileno antibacterianas ou mesmo a pasteurização pra existir e dar certo.
Assim, Katz me ensinou muito também sobre improviso, sobre não depender de compras, sobre ser criativa com as coisas que tenho. Faço as fermentações com vidros reutilizados, e muitas vezes gasto um bom tempo apenas tentando encaixar um vidro no outro pra poder manter um sistema submerso na água - uma atenção muito importante no processo.
Tentar controlar os processos com cronômetros, balança, fervuras e supostas esterilizações é uma etapa em que a única coisa que vejo ser controlada é a gente mesmo. Controlado pelo medo de dar errado, pela ameaça de se machucar ou ficar doente comendo algo estragado, que nos impede de experimentar sabores e processos muito interessantes. Controlado pela indústria que insiste que a gente não vai dar conta de fazer sozinhos, que dependemos dela, quando de fato esses processos são ancestrais, culturais, tradicionais. O mundo ensina a gente a ter medo e repete feito um mantra: tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser voar. E no entanto, as coisas mais únicas que podemos provar são as que conseguem escapar dessa barreira.
Eu sei que não é tão simples se entregar a esses processos quando a mensagem que sempre é reforçada é o do pânico promovido pelo Doutor bactéria em programas dominicais. Eu também tenho uma atração forte por controlar as coisas a minha volta, e preciso estar realmente atenta se quero aprender a fazer de outros jeitos. Exercitar deixar de lado essa autoridade sobre aquilo que se passa ainda é difícil, mas ao menos fazer tem me permitido perceber aonde esses mecanismos se escondem.
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O kimchi, esse aí da foto, é um fermentado koreano apimentado feito com acelga. É daquelas coisas que faz minha mãe perguntar quando vem me visitar se não tem algo mais normal pra comer, mas que eu simplesmente adoro e como cotidianamente. Contam que é o prato típico mais tradicional da Coreia, e que acompanha quase todas as refeições. É um hábito tão arraigado que ainda é costume de algumas empresas coreanas pagar um bônus no outono aos seus funcionários para que eles possam comprar os ingredientes para fazer seu suprimento anual da conserva.
Experimentei kimchi fora de casa uma única vez, em um restaurante coreano em Foz do Iguaçu, mas foi depois de já ter me aventurado a fazer o meu em casa. Não ter experimentado previamente não foi um impeditivo para que tentasse fazer essa conserva. O que me guia não é exatamente uma autenticidade no sentido de algo que seja fiel ao que existe, mas um compromisso com encontrar um sabor que me diga algo. Processos artesanais são assim - seria ingênuo acreditar que existe a receita de kimchi na Coréia, porque uniformidade é um atributo apenas da indústria - , e é nessa singularidade que está o valor daquilo que fazemos em pequena escala.
É uma receita fácil, que não precisa de ingredientes exóticos, caros ou difíceis de serem encontrados, e que pode ser feito com os utensílios que você tiver à mão. Os vários temperos usados produzem um resultado bem diferente da média de fermentados de legumes que já preparei, e por isso é um dos preferidos. Se você gosta de sabores azedos, fortes e picantes, experimentar produzir o seu próprio kimchi é uma experiência altamente recomendável. Separe por aí:
1 alcelga grande inteira
3 ou 4 rabanetes
3 ou 4 cenouras médias
2 ou 3 cebolas médias
3 ou 4 dentes de alho
6 pimentas chilis frescas (ou 12 dedos-de-moça, ou a pimenta que você tiver acesso, mesmo seca)
1 pedaço grande de gengibre (cerca de10cm)
1 colher de café de páprica doce ou picante (o que for mais do seu agrado)
4 colheres de sopa de sal marinho (preferencialmente não-iodado)
1l de água

O passo 2, colocar os legumes fatiados em um vidro grande
1. Pique em pedaços grandes a acelga e fatie todos os legumes finos. Como a quantidade é grande, pode ser usado o fatiador de um processador de alimentos, mas picar na mão não é nenhum problema.
2. Coloque tudo em um vidro grande, e à parte, dissolva 4 colheres de sal em 1 litro d`água. É importante prestar atenção no sal. Use sal marinho e não sal refinado, e caso você tenha acesso a um sal não-iodado é melhor ainda. O iodo é um inibidor do crescimento bacteriano e num processo de fermentação tudo o que você deseja é que haja crescimento bacteriano, por mais estranho que isto a princípio pareça. Porém, não ter à mão sal não-iodado não é impeditivo para fazer o kimchi, embora o crescimento possa ser dificultado, ou levar mais tempo. Outra atenção a ser dispensada é com a água: o cloro é outro composto antibacteriano, e é adicionado a toda rede de tratamento de água por lei, mas água declorada é facilmente obtida naqueles filtros de barro. O filtro declorante é vendido quase no mesmo preço do filtro comum. Se o seu ainda não é, vale ler sobre água declorada e prestar atenção na próxima compra.
3. Cubra os legumes no vidro com a água salgada;
4. Deixe essa mistura descansar por entre 8-24h. Os legumes deverão murchar e ficarão boiando sobre a água;
5. Escorra os legumes e descarte a salmoura (ou a use para produzir outros fermentados de legumes);
6. Faça à parte o molho condimentado do kimchi: triture num pilão, processador ou no liquidificador as cebolas, o alho, gengibre, pimenta e a páprica, até formarem uma pasta.
7. Misture esta pasta com os legumes e retorne tudo para o vidro.
8. Com algum utensílio pesado, procure pressionar os legumes dentro do vidro, de modo que a água contida neles cubra a superfície dos legumes totalmente. Este é o segredo do kimchi e de qualquer fermentação. Bactérias nocivas não se desenvolvem em salmoura, este é um meio hostil pra elas. Apenas um tipo de bactérias cresce ali, e são as que precisamos pra transformação que queremos. Improvise esta etapa com o que estiver à mão. Como faço em um vidro grande, uso outro pote de vidro reaproveitado do tipo dos de palmito e encho ele com água. Isso é suficiente para fazer peso e manter os legumes submersos na salmoura. Você pode usar vidros, cerâmica e até uma pedra desde que os limpe adequadamente. Apenas evite o plástico pois ficará cheiro.

Uma pedra sabão que compõe um pilão grande que tenho, pressionando o legume até que a água fique por cima. No caso, isso é repolho e o fermentado é chucrute, mas é assim que se faz com o kimchi também.
9. Aguarde pelo menos 7 dias enquanto o seu kimchi fermenta. Pode demorar mais ou menos tempo, dependendo da temperatura que está aonde você mora. Quanto mais quente, mais rápido é o processo. O que vai te guiar é o olfato: quando o cheiro se tornar ácido mas atraente, está pronto. Quando pronto, ele não precisa ser refrigerado - embora nada impeça que você o faça para desacelerar o processo - e se conservará por meses. O kimchi evolui com o tempo, o que significa que seu sabor vai se alterando, e isso não é ruim. É um indício de que este é um alimento vivo, como a gente, que muda ao sabor do tempo. Experimente comer kimchi com arroz, legumes ao vapor ou baozi (aquele pãozinho oriental cozido no vapor)

O vidro pronto com kimchi. Aquele tanto de legumes prensados ficou no fundo. Repare no sistema improvisado para manter os legumes submersos na salmoura: um vidro dentro de outro vidro cheio de água e está tudo bem.
Sobremesa
A indústria não se apossou somente dos processos naturais embutindo medo sobre aquilo que sempre fizemos, mas também tomou conta dos utensílios que usamos. O Manifesto da Colher de Pau diz muito sobre valorizarmos os processos e utensílios que fazem parte da nossa história e da nossa cultura. Afinal, a quem interessaria demonizar as colheres de pau e outros utensílios ancestrais que nos acompanham? A quem intere$$a que troquemos todos os nossos utensílios de cozinha? O que perdemos com o nosso medo e a nossa obsessão por controle? Por que é justamente sobre o mundo microscópico, aquele que não conseguimos enxergar para ter certeza, que a indústria insiste em advertir dos riscos?
Pra quem está em São Paulo e tem curiosidade com os processos de fermentação mas ainda não se sente muito à vontade, Sandor Katz estará em dezembro na cidade e dará uma aula. Pode ser o caso de você querer aproveitar.
Espero que esta cartinha faça você se animar a experimentar o processo. Seja Ginger Ale, iogurte, pão, vinagre, kimchi ou qualquer outro fermentado, a experiência de se entregar e confiar costuma ser transformadora.
Obrigada por continuar por aqui e até o próximo mês (ou me encontre antes disso respondendo este email ou no twitter!)
Um abraço,
Carla