[OutraCozinha #23] Por que tanta gente quer "morar no mato"?

Não é de hoje que eu e um monte de amigos vivemos falando que queremos fugir "pro mato". Sei que parece só uma questão de desespero frente ao mundo que a gente anda vivendo, mas eu de fato levo esse plano um pouquinho a sério.
Uma parte dessa travessia, inclusive, já dei conta de fazer: saí de uma das maiores capitais do país (Belo Horizonte) pra ir morar numa cidadezinha no meio do nada no Paraná (é Pato Branco, uma cidade de 75mil habitantes bem longe dos principais centros, isolada na parte sudoeste do estado).
Um tempinho atrás a Fê Cannalonga escreveu uma newsletter muito bacana dedicada ao tema. Ela mesma também é um personagem desse êxodo urbano, e falava na newsletter do que mobiliza tanta gente, nem que seja no imaginário, a querer "morar no mato": a gente quer plantar, a gente quer fazer pão, quer ver a chegada das novas estações, quer encurtar distâncias, quer comer fruta do pé, quer viver com menos. Quer construir, fazer, colher, cuidar, contemplar, moderar, cultivar, acreditar ao invés de comprar, correr, repetir, consumir, acelerar, duvidar, fugir, reclamar. A sensação de resiliência, longe dos grandes centros urbanos, é atraente. É que na cidade não existe movimento de adaptação, na cidade a gente precisa sempre da mesma coisa, ou de mais da mesma coisa, nunca de outra coisa, ou de menos dessa coisa. E essa coisa é o dinheiro, já que na cidade a gente não produz o que precisa diretamente. A gente converte horas de trabalho em papel, ou dinheiro virtual, e nosso bem estar passa a ser atrelado diretamente com o quanto ganha em um ciclo insalubre e insustentável.
Pato Branco, infelizmente, ainda não é mato - é urbana e vertical demais pros meus planos - mas foi um passo importante pra mim no sentido de dar forma ao desejo de poder acreditar e experimentar uma outra vida. Foi uma coisa gestada, desejada e mesmo assim deu e dá muito trabalho ter feito essa escolha. Muitas das coisas que vim procurar aqui encontrei: meu companheiro não gasta mais de 10 minutos pra chegar no trabalho - que acredite, fica fora da cidade. Não canso de me assustar com essa comparação: eu gastava uma hora e meia pra chegar no meu trabalho em BH, todos os dias. Essa escala menor que facilita o deslocamento pro trabalho também proporciona encontros e aqui dá pra ver os amigos toda semana. O dinheiro rende muito mais, as coisas são mais baratas, e sinto menos vontade (ou necessidade) de gastar dinheiro de uma forma geral.
Outra coisa importante é que conheço de verdade as pessoas que plantam minha comida, não tem mais atravessador nessa relação e isso faz muita diferença em termos do que tenho acesso, a qualidade, o preço e especialmente no entendimento das questões do campo. Tenho tempo pra fazer pão e absolutamente tudo o que você pensar de comida em casa. Comecei a retomar e inventar projetos que tinha abandonado no meio do caminho da vida corrida da cidade grande - foi assim que voltei a escrever, a bordar, jardinar a sério e a testar um monte de PANCs diferentes toda semana.
Por outro lado, tem sempre essa parte de se adaptar a uma nova vida pra quem sempre viveu nos grandes centros urbanos. As opções de lazer e culturais são muito restritas mesmo, e o jeito é você ir criando um ambiente favorável pra essas coisas florescerem. Aqui, por exemplo, eu iniciei um clube de leitura #LeiaMulheres, uma iniciativa super legal espalhada pelo Brasil mas que majoritariamente só acontece nas capitais. Funciona bem, e no último mês fizemos um sarau com mulheres tocando, mulheres fazendo curadoria de clipes de mulheres, mulheres lendo mulheres, mulheres mostrando e aprendendo vários tipos de produções - teve oficina de serigrafia, encadernação, desenho e eu ofereci uma oficina de bordado. É um jeito muito interessante de movimentar a cidade e de encontrar pessoas parecidas com a gente. O interior, inclusive, precisa disso.
Cartazes dos encontros feitos durante o ano do #LeiaMulheres exibidos no sarau
Outro ponto difícil é o deslocamento. Dentro da cidade ele melhora muito, mas pro resto do Brasil é um problema: minha cidade não tem aeroporto, o mais próximo está há 150km mas também é em uma cidade pequena - é em Chapecó-SC, o que significa passagens caras e viagens longas (o trajeto mínimo soma 12h até BH, mesmo usando avião). Não consigo ver minha família mais de 1 ou 2x no ano.
Também é preciso se acostumar com uma percepção de vida privada diferente. Ainda me surpreendo com pessoas sabendo coisas ou quem eu sou - como uma senhora que na hora que entrei num elevador me disse "ah, você é de Minas né, minha filha está tentando vestibular em Itajubá", mas eu não me lembro de ter visto a pessoa em questão em algum outro momento. As pessoas pra mim ainda são invisíveis, e embora isso me faça pensar não deixa de me surpreender. É preciso se adaptar mesmo.
É preciso, ainda, repensar os trabalhos. Nem sempre no contexto da cidade pequena cabem atividades tão especializadas como as que os centros urbanos exigem, mas existem muitas oportunidades de outra natureza. Nem sempre as soluções passam por ter um emprego - especialmente num contexto em que vemos os empregos serem cada vez mais inviáveis, e as garantias deixarem de existir. Daí é preciso experimentar novas coisas, ter coragem, inventar, criar. Muitas vezes isso pode resultar na necessidade de desconstruir uma imagem de carreira, ou de glamour em torno do trabalho, e da importância que a gente dá a isso no nosso mundo. Acredite, não é um processo fácil ir contra essa corrente.
Também ainda sinto falta de um quintal. As cidades pequenas, infelizmente, se espelham nas grandes. Em vez de aprenderem com os erros delas, vemos muitos desses erros repetidos, o que dá um pouco de angústia. A carência de espaços públicos aqui, por exemplo, é tão grande quanto a verticalização. O espaço urbano é muito pensado em torno dos carros. E foi uma dor muito grande quando me mudei e não achei uma casa pra alugar. As pessoas moram em casas sim, mas não as alugam. Aluguel sempre foi especulação imobiliária, e o mesmo raciocínio tacanho da cidade grande é posto em prática nas pequenas: é preciso rentabilizar ao máximo os terrenos. É assim que brotam centenas de prédios por aqui também. O jeito foi ter mais paciência, e só agora no terceiro ano da minha mudança é que finalmente vou ter a oportunidade de morar em uma casa.
Estou ponderando todas essas coisas porque depois desse tempo experimentando a vida aqui ficou claro pra mim que não basta se mudar pra uma cidade menor pra resolver todos os problemas. A escala das cidades resolvemos trocando cidade gigantes por menores, e isso é muito relevante, mas a questão é que só isso não é suficiente. Ainda estaremos por demais dentro do sistema. É preciso tempo e paciência pra se ajeitar e encontrar aquilo que se deseja, ou realmente romper ainda mais com algumas coisas que esperam que sejamos e façamos. Por isso é que eu e meus amigos, mesmo morando num lugar com 75mil habitantes, continuamos falando de ir "morar no mato". Nas cidades maiores, as opções de resistir e fazer diferente são mais estranguladas, mas isso não significa que não seja preciso pensar nessa resistência em qualquer contexto em que a gente caminhe. Seja na capital, na cidade grande, ou até mesmo no meio do mato.
Prato Principal
Nessa de experimentar novas vivências e encurtar a distância entre quem planta e quem come, visitei algumas propriedades rurais familiares por aqui. Uma delas é a da família da Flávia e do Luiz, que produzem alimentos agroecológicos e orgânicos na zona rural de Coronel Vivida, cidadezinha ainda menor que fica no entorno de Pato Branco.

A Flávia, o Luiz e um molho de azedinhas
O trabalho e a história dos dois chama muito a atenção. Eles vieram de famílias no meio rural, mas haviam saído, estudado e vivido em contextos urbanos. Porém, acabaram escolhendo voltar pro campo.
Um dos grande problemas da agricultura familiar é o da mão de obra e do êxodo rural. As famílias estão envelhecendo e os filhos, normalmente, saem pra estudar e não voltam pra poder cuidar da propriedade. Em geral eles preferem outros caminhos mais valorizados, trabalhos urbanos menos duros e mais bem remunerados, dentro das cidades aos quais já estão familiarizados. É perfeitamente compreensível. Porém, isto é um problema porque sem mão-de-obra, o jeito é produzir fazendo uso de técnicas que economizem o trabalho: usar máquinas caras e agrotóxico, bastante agrotóxico, pra tornar a produção viável. Isso é uma das chaves que perpetua o ciclo de insustentabilidade da agricultura familiar: pra produzir nesses moldes é preciso muito dinheiro, e daí vêm os empréstimos. Como se não bastasse que produzir comida seja muito pouco valorizado, é preciso lembrar que produzir comida é sempre um negócio muito arriscado: pode chover demais, ou de menos, fazer um sol calcinante ou rolar uma sucessão inesperadas de geadas e você pode perder todo o trabalho da lavoura. E o risco é ainda maior no contexto de mudanças climáticas. Então os empréstimos podem significa a ruína do agricultor familiar.
A agricultura orgânica e a agroecologia são técnicas viáveis, mas é claro que elas pressupõem uma mudança na estrutura do nosso pensamento, e na estrutura do mundo em que a gente vive. Sem a mecanização e os agrotóxicos, é preciso de mais mão de obra pra produzir comida. É preciso mais coragem, vontade de experimentar, e ajuda coletiva pra fazer diferente.

Beterrabas e suas folhas recém-colhidas pelo pai da Flávia.
Vale dizer que as folhas também são comestíveis.
O Luiz e a Flávia chamam muito a minha atenção porque parecem estar confiantes em vivenciar a mudança: escolhendo voltar pra terra, eles puderam propor junto a sua família um tipo de agricultura diferente. Essa escolha trouxe não só a possibilidade de produzir orgânicos, mas possivelmente também a continuidade da agricultura na suas famílias, e a possibilidade de existir um alimento bom pra ser apreciado na cidade. É uma escolha nobre.
Foi muito interessante conhecermos de perto essa experiência deles. Deu pra entender como a mudança significa estar aberto para experimentar outras coisas. Este ano é a primeira vez que eles estão plantando tomates no sistema agroecológico. Então, eles plantaram 6 variedades diferentes de tomates em dois tipos de manejo diferentes: um em estufa, com controle da água que é usada pra rega (chama-se sistema de gotejamento), e outro em campo aberto, recebendo todo sol e toda a água que São Pedro mandar. Isso é importante porque assim eles vão entender que tomate e que sistema vai produzir mais, com menos pragas e menos trabalho, com melhor sabor. Além de estarem plantando, eles estão construindo conhecimento.

A estufa experimental com pés de tomate
Faz muita diferença também que eles recebam apoio. A nossa visita foi feita em conjunto com agrônomos que trabalham na região, e essa assessoria de pessoas dispostas pensar e fazer diferente na agronomia é rara e preciosa. Agroecologia não é apenas parar de usar adubos químicos, herbicidas e pesticidas, mas lidar com a produção com outros conhecimentos. Muitos deles, inclusive, que fazem parte da nossa experiência de 10.000 anos como uma sociedade agrícola e não vem somente da ciência. Por isso, construir redes de apoio é fundamental.
A produção deles tem um mercado muito bem estabelecido, e eles também experimentam vender de jeitos diferentes, usando as tecnologias de comunicação: entregam cestas na cidade a partir de pedidos pelo whatsapp, vendem em feiras e em mercados na cidade. Em todos os casos, a distância entre eles e a gente que está saboreando a produção é bem pequenininha - a gente se encontra todas as semanas na feira. E por conta disso, o preço final é diferente do que a gente vê sendo praticado nos mercados (ainda mais se compararmos com as cidades grandes). Faz diferença tanto pra gente que paga quanto pra eles, que recebem valores melhores pelo que produzem.
O que acho essencial na discussão é que as pessoas precisam saber que existem outras opções. Não há rotas certas pra resistir ao sistema, e essa questão não é exclusividade de quem está vivendo nos grandes centros. Seja no campo ou na cidade, é preciso experimentar e descobrir novas formas de viver.
Sobremesa
No circuito urbano ainda ouvimos muito pouco sobre as pessoas que estão experimentando fazer diferente no contexto do campo, como contei um pouco da vivência da Flávia e do Luiz. No mini-documentário As sementes, me emocionei muito de ouvir as mulheres de diferentes estados do país falando sobre sua vivência de agroecologia e feminismo. Sabidamente, uma delas logo no início dá o recado: Acho que é mais fácil entender o que é agroecologia vivendo do que descrevendo com palavras bonitas, né? Mesmo assim, as palavras e as imagens são uma ponte pra gente começar a perceber essa vivência. Vale muito assistir.
Sobre esse fazer diferente, longe de se parecer com uma visão triste de que temos só que abrir mão das coisas interessantes que existem, o fim do mundo que conhecemos se parece mais com a imagem da alegria. Quando tudo desmorona, como já estamos sentindo acontecer, são abertas possibilidades de criarmos novas histórias, e é claro que algumas dessas histórias já estão sendo imaginadas, escritas, ensaiadas. É sobre esse sentimento que o livro No tempo das catástrofes, da filósofa Isabelle Stengers fala, e resolvi conversar sobre alguns pontos importantes dessa mudança no ensaio Leituras para o fim do mundo, publicado no Mulheres que escrevem.
E pra gente botar a mão na massa, deixo dois convites: no primeiro explico como fazer mostarda caseira, um processo tão simples, mas com um resultado tão mais saboroso que os do supermercado. Fazer as coisas em casa é uma tentativa de resistência a esse sistema maluco no qual interessa só o dinheiro e não que a gente tenha tempo e energia pra fazer coisas que nos interessam de fato. E o segundo convite é fazer suco de jabuticaba fermentado, uma receita pra reconhecer e lidar com a abundância da fruta quando chega a sua temporada. A receita chegou até mim pelas mãos da minha amiga Josi, mas a verdade é que a Josi aprendeu mesmo conversando com quem planta. A gente só faz é espalhar.
Você também tem pensado em morar no mato? Já passou pela experiência recente de se mudar pra uma cidade menor, ou pro campo mesmo, em busca de mais tempo e espaço? Ou tem tentado algo de diferente do que é esperado de você dentro do contexto das cidades grandes? Me escreva pra gente continuar essas trocas. Precisamos muito delas porque ainda tem todo um mundo por ser inventado.
Obrigada por continuar por aqui, por ser parte dessa conversa, e até o próximo mês!
Um abraço,
Carla Soares
OutraCozinha