[OutraCozinha #24] Flor de estufa
Uma coisa que me causa estranhamento é com o quanto não me identifico com a maioria das coisas que são escritas sobre comida. Minha estante de livros sobre comida é incomum porque apesar de gostar tanto de cozinhar nunca me interessou ter uma vasta coleção de receitas, mas de livros sobre história, antropologia, química, política, sociologia (da comida). Os blogs que de fato sigo e não perco uma postagem conto em uma única mão, e quase não tem receitas. Quando preciso me guiar de alguma forma pelo que já foi testado antes, tenho alguns livros e blogs conhecidos que recorro, que tem boas receitas vegetarianas com uma pegada de fazer comida do zero que adoro, mas em geral eles não têm muitas histórias, e talvez por isso minha relação com eles não vá muito longe. Mas uma abordagem que preciso confessar que tenho aversão e não consigo passar nem perto é quando a conversa sobre comida gira em torno de nutrientes.
Nunca estou muito interessada em falar ou ouvir sobre os nutrientes dos alimentos, as suas propriedades funcionais, os teores de lipídios, glicídios, protídeos, cálcio, ferro, fósforo, vitamina A. Não é uma questão de falta de conhecimento, mas de uma sensação estranha que ouvir e falar sobre nutrientes me causa. Tem qualquer coisa ali meio distante, uma linguagem que pra mim tenta impedir a gente de entender o que é a comida, que me afasta muito mais do que aproxima. Mas sei que muita gente se interessa. E o melhor que consigo fazer com essa abordagem é tentar entender por que ela causa tanto fascínio.
Prato Principal
Ninguém em sã consciência vai dizer que não se interessa por ter saúde, ou ser saudável. Só que isso não significa que a saúde esteja contida em rótulos, quantificações, medições e um saber frio de que tomates são ricos em licopenos.
Comer deveria ser uma atividade natural, dado que a gente fica com fome várias vezes ao dia. Aliás, a gente come também sem estar exatamente com fome, e só isso já um motivo suficiente pra entender que comer não é igual se alimentar.
Tem um aspecto muito perverso na forma como a linguagem da nutrição é apropriada pela indústria alimentícia, pelo mercado, pela mídia e por todos nós. Tratar arroz e pão por carboidrato ou laranja e acerola por vitamina C é usar essa linguagem de uma maneira reducionista e controladora. Lembra muito um outro tipo de fala que a gente vê por aí, que diz que a gente nasceu pra produzir e trabalhar e pode até transformar estresse e ansiedade em produtividade, e produzir mais e mais e mais, infinitamente mais sem haver um limite. Como se aqui dentro houvesse uma engrenagem no lugar de um coração.
Essa abordagem sobre comida centrada em nutrientes reforça na gente essa metáfora do corpo-máquina, do corpo como uma entidade reprogramável, que a gente pode alterar de acordo com a nossa vontade e a disponibilidade tecnológica pra funcionarem de uma maneira otimizada. Pro corpo máquina, é como se não houvessem barreiras. Pra funcionar de maneira ótima a gente só precisa ter as peças corretas (e trocá-las quando elas não servirem mais), só precisa do mecanismo correto (e tomar pílulas quando o mecanismo prega peças na gente e se recusa a obedecer), e do combustível correto. É uma abordagem tão presente que parece fazer sentido num primeiro momento, mas quando reconhecemos o quanto estamos insatisfeitos, deprimidos, e exaustos-e-correndo-e-dopados, a gente começa a se perguntar se será mesmo que essa metáfora faz algum sentido.
Desconsiderar aspectos subjetivos da nossa alimentação como os afetos, a memória, o pertencimento, o prazer, a história pessoal de cada um, a identidade cultural de certos gostos e aprendizados, pra focar em nutrientes como argumento pra botar algo na boca é não ser capaz de compreender o que significa mesmo comer.
Um exemplo recente do tipo de monstruosidade que esse pensamento do corpo-máquina produz quando falamos de comida é a proposta do prefeito de São Paulo de produzir um composto alimentar, (supostamente) enriquecido com os nutrientes que a gente precisa pra seguir vivendo. Ela era de uma insensibilidade gritante com o que significa se alimentar. Haviam outros problemas graves com relação à proposta — o supostamente entre parênteses é um deles, mas há também questões de favorecimento econômico da indústria que assim evitaria pagar taxas de descarte, e um desprezo claramente classista. Porém quando você acredita que pode dar a casca do ovo a alguém em vez do ovo inteiro, você perde de vista completamente a dimensão humana da experiência.
O caso causou indignação coletiva, mas o fato é que essa ideia de que o corpo é uma espécie de máquina sofisticada, que só precisa ser alimentada com os compostos corretos ainda segue firme por aí.
Um dos livros mais interessantes que já li sobre o assunto ficou em evidência depois que o jornalista-escritor-professor Michael Pollan popularizou o termo nutricionismo, cunhado por Gyorgy Scrinis pra se referir a essa abordagem reducionista da comida. No livro que tem esse nome como título, e que ainda não tem tradução pro português, Scrinis desenha a história de como essa abordagem da nutrição ganhou terreno a ponto da forma popular de se falar sobre comida ter se tornado predominantemente afetada por esse tipo de linguagem técnica. Apesar do tom mais formal — Scrinis é professor de política da nutrição na Universidade de Melbourne — as histórias tem um bom espaço no livro, e é muito interessante entender como a margarina se popularizou em substituição à manteiga ou como as proteínas se tornaram sinônimo de indispensável e a única coisa que você deve ter pânico de cortar do seu prato.
Scrinis explica como esse tratamento tem uma afinidade grande com a indústria, que sempre gostou muito da forma direta e objetiva com que os alimentos pareciam poder ser destrinchados em carboidratos, proteínas e gorduras. Essa abordagem foi incentivada também porque a indústria tem sido um dos grandes financiadores do desenvolvimento científico da nutrição. Não por acaso, os macro e micro nutrientes sempre foram utilizados pelos departamentos de comunicação e marketing pra comunicar sobre os atributos de um determinado pacote. Eles aparecem como uma linguagem moderna, superior e imbuída da segurança e neutralidade da ciência. Pra indústria o incentivo dessa visão de componentes fazia sentido pois importava muito que se compreendessem as partes dos alimentos e como eles interagiriam com nossos corpos para que fosse possível manipulá-los e processá-los. A questão é que um punhado de carboidratos na farinata proposta pelo prefeito de São Paulo não é a mesma coisa que comer uma batata assada com ervas e azeite entre amigos, como certamente a revolta que sentimos com a proposta nos deixa entender. E medir essa diferença não é simples, mas sentimos isso sensivelmente cada vez que participamos de rituais em torno da mesa.
Não é que a gente vá ignorar esse conhecimento, mas há uma diferença marcante entre deixar os grãos de molho da noite para o dia antes de cozinhar, porque ao longo do tempo muitas pessoas faziam assim, e a gente percebeu que os grãos ficavam melhores, e deixar os grãos de molho para retirar os fitatos, essas-partículas-antinutricionais-que-se-associam-a-alguns- minerais-formando-complexos-insolúveis-e-diminuindo-a-biodisponibilidade-de-nutrientes-quando-a-gente-ingere-os-alimentos.
A linguagem do nutricionismo, essa, que parece cheia de tecnicidades, precisão, prova científica e rebuscamento, é também cheia de controle, medo, insegurança, reducionismo, esvaziamento e demonizações. Toda essa preocupação é fruto de uma ciência que foca em controle e observação de partes e não de um entendimento de um significado global de um alimento.
Ao escolher falarmos nutricionês estamos reforçando o corpo-máquina, a ansiedade de comer as coisas corretas, o imperativo do conhecimento técnico no lugar do tradicional, a desvalorização do subjetivo no lugar do objetivo. Ao darmos ênfase na quantidade de antioxidantes dos mirtilos, a gente escolhe dar espaço pro controle, pra comida combustível, pra função no lugar da fruição. E tudo isso já é tão alimentado nesse mundo que a gente vive que me pergunto se quero mesmo tomar parte nessa festa. Prefiro, ainda que não seja simples responder, me perguntar o que é que quero alimentar? O que quero fazer florescer?
Quando eu era mais nova, eu falava que me sentia como uma flor de estufa. A flor de estufa é maravilhosa; são aquelas que a gente fica admirados quando vamos comprar um vaso na flora, mas que assim que a gente leva pra casa ela perde seu brilho, logo murcha e as flores caem. Eu vivia uma vida rigorosamente controlada, em que eu observava muito aquilo que eu colocava pra dentro, com uma quantidade de sol e de regas e de podas que a flor de estufa supostamente precisaria pra se manter viçosa. Mas essa vida me deixava triste, porque a flor de estufa tem um esplendor tão controlado que não se deixa afetar. Eu tinha muito medo de murchar, ao mesmo tempo que não queria viver uma vida de flor de estufa; queria poder ser tocada e tocar as outras pessoas, e participar dos rituais e das vivências, alimentar e ser alimentada. Viver é estar o tempo todo em contato com esse afetar possível. É uma viagem feita de opções, medos, forças, inseguranças, persistências, constâncias e transições. O que a flor de estufa deixa a gente entender é que esse controle todo nunca foi viável. A flor de estufa nunca foi real porque, como nos versos de Fernando Pessoa, "viver não é preciso": nunca teve um jeito exato.
Sobremesa
Nessa conversa sobre controle dos corpos, um ensaio da Juliana Cunha parte de uma observação de um artigo publicado na Revista Piaui sobre a cultura de academia. No artigo, ela observa, o autor discutia acertadamente sobre como a contagem das calorias é uma forma de produtivismo que parece ter escapado do trabalho, mas errava ao apontar que o exercício é uma forma de economizar nossos corpos. O fato, mostrado na reportagem, de que homens e mulheres estão na academia em número equivalentes é um bom indicativo de que a questão não se resume à aparência: há algo ali do prazer de se controlar os corpos, e uma questão do espaço de jurisdição, que mais e mais se restringe literalmente ao meu corpo. É nele que eu mando e em nada mais. Ele, que inevitavelmente me fará doente e fraca, que inevitavelmente me deixará na mão, ainda assim parece ser a coisa mais concreta e sob controle que tenho. Se isso não te desespera, bem, você é forte.
No Think Olga, a nutricionista Paola Altheia fala sobre quando ser saudável não é saudável.
No Eater, a jornalista Amanda Mull discute as fotos de comida no Instagram e como elas transformam a atividade física de comer refeições e lanchinhos em uma performance.
No blog, um tempo atrás compartilhei a descoberta de que se comia a semente (ou o coração) do chuchu e chamei a atenção sobre como naturalizamos alguns hábitos — como o de desprezar essa parte do legume, pois sempre foi assim na minha casa. Cada vez que conseguimos nos perguntar por que é mesmo que é assim, a gente acaba parando, refletindo, tentando de outros jeitos. As mudanças aparecem é de sabermos fazer as perguntas muito mais do que de saber dar respostas.
Na Mulheres que Escrevem, o ensaio Como ler livros de receitas propõe uma reflexão sobre contexto, interpretação, e fetichização de ingredientes que não fazem parte da vida da gente. Mudar a relação com os livros de receita é uma parte fundamental na construção da nossa autonomia — dentro das cozinhas, mas também fora, reconhecendo que somos capazes de criar, de fazer, de validar as nossas experiências e transformá-las em conhecimento e ação.
Pra quem chegou até aqui, obrigada pela companhia. Se quiser comentar, compartilhar alguma história, links, vídeos, escritos e outras discussões sobre o assunto, é só responder essa mensagem.
Espero que não esteja muito tarde pra dizer Feliz 2018.
Um abraço e até o próximo mês,
Carla Soares
OutraCozinha