[OutraCozinha #26] Por que comemos o que comemos?
Se comer fosse só “colocar energia para dentro”, pura necessidade fisiológica, todo mundo comeria da mesma forma e as mesmas coisas, só pra matar a fome. Mas a gente sabe que não funciona assim. (Há quem pense que seja possível uma “ração humana”, mas Soylent me causa arrepios).
Nem numa mesma casa a gente gosta das mesmas coisas, e isso só piora quanto mais a gente amplia as vistas para outras pessoas, famílias, cidades, ou países.
Se você já reparou nisso, talvez já tenha se perguntado: por que é que a gente dá valor para algumas comidas enquanto torce o nariz para outras? O que é que faz a gente ter vontade de pôr certas comidas no prato? Por que, afinal, a gente come o que a gente come?
Estas são perguntas com uma infinidade de respostas possíveis.
Uma vez, enquanto cozinhava, me dei conta que tinha parado de tirar os talos da couve até quase a metade da folha, como sempre fiz, antes de picá-la bem fininho. Eu tinha aprendido que a couve se fazia tirando a folha bem rente aos talos, e que eles deviam ser descartados, pois eram fibrosos e não ficaria gostoso fazê-lo junto das folhas. Quando prestei atenção em como tinha mudado um hábito e passado a comer uma parte que eu jogava fora, me dei conta de que essa coisa de “aproveitar” não é exatamente o que se passava na minha cabeça. Então retomei essa pergunta sobre comida, identidade, e essas escolhas alimentares que a gente faz e nem percebe. Por que, afinal, a gente come o que a gente come? E dá pra mudar isso sem sentir como se fosse um desgosto?
Prato Principal
Uma das respostas possíveis pra pergunta do por quê a gente come o que a gente come vai na direção de olhar com carinho pra como são definidos os nossos gostos individuais.
Eu adoro sabores amargos. Gosto das cervejas mais amargas — cervejas IPAs super lupuladas me agradam imensamente — , e também adoro todas as verduras amargas como almeirão, mostarda, radicchio, chicória. Só que não curto muito sabores azedos. Suco de limão não é meu favorito, e se puder escolher eu sempre prefiro ele suave, que é o que outras pessoas chamariam de aguado mesmo. Iogurtes prefiro menos azedo, e também não gosto muito de temperar as coisas com vinagre ou limão.
Quando a gente é criança, as pessoas costumam achar que essas preferências são manha, mas a verdade é que existe um componente biológico nessas afinidades. Nem sempre adianta insistir. É bem provável que eu goste e desgoste desses sabores todos por conta da minha pouca sensibilidade para amargos. Há pesquisas que mostram que os nossos receptores de sabores na língua são distribuídos de maneiras diferentes em cada pessoa, e isso é determinado pelo nosso DNA. Tem quem seja mais sensível ou menos sensível a determinados sabores — e por isso teria maior probabilidade de tolerá-los. Existe um teste “simples” que pode ser feito, no remoto caso de que você tenha acesso a um laboratório de química: pessoas que sentem o sabor residual amargo da substância propiltiouracil (usada para tratar hipertireoidismo) são considerados supertasters, ou pessoas com muita sensibilidade para sabores. Podemos dizer que o amargo pra essas pessoas é mais amargo. E provavelmente, não é esse o meu caso.
Embora isso seja bem interessante, há outras razões que nos fazem gostar de algumas comidas que fogem desse padrão individual, e que teriam mais a ver com os nossos hábitos alimentares como grupo.
Parte da gente gostar de coisas específicas se deve ao fato da nossa alimentação ser muito marcada pelo simbólico, assim como outros hábitos nossos. Os rituais, as regras do comer junto, e o preparo dos alimentos (o que a gente chama de “cozinha”) são a parte mais óbvia disso. Mas tem mais. Os alimentos em si também são escolhidos por valores simbólicos. A influência da cultura é tão grande no modo como a gente come que a comida é considerada parte da nossa identidade.
Essa relação com a identidade foi o que eu explorei tempos atrás na crônica Tereré e Chimarrão: quando eu, mineira, me vi confrontada com os hábitos do sul onde agora moro, me vi entre a cruz e a caldeirinha: entre a ameaça de ser um pouco menos mineira ao adotar a bebida, mas sem com isso conseguir me tornar mais paranaense. O resultado? medo de experimentar o novo: “Chimarrão, meus amigos, não. Eu sou do povo do café”, eu escrevi. Nossos pratos e bebidas tradicionais enfatizam nossa identidade de grupo, mas também acontece a mesma coisa com os alimentos que culturalmente negamos. Dizer ‘não’ pro chimarrão, no fundo, é um jeito de também dizer “olha, eu (ainda) não sou daqui”.
***
Algumas das melhores histórias que aprendi sobre porque algumas culturas fazem uso e valorizam determinados ingredientes, mas não outros, encontrei no livro A História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari. Foram eles que me explicaram, por exemplo, algumas razões bíblicas para as regras alimentares, que até hoje possuem impacto nas escolhas feitas pelos judeus. A proibição do sangue e da carne de determinados animais, por exemplo, se dá por alguns deles serem considerados alimentos impuros.
Para os judeus, Deus havia criado todas as criaturas a partir dos três elementos (terra, água, ar). Cada espécie pertenceria a um único elemento: foi dali que a espécie se criou, e é nesse mesmo ambiente que deve viver. O animal impuro seria aquele que não respeitaria esses “desígnios do divino”. É o caso dos crustáceos, que apesar de dotados de órgãos aquáticos, se deslocam sobre a terra. Ou algumas aves como a gaivota, o pelicano e os patos, pois apesar de feitos para voar, transitam entre a água e o ar. Todo esse mito da separação dos animais, no entanto, remete à crença do povo hebreu de que seu povo não deveria se misturar com os demais. Assim, as referências alimentares são profundamente enraizadas na cultura religiosa desse grupo.
Outra história que esse livro me contou foi a do mundo antigo clássico, dos gregos e dos romanos. Pra eles, a comida era tão importante que eles achavam que era isso o que separava o ser humano civilizado (eles) dos animais e dos bárbaros (os não civilizados, os outros). Eles não comiam apenas para alimentar o corpo, mas, principalmente, para transformar essa ocasião em um momento de sociabilidade.
Além de associar comida e convivência, essas duas civilizações também gostavam particularmente de três culturas: a do trigo, da vinha e da oliveira. Não por acaso, os símbolos desses povos eram o pão, o vinho e o azeite. Mas repare bem: os símbolos não eram o trigo, a uva e azeitona; eram pão, vinho e azeite. Essas três comidas, do ponto de vista dos gregos e romanos, são uma síntese do que significa cultura — são três alimentos cultivados, no sentido de que foram elaborados, melhorados, transformados para terem seu lugar à mesa. Era isso o que os representavam, o que eles mais valorizavam. Eles faziam pouco caso das sopas, das papas de outros cereais e do uso de legumes. Consideravam ainda menos valorosos os produtos de coleta, típicos das terras incultas e não civilizadas — ou seja, coisa de bárbaros. A caça, por incrível que pareça, tinha uma conotação de trabalho servil ou uma opção de pobreza. É por esse motivo que você nunca viu nenhum poema clássico exaltando a carne.
É claro que também existem histórias sobre os alimentos da nossa cultura. A história do surgimento da feijoada, por exemplo, já faz parte do imaginário popular. Contam que os senhores de engenho, ao matar os porcos, utilizavam apenas as partes consideradas “nobres”, que eram coincidentemente as mais carnudas. A carne era um alimento valorizado pelos portugueses colonizadores — e a valorização que ainda damos a ela é uma herança portuguesa no gosto brasileiro que perdura até hoje. Partes com cartilagem e grandes volumes de ossos — como os pés, as orelhas, o focinho do porco — eram descartadas. Os escravizados, que possuíam acesso limitado à comida, aproveitavam esses elementos jogando-os no feijão, que era popular entre eles. Essas partes do porco, ricas em gorduras, ofereciam uma sustância compatível com o trabalho corporal pesado a que os escravizados eram submetidos. A feijoada, assim, também conciliava nutrição e cultura.
O caso da feijoada ou a desvalorização dos legumes pelas civilizações romanas e gregas e o contraste com o modo como encaramos esses alimentos nos dias de hoje na nossa cultura faz a gente perceber que o motivo de não comermos algumas partes de uma comida não tem muito a ver com elas serem ou deixarem de ser gostosas. Porém, é nesses casos de uma comida desprezada que a gente se vê falando de um "aproveitar" esses alimentos. Não chega a ser surpreendente a forma como a gente se refere a essas partes menos nobres, porque aproveitar não é uma palavra muito apetitosa. Nesse contexto, dá a ideia de tornar algo útil, proveitoso; empregar de algum jeito uma coisa que não tinha serventia ou valor. Então esse verbo acaba reforçando a ideia de que essas partes são sim menos interessantes, ainda que possam se transformar em qualquer coisa que valha.
A questão é que se não é real que essas partes dos alimentos não são tão boas mas apenas sintomas da nossa cultura, vale a pena reconsiderar a forma como a gente fala delas. Vale a pena parar pra se perguntar: Porque é que querendo valorizar uma parte esquecida a gente usa justamente o termo “aproveitar”? Porque não estamos enfatizando precisamente o que esses alimentos e partes menos valorizadas tem de bom, como gosto, textura, aroma, abundância ou o que quer que a gente ame?
***
Dados do IBGE nos dão melhor dimensão de como a gente usa os alimentos. 20% da comida que nós, consumidores finais, compramos, não costuma ser consumida. O mais comum não é a perda de alimentos porque compramos demais e perdemos coisas na geladeira. O IBGE chama a forma mais comum de desperdício caseiro de distorção no uso do alimento. Talos, folhas e cascas muitas vezes são percebidos como partes não comestíveis por nós, o que leva a que um quarto de toda a nossa produção de frutas, verduras e legumes sejam postas de lado. Não entram nessa conta o desperdício da industria ou do comércio, e nem as partes menos convencionais de alimentos comuns, como o umbigo da bananeira ou as flores do alho poró, que são comestíveis mais pouco conhecidas e raramente comercializadas. Estamos falando de alimentos comuns, mas que achamos que algumas partes deles não são boas o suficiente para serem comidas, mesmo que nunca as tenhamos provado.
Quando contei lá no começo de como me peguei usando o talo de couve no refogado, aquele que eu sempre tirava, achei que pudesse ter a ver com o fato de estar bem longe da minha família. Minha mãe me ensinou a fazer a couve sem o talo, mas ela está há 1500km de distância de mim. Livre de qualquer possibilidade remota de julgamentos, deve ter ficado mais fácil pra mim repensar o uso. Mas, quando continuei pensando no assunto, me dei conta que essa coisa de medo da crítica era lugar comum demais. Devia ser outra coisa. Fui me lembrando que fazia um tempo que estava interessada em experimentar alimentos novos, e novos jeitos de preparar as coisas. Então, por um tempo, eu comecei tirando os talos e acrescentando em dois pratos: no arroz comum - e aí os talos picadinhos ficavam cozinhando por mais tempo que no refogado, e achei que não iam ficar fibrosos como eu imaginei que os talos seriam; e em curries tailandeses, que sempre aceitam bem os legumes que a gente tem disponível e envolvem uma quantidade absurda de tempero, deixando qualquer talinho bem gostoso. Reconhecer a importância da criatividade com ingredientes que tenho à mão vinha fazendo mais e mais sentido. Eu não queria jogar fora o talo da couve, e estava muito a fim de brincar. E não tinha nada a ver com economia ou desperdício. Tinha a ver com as coisas que eu valorizo.
Quando alguém fala sobre a utilização das partes consideradas menos nobres desses alimentos, o que a gente ouve é quase exclusivamente sobre as vantagens econômicas para seu uso. “Aproveite melhor os alimentos e economize”, eles “favorecem a alimentação equilibrada e de baixo custo”. Elas associam pra gente que aproveitamento sempre tem algo a ver com economia, além de lembrar que pode ter a ver com nutrição — o quanto um alimento é rico em fibras, minerais, e coisas do gênero — que sempre esbarra no problema do nutricionismo.
Isso significa que bater na tecla do aproveitamento de alimentos pode ser nobre, mas também reforça um tipo de argumento muito específico, que é o da importância que a economia tem no nosso mundo.
O que me surpreende na onipresença desse argumento é que é muito difícil alguém valorizar algum alimento simplesmente pelo quão barato ele é. Muita gente precisa se balizar pelo preço na hora de fazer escolhas, mas isso é muito diferente de apreciar alguma coisa só porque ela é barata. É muito difícil estabelecer uma relação de afeto puramente com o preço ou nutriente de uma comida. E valorizar uma comida é afetivo, é cultural. A gente estabelece afetos com o gosto, com a história, com as vezes que a gente experimenta e gosta ou desgosta, com as pessoas que nos oferecem determinada comida, com a facilidade e o alívio que essa facilidade proporciona, com o grupo que a gente faz parte. Com o preço, só se ele vier acompanhado de outras vantagens perceptíveis. Algo como barato e gostoso.
Os textos sobre comida que focam no aspecto econômico (ou nutricional, que foi papo de outra cartinha) podem convencer algumas pessoas porque estamos muito acostumados a valorizar a economia, mas vão sempre pecar em criar afetos. Focar só na economia reafirma o que a gente já acha sobre essas partes rejeitadas: são menos nobres, mas podem ser “aproveitadas”. É só mais do mesmo.
Defender que uma comida é boa unicamente porque é econômica, de certa forma, é parte da causa do desperdício. Se você não se reconhece como parte do grupo de pessoas que precisa “aproveitar a comida não muito boa”, não vai ser simples incorporar no cotidiano essa nova experiência. E não me parece que você esteja errado por agir assim.
***
Uns anos atrás, tinha um forró que dizia assim:
“Se farinha fosse americana
mandioca importada,
banquete de bacana
era farinhada”
Amo como a lógica econômica é escarafunchada nessa letra. Damos mesmo valor ao que é caro, ao que é raro, ao que é do outro que é rico — e quase sempre ele é o estrangeiro. Para valorizar outras coisas que não o capital, a gente tem que parar de colocar o dinheiro como parâmetro para mediar nossa relação com o mundo. Temos que começar a rejeitar essas metáforas econômicas. Tempo não é dinheiro e comida não é pra ser aproveitada. A comida merece ocupar outro lugar: sabor, partilha, cultura, afeto. Mudar a forma como falamos de comida é uma forma de ampliar aquilo que temos à nossa disposição. Mudar nosso discurso também é parte de uma mudança nas coisas que comemos e que amamos comer.
Não sei se você já usa, ou se ficou curioso: o talo da couve, que eu me peguei usando não fez diferença nenhuma no refogado. Talvez seja porque eu pico muito fino, e muitas vezes até use o processador pra picar. Quando me dei conta que estava fazendo isso sistematicamente, ri de mim mesma, que exclui os talos por tantos anos sem nunca me perguntar o motivo. Não faz mal. A experiência da cozinha não se resume à comida. Cozinhar também é simbólico, e essa experiência rendeu uma história, que também é parte do que quero partilhar junto com a comida que faço. É por isso que eu escrevo.
Sobremesa
Se você se interessa por conhecer mais da história do por quê a gente come o que a gente come, essa reportagem da BBC sobre os sabores que preservam a história do Brasil é pra você. Tem tacacá, queijo minas, acarajé e cajuína, e a centralidade das mulheres na preservação desse patrimônio imaterial que são as nossas comidas: Reconhecer como patrimônio a relação das mulheres com saberes da culinária tradicional é transformar um índice de submissão em um instrumento de empoderamento: ser baiana de acarajé ou tacacazeira é muito mais do que cozinhar esses alimentos, é herdar um ofício capaz de organizar a vida de toda uma comunidade.
Você precisa tomar um sorvete é um ensaio da Anna Vitória Rocha que me deixou tão sentimental quando li. Ela fala sobre as pequenas coisas que a gente precisa fazer e que mudam essa lógica de valorização dessa coisa econômica tamanho único. São pequenas resistências na forma de coisas supérfluas e doces, e ainda que seja meio bocó acreditar que um longo banho de banheira seja um manifesto político, visto que não existe sonho mais classe média que esse, ainda me parece uma resposta adequada à grande máxima de não pensar em crise, mas trabalhar. Prestigiem também a newsletter dela, que é uma delícia.
No blog, contei o estranho caso da pimenta rosa, uma especiaria muito comum na arborização urbana de norte a sul do país, mas que é vendida a preços exorbitantes nos mercados por aí porque geralmente é importada. O desvendar desse mistério remexe com aquela interrogação na cabeça da gente sobre como o preço nem sempre tem a ver com a abundância de algo. Na postagem, aproveitei pra deixar uma receitinha de salada de manga com pimenta rosa e vinagre balsâmico que é bem prática, pra quem quiser experimentar coisas novas com as suas (e quem aprender a identificar a especiaria pode colher nas ruas). Pra ler tomando café, tem a minha estreia numa coluna mensal de cartas sobre comida e feminismo na Mulheres que escrevem. Neste primeiro mês, respondi uma carta sobre fazer as pazes com a cozinha, pra todas nós que ainda precisamos nos lembrar de que ter que se livrar da submissão é diferente de ter que se livrar das atividades que as mulheres vêm historicamente fazendo ao longo do tempo. Esse processo de amar fazer comida cotidianamente nunca me parece fácil. Quem quiser escrever pra mim com histórias sobre sua relação com a comida, cozinha e o feminino é só mandar! No mês que vem tem mais cartinha por lá (as identidade ficam anônimas, viu?) Por hoje é isso. Se quiser comentar as coisas inusitadas, as histórias e os hábitos que fazem parte da sua vida na cozinha, me mande um email ou passe no twitter pra esticar essa conversa. Um beijo e um pedaço de queijo,
Carla Soares OutraCozinha
As ilustrações que estampam a cartinha de hoje são da artista botânica Courtney Roth.
Todas as imagens que escolhi - acredite - são de plantas comestíveis, mas ela faz os olhos da gente brilhar com muitas outras plantas.