[OutraCozinha #27] Época de que
Você já ouviu esse conselho. Compre legumes-verduras-frutas da época: elas são mais baratas e de melhor qualidade. O triste é que ele não costuma vir acompanhado da informação de que pode ser bem difícil segui-lo e que isso não é coisa sua. Pra mim nunca funcionou. O sobe e desce de preços nem sempre pareciam ter uma coerência, e eu me sentia perdida, sem nunca conseguir aprender direito quando é época de que.
A verdade é que aprender isso no contexto de uma capital não faz muito sentido porque a sazonalidade é praticamente invisível. Numa capital, ou melhor, numa cidade a gente tem à nossa disposição tudo-o-tempo-todo, e isso inclui o que nem se produz direito no Brasil. O limite pra compra de coisas frescas nesses lugares é praticamente o tamanho do nosso bolso.
É claro que eu não vou dizer que isso seja uma coisa ruim. Ter um leque de sabores à disposição do seu desejo é realmente uma coisa boa, cômoda. E rica de possibilidades.
Ter tudo-o-tempo-todo, no entanto, é uma coisa muito recente na ordem das coisas do mundo. Para termos essa produção de tudo-o-tempo-todo foi preciso que fossem inventadas algumas técnicas de agricultura, que a gente dá o nome de Revolução Verde. A produção em estufa, adubos sintéticos e a mecanização do campo são alguns dos responsáveis por essa fartura que a gente vê nas gôndolas.
Só que tudo tem seu preço. Nesse processo nos tornamos mais dependentes do petróleo, que é usado pra fabricar pesticidas, herbicidas, fungicidas, fertilizantes sintéticos, diesel e gasolina para dirigir o maquinário que planta, colhe e aplica todos os “remédios” (bem entre aspas) que uma produção em larga escala precisa. A longo prazo, a gente sabe que nada disso é muito sustentável. Mas valia a pena tentar. A Revolução Verde prometia algo imenso: acabar com a fome do mundo.
A fartura do supermercado é visível mas o extermínio da fome nunca se cumpriu. A fome não era exatamente culpa da falta de comida, mas da falta de equilíbrio, da desigualdade econômica entre as pessoas. O perverso é que a Revolução Verde trouxe a reboque com o aumento da produção um desequilíbrio ainda maior em concentração de terras; também mudou a forma biodiversa como pequenos agricultores cultivavam, e trocou grande parte da variedade que existia por monoculturas; e tornou os produtores mais dependentes desses insumos e menos confiantes no conhecimento que eles tinham.
Outra coisa que é muito nova e indispensável no tudo-o-tempo-todo é a existência de mercados de tamanho super. Os primeiros que apareceram são de 1930, e os primeiros no Brasil apareceram na São Paulo da década de 50 (e sério, fico espantada com o quanto isso é recente). Supermercado é uma coisa que só faz sentido num mundo no qual os meios de transporte e a energia são baratos e disseminados, e os alimentos podem ser conservados por longos períodos, porque senão seria muito caro trazer coisas assim de lugares tão longes.
Esse mundo começou ontem: coisa de 60-70 anos no Brasil. Mas na escala da vida humana, isso significa que pra muitos de nós que estamos vivendo os dias de hoje uma vida urbana a sazonalidade é uma coisa quase mística, que a gente só tem como acreditar pela fé mesmo porque a gente nunca viu. Então não é surpresa que a gente não saiba mais muito bem quando é época de que.
Prato principal
Fugir das coisas comuns dá um pouco de trabalho. Entender sazonalidade não pode ser sobre decorar listas de frutas e meses, nem decorar preços pra tentar descobrir a época comparando preços. Só tem um jeito de saber isso de cor: é aprender com o coração, de um jeito que as coisas façam sentido pra gente.
Meus avós foram pessoas urbanas. Minha avó já nasceu em Belo Horizonte, mas morava em uma chácara no que hoje é a região do bairro Santa Efigênia. Já o meu avó sempre se identificou como uma pessoa da terra. Nasceu na roça de Abaeté, e por mais que tenha levado na vida adulta uma vida urbana, até o fim da vida buscou esse contato com a terra. Por conta deles e dessa ligação com o campo, que pode até ser meio torta mas faz na história deles algum sentido, eu experimentei pequenas coisas desse universo.
No fim de ano, na época perto das férias, minha casa vivia cheia de sacolas de mangas que vinham do pequeno sítio que eles tinham, e eram tantas que invariavelmente várias se perdiam. Eu comia até enjoar, e isso não é uma figura de linguagem. Lidar com a época de mangas é lidar com um tipo de fartura muito diferente da que eu estava acostumada. Talvez pra evitar essa situação eu deveria ter sido mais criativa do que só chupar as mangas, mas esse é o tipo de repertório que as compras picadas de tudo-o-tempo-todo do supermercado não ensina.
Goiabas apareciam perto dos dias de vento frio de outono, e eram tantas que com elas também vinham algumas goiabadas, que eu via minha avó fazer no chão usando uma espátula de pau comprida e um tacho de cobre. Ela gastava um dia inteiro pra fazer, as vezes até mais, e eu assistia curiosa as goiabas serem colhidas, o miolo limpo de bichos e depois passado na peneira pra retirar os caroços, e todo o resto ser colocado no tacho pra dar início ao cozimento. No meu mundinho cheio de uniformidade que o supermercado me proporcionava, eu até notava que a goiaba da roça tinha um sabor diferente, mas também me dava um pouquinho de estranhamento ter que tirar a parte não tão boa dos bichos. Era difícil pra mim valorizar essas goiabas, porque quando elas não tem etiqueta marcando o preço também parecem que não tem valor. Não é simples entender que quando dizemos que uma coisa não tem valor também pode significar que o valor é de uma excepcionalidade tão grande que a gente não sabe quantificar.
A horta não era uma coisa simples de manter. No verão a coisa andava mais autônoma, mas tinha mais bichos, e os pés de brócolis e couves quase sempre eu arrancava pra levar pras galinhas. As alfaces, essa coisa tão onipresente na vida da cidade, ficava melada e se estragava ainda no canteiro com as chuvas de verão, de modo que alface do sítio sempre vinha na época em que eu menos queria comer saladas: nas secas do inverno. Alface estranhamente, lá não era uma coisa o-tempo-todo.
Essas coisas todas fui entendendo pela proximidade — mínima — que existia entre a menina da cidade grande que eu fui e a terra. E o meu desagrado com o excesso de mangas, os bichos da goiaba e as alfaces que não vinham na época que me interessava mostrava o quanto aquilo era bem diferente do eu estava acostumada. A vivência do sítio entrava em choque com a vida da capital a que eu estava acostumada, mas sempre me pareceu curiosa. Nem que fosse pela oposição, ela seguia fazendo parte da minha vida.
Toda essa vivência ganhou outro sentido muitos anos mais tarde. Já estava com mais de 30 quando passei um ano na cidade de Coimbra, em Portugal. Sábado era dia em que as senhorinhas do entorno de Coimbra montavam as banquinhas pelo mercado e aquilo virava uma feira livre. Quando cheguei, no início do verão, todas as bancas estavam cheias de cerejas e morangos. Não era o mais barato: era o que tinha em cada uma das banquinhas. E é claro, isso ficou gravado em mim porque eu me esbaldei de comê-las. Enquanto o verão ia terminando, apareceram as uvas, seguidas das ameixas e dos diospiros (é o nome português pra caqui, e eu adorei o som dessa palavra), cada uma a seu tempo. Depois vieram os figos e as castanhas portuguesas no alto do outono, e no inverno só havia maçãs - de um monte de tipos e cores como eu nunca tinha visto - e frutas secas: figos, uvas e ameixas, que sobraram da estação passada. A fartura que não foi vendida não é perdida: ela é transformada e as frutas secas eram as frutas da estação mais sem fruta: o inverno, que chegava nos últimos dias do ano. Foi uma descoberta incrível porque pela primeira vez os nossos costumes herdados de comidas natalinas fizeram qualquer sentido. As frutas não eram as mesmas, mas estava eu ali de novo me sentindo próxima da fartura das sacolas de mangas, dos tachos e dos bichos de goiaba, e das alfaces invernais do sítio dos meus avós, e de um repertório muito diferente do fluxo do supermercado
Todas essas frutas e estações não foram decorados. Ter uma experiência de sítio - ainda que pequena - e frequentar o mercado aos sábados foi o que tornou tudo isso visível. Se eu só tivesse como ir ao supermercado, não importa que as épocas e as feiras existissem, isso poderia continuar a ser invisível pra mim. Encontrar essas brechas não é uma tarefa fácil, e nem de resposta pronta. Não precisa ser em Coimbra, nem na feira ou num sítio, mas é preciso estar num contexto qualquer onde a sazonalidade exista pra que ela faça sentido.
Experimentar seguir o tempo das coisas pode ser interessante e uma forma de cultivar outros repertórios e entender que ainda existe tempo pra tudo, mas mesmo assim, a gente não pode se esquecer de celebrar certas coisas no mundo tudo-o-tempo-todo que a gente vive. Não ser capaz de ver beleza no mundo a nossa volta também é estar fora de época. Não é o caso de fazer a sazonalidade virar um fetiche ou segui-la a qualquer custo, ou até impor essa lógica a outro pessoa perto da gente, senão a gente perde a riqueza que existe na multiplicidade de jeitos de experimentar a vida. O aprendizado é um processo, e não se constrói sentido da noite para o dia. Incorporar um aprendizado é experimentá-lo com todos os sentidos disponíveis.
Sobremesa
A #Instamission359, que está no ar agora no instagram, é sobre plantas que surgem espontaneamente na cidade. Pra participar é só usar a # na rede pra publicar uma imagem (e clicando nesse link dá pra ver quanta coisa interessante sendo postada). Tem plantas muito bonitas que nascem assim. A proposta traz um jeito gostoso de reparar na cidade, dar nome e sentido pras coisas que a gente vê perto da gente e, quem sabe dê até pra notar como elas mudam de um jeito sutil a cada estação.
No ensaio A vida não é um miojo, a Estela Rosa observa que quando a gente quer aprender algo ou fazer uma mudança na nossa vida, não importa o quanto sejam difíceis, a gente tem vontade de resolver tudo pra ontem, como se fosse macarrão instantâneo. Mas as coisas não acontecem assim, de uma hora pra outra. É preciso paciência, tento me lembrar sempre de me dizer, é preciso atenção e calma comigo mesma, é preciso ouvir meu próprio tempo e passar a entender o tempo do outro.
Num passeio pela feira do Bom Fim de Porto Alegre observei que também existe uma certa fetichização com as PANCs, tal como a gente pode acabar fazendo com a sazonalidade. Aprender sobre essas plantas não convencionais, no entanto, é sobre desenvolver um olhar pra enxergar variedade e abundância que é própria de cada lugar, e não sobre você tem que experimentar isso. O texto Quando PANC se transforma em fetiche (mas não deveria) te faz perguntar: Que sentido há em exaltar um ingrediente que vai ser caro, raro, indisponível onde moro, tal e qual como qualquer coisa importada da Itália? Como posso me apropriar de fato de uma receita e colocá-la dentro da minha realidade? Como a história contada em uma receita pode fazer sentido pra mim?
Agora que o frio está chegando, fica um clima ótimo pra comer coisas quentinhas. Essa receita de ciabatta com flores de alho poró vale a pena mesmo pra quem não tem flores de alho poró (que não são convencionais) ao alcance da mão porque dá pra fazer sem também. Botei umas dicas muito simples que a gente usa aqui em casa pra assar pão em forno doméstico com um resultado incrível e que valem a pena aprender, além de explicar uma técnica muito bacana de se fazer pão sem precisar sovar (é sério!).
No próximo mês tem mais. Se ficou com vontade de responder esse email, comentar, mandar links ou abraços - não importa - é só responder essa mensagem. Todas as cartinhas são bem-vindas <3
Um abraço e não esquece de levar agasalho. Parece que vamos precisar.
Carla Soares
OutraCozinha