[OutraCozinha #28] Empurrãozinho
É a primeira vez em dois anos, desde que essa newsletter começou, que deixei de enviar a cartinha do mês. Talvez você nem tenha notado, já que as caixinhas de email da gente vivem abarrotadas de coisas, ou porque muitas das newsletters rarearam bastante de frequência - tanto que até comecei a desconfiar que em breve outra moda vai acabar aparecendo no lugar. Mas eu ainda não sei se estou inteiramente pronta pra próxima moda chegar.
Eu ainda gosto muito de newsletters. Sou um pouco antiquada, ainda insisto em ter um blog, coisa que todo mundo diz que já morreu, e acho que esse tipo de coisa tem valor. Gosto também que a coisa seja razoavelmente pequena, e do espírito de comunidade que acaba se formando, já que o valor dele não fica sendo só pelo que escrevo, mas também pela construção desses gostos em comum. Gosto de escrever essa newsletter, e de todo o trabalho de pensar que tipo de coisas sei a ponto de valer a pena compartilhar no blog, e gosto da bagunça no meu cartão de fotos com várias imagens aleatórias de lotes vagos, plantas de sarjetas e beiras de estrada, pratos arrumadinhos das melhores coisas que servi na minha casa, e etapas de plantas crescendo no meu jardim. Mas dá um trabalho grande manter tudo isso funcionando. E nem sempre tenho a impressão de que essas coisas são boas, fazem qualquer sentido, ou mesmo se eu gosto gosto de fazer tudo isso, naquele tanto que a gente devia gostar pra levar uma coisa totalmente a sério, ou pelo menos o tanto sério que acredito que o mundo espera que precisamos ser. Uma vez criei coragem de enviar um email a um amigo que só conheço por essas bandas da internet pra fazer essa pergunta sobre entender se você gosta mesmo de fazer uma coisa. Eu gosto de fazer várias coisas, mas várias delas sinto como trabalhosas demais, as vezes sinto elas como um peso e tenho vontade de largar pra lá, e é aí que fico me questionando se será que eu gosto mesmo daquilo. Talvez se eu achasse A COISA pra amar eu nunca me sentiria enfadada, e poderia estar sempre disposta e disponível pra seguir fazendo. Ele parecia tão entusiasmado com seus interesses que acho que fiquei curiosa em entender como ele tinha descoberto do que gostava, pra poder entender do que é que será que eu gosto. Fiquei muito constrangida de perguntar isso pra ele, porque julgava que aquela não era uma pergunta razoável de se fazer. Como assim saber o que você gosta? Não é uma coisa óbvia? Se você gosta você não sente? Se você não sente não deveria continuar procurando? E o que ele poderia me responder? Que a vida é quase que nem no cinema e vai sair faísca dos olhos? O tempo vai passar mais devagar, em câmera lenta, diante dos meus olhos? Ele me contou que sempre teve um interesse grande pelas coisas visuais, mas nunca se via como alguém com muito talento. Trabalhou como diagramador por conta desse gosto, mas não se achava brilhante, no máximo era bom em seguir regras. Acabou tentando outras coisas. Fazia histórias em quadrinhos, mas sempre achou que o seu texto era melhor que seu desenho. Então tentou insistir com a escrita, mas descobriu que tinha tanta gente muito melhor nisso e que tinha tão mais sucesso, que começou a se aproximar de um tipo de escrita específica, acadêmica, enquanto seguia na faculdade. Na academia ele descobriu que talvez pudesse ser bom em ajudar os outros mais do que em escrever, e acabou se tornando professor. E assim ele segue colecionando em torno de si pequenos pedaços de tentativas e abandonos de coisas que ele gosta.
Não tinha nada tão mágico e consistente no entusiasmo que eu lia nele, e honestamente, ele se parecia mais comigo do que eu era capaz de admitir. Ele me contou um pouco das coisas que ele sentia que gostava, mas sem querer me deixou entender como todas essas coisas estavam rodeadas de circunstâncias que faziam que ele gostasse das coisas, e das quais ele não tinha tanto controle. Eram justamente essas circunstâncias que faziam ele seguir gostando e se interessando por várias delas. A percepção que ele tinha dos resultados, particularmente, modelava muito do seu interesse.
Nós passamos muito tempo ouvindo essa coisa de ser preciso achar sua paixão, e saber definir aquilo que gostamos, e então levar isso tudo muito a sério, seríssimo mesmo, mas essa coisa de paixão eu sei lá se existe. Ela é mais um conjunto de circunstâncias que vão sendo criadas. São coisas que a gente aprende a perceber e a gostar.
Eu tenho uma amiga que se irrita muito com o seu marido por ele não se interessar por nada de cozinha. É uma história bem comum, dessas que você já deve ter encontrado ou mesmo ser parte dela fazendo um dos papéis dos envolvidos. Ele é um homem declaradamente feminista, que faz ativamente coisas interessantes com seus privilégios, mas esbarra em algum limite naquilo que dá conta de fazer e mudar. A cozinha pra esse moço é uma delas.
Embora eu saiba que machismo e má-vontade existem aos montes, tento não partir do princípio de que é isso que guia uma pessoa que parece bem-intencionada, e sim de que há coisas que nem sempre vamos dar conta facilmente ou conseguir superar. Eu também tenho minhas limitações, coisas que me dão o mais profundo medo até de tentar. Mas ter limites não é motivo pra não fazermos tentativas, embora algumas possam parecer minúsculas pra quem está de fora. Com os limites lidamos da maneira que nos é possível.
Já falei algumas vezes com essa amiga sobre como pode ser importante saber reforçar pequenas coisas nessa área que ele possa se sentir bem fazendo, pra poder se sentir confortável em tentar coisas mais complexas. Não falo sobre fazer elogios genéricos do tipo "parabéns" ou "você brilhou", mas de ser capaz de enxergar e nomear coisas verdadeiras e específicas. Não é uma coisa simples, é um trabalho de garimpagem, e de lidar com suas próprias expectativas. Ser capaz de olhar afetuosamente no meio de uma relação conflituosa praquele pequeníssimo pedaço de coisa boa e fazer um elogio sincero pode ser mais difícil do que você imagina. As vezes tudo o que tem pra ser valorizado no início é uma água fervida pra fazer um café solúvel.
Imagino que essa amiga faz esse tipo de confidência pra mim principalmente porque ela sabe que eu tenho uma marido que foi progressivamente se tornando muito ativo na cozinha, e acho que ela queria entender como fiz pra conseguir isso. Mas também imagino que minhas respostas a decepcionem. Eu já fui muito combativa, mas não é sempre que o combate dá os melhores resultados. Possivelmente ela me acha uma péssima feminista, do tipo das que erram por acreditar que é minha obrigação tolerar e educar os homens, mas a verdade é que sempre que estou dirigindo em uma via em que a preferencia claramente é minha mas vem um carro em alta velocidade eu grito: ÔÔÔ! A PREFERENCIA É NÃO BATER e freio o meu carro. Nós não nascemos com nossos interesses prontos. Eles vão sendo construídos e saber construí-los é muito mais importante do que achar as coisas pelas quais somos apaixonados. Porque talvez essa coisa de paixão nem exista. Nós gostamos não só das coisas em si, mas do quanto nós conseguimos nos sentir à vontade com nós mesmos e com o que é produzido. E são tantas as razões que nos fazem sentir conforto ou desconforto que só nós somos capazes de entender o que nos faz ficar motivados a continuar.
Mesmo pensando essas coisas, vez ou outra ainda me pego sentindo um pouco de inveja das pessoas que parecem ter seus gostos todos muito bem definidos e quase inatos. Mas não acreditar que eles deveriam ser assim também me faz entender que é possível mudar aos poucos. Eu gosto de várias coisas, mas de tempos em tempos essas coisas murcham, e em contrapartida vejo que outras florescem. Eu gosto de escrever e de ler, mas não li quase nada esse ano porque peguei um bode gigantesco depois de um desentendimento que envolveu intelectualização demais pro meu gosto. Em compensação, tenho gasto um tempo imenso bordando, e sentindo muito orgulho das coisas que tenho feito com agulha e tecido. Eu amava futebol na minha adolescência, ia ao estádio com meu avô, passava o fim da tarde de domingo ouvindo os jogos no rádio, e depois esse sentimento desapareceu por completo. Mas fui capaz de sentar pra ver todos os jogos da Copa e algumas mesas redondas, com interesse que lembrava aqueles tempos, e que provavelmente está condenado a desaparecer assim que a Copa acabar, já que várias das circunstâncias que me parecem agradáveis nesse momento vão desaparecer. Eu adoro cozinhar e entender mais de plantas, mas há períodos em que esses interesses parecem perder um pouco o sentido. Pra seguir interessada, muitas vezes eu preciso de um empurrãozinho - de um aceno de uma planta que fica exuberante e que me faz acreditar que sei fazer direito, de um sinal de fumaça de um jantar maravilhoso em que ficam repetindo que se come bem demais nessa casa, ou ao menos do sentimento leve de que faço isso com o coração.
Sobremesa
A Olivia Maia escreveu o texto Bora falar sobre as flores ainda na época do dia da mulher, mas ele nunca me saiu da cabeça. Ela fala do incômodo de celebrar as mulheres fortes, não só porque parte do princípio de que existam mulheres fracas, mas principalmente porque o que chamamos força vem de ocupar espaços específicos que a gente decidiu que são importantes: o mercado, o trabalho, o poder. Mas por que outros espaços ainda não importam? a gente erra também quando insiste que mulher pode fazer tudo que o homem faz, sim senhor. não porque não possa: lógico que pode, e faz. o erro está em pensar que só assim a mulher pode ter valor: ocupando esse espaço masculino nas ciências e nas artes e nas políticas e tudo mais; esse espaço que ganha prêmio e dinheiro e capa de revista. que a mulher tem que ser importante nesse mundo criado pelo homem, nesse mundo em que os homens determinaram o que significa ser importante.
Em A escritora que querem comer viva, a Aline Valek se questiona sobre o preço de ocupar todos os espaços virtuais disponíveis. Não é apenas o preço da exposição - ela até se sente bem adaptada a esse mundo das mídias sociais - mas há também o preço de falarmos mesmo quando não há muito o que dizer, e fazermos todo mundo mais ou menos a mesma coisa. É bizarro observar o comportamento de pessoas que não precisam formar público ou vender seu trabalho nas redes, mas que estão usando das mesmas técnicas e estética da galera com milhões de seguidores. É um tal de falar “gente”, pressupondo um público numeroso do outro lado da tela, de dizer “tem muita gente me perguntando…” para tratar de diquinhas de consumo ou de investir um tempo enorme editando e aplicando filtros em vídeos narrando em detalhes suas viagens de férias. As pessoas estão levando esse negócio MUITO a sério.
Depois de uma experiência na feira falando sobre nabos forrageiros numa conversa de comadre com os outros fregueses, em que sem querer acabei vendendo todos os molhos pro feirante, eu fiquei pensando muito sobre como as pessoas estão interessadas em coisas diferentes, mas que é preciso saber falar sobre elas. E não dá pra ser só na internet, mas também é preciso levar isso pra outros lugares. Fiz então dois modelos de cartões postais com receitas PANC, levei pro feirante distribuir pros fregueses, e ele agora passou a levar regularmente nabos forrageiros pra vender (e vende muitos toda semana!). Uma planta que antes era um mato pra ele passou a gerar renda, e pras pessoas que toparam levar, virou uma experiência e um prato diferente (e espero, delicioso).
Aproveitei que achei minha ideia simpática e acabei disponibilizando esses postais PANC pra imprimir em casa. Dá até pra mandar pra alguém que você gosta <3. Um é de nabos forrageiros (e tem uma postagem mostrando essa planta pra quem ainda não conhece), e o outro de batata yacon (que também tem duas postagens). É uma forma delicada de espalhar essas ideias fora das telas.
Pros jardineiros entusiastas ou mesmo pros nem tão jeitosos assim, a dica que deixei no blog é plantar capuchinha, uma plantinha fácil de cuidar nível picolé. Como ela tem se popularizado, achar uma muda tem ficado mais fácil. As flores são mais conhecidas como comestíveis, mas as folhas e as vagens redondas também são apetitosas.
Mande um aceno, um sinal de fumaça, ou só deixe o sentimento leve reverberar por aí. Obrigada por ler, por me responder de vez em quando, por espalhar as coisas que solto no mundo por aí <3
Um abraço e até o próximo mês,
Carla
Todas as colagens que ilustram essa cartinha são criações da querida Sumaya Fagury. Tem muito mais no instagram dela, vale muito a pena acompanhar e se inspirar no trabalho que ela faz <3