[OutraCozinha #32] E não há tempo que volte, amor
As pessoas adoram me contar histórias de como as coisas que escrevo as fazem lembrar de comidas, narrativas e pessoas que fizeram parte da sua vida.
Gosto de observar as historietas que me devolvem porque elas me fazem pensar sobre como os afetos são acionados por caminhos meio tortos, que não necessariamente são os da experiência de quem escreve, e sim por causa do jeito que contamos as histórias. O que as histórias fazem é nos mostrar que a gente não está sozinho porque somos capazes de sentir coisas semelhantes, mesmo que passemos por coisas tão diferentes.
Apesar de escrever com um tom afetivo, minhas memórias envolvendo comidas não são nada generosas. Elas são duras, cheias de conflitos e dificuldades. E no fundo escrever sobre afetos é escrever sobre o que nos afeta - e é sobre isso que eu escrevo. Os causos que as pessoas me devolvem fazem todo o sentido também porque o meu trabalho de escrita tem muito a ver com resgate. Resgate de ingredientes vegetais que já foram usados por outras pessoas e que acabaram esquecidos por conta da uniformidade alimentar promovida pelo capital, resgate do tempo como uma coisa que nos pertence. Resgate de um cuidado com a gente mesmo, com os outros e com o mundo que ficaram soterrados no meio desse sistema que acha que o único valor que vale a pena é o que decidem arbitrariamente que vale dinheiro.
Porém, todas essas coisas não tem exatamente uma cara saudosista. A gente sabe que qualquer coisa disso já existiu, mas não é isso. Resgatar é recuperar, mas também pode significar se ver livre de um cativeiro. Resgatar não é o que permite que a gente recupere uma coisa que foi perdida, mas sim que se construa com a redenção conquistada uma coisa nova.
Prato Principal Uma história conhecida sobre resgates que nos intimam a seguir em frente é a do mito de Orfeu. Orfeu era um grande poeta e musicista, e cada vez que ele tocava sua lira todo mundo ficava meio bobo de tão encantado. Essa sua habilidade era capaz de tudo: acalmar brigas, amolecer corações e encorajar os medrosos. Um dia, Orfeu se apaixonou pela ninfa Eurídice e se casou com ela. Conhecida pela sua beleza, Eurídice acabou atraindo a atenção de Aristeu, que nunca foi correspondido, e por isso começou a importuná-la. Pra fugir dele, Eurídice entra numa mata, sem querer tropeça em uma serpente, e aí tem um fim trágico: toma uma picada dessa serpente e morre. Quando toma conhecimento disso, Orfeu fica arrasado, desesperado. Ele iria a qualquer lugar pra recuperar o amor perdido, até ao inferno se fosse preciso, e não vendo outra alternativa ele resolve descer até o Hades. Claro que muitos disseram a ele que não tinha jeito, que isso não ia dar certo, mas ele resolve ir assim mesmo. Ele desce então até o Rio Estinge, que dividia o reino dos vivos do reino dos mortos, e encontra Caronte, o barqueiro que atravessava as almas até o submundo. Caronte avisa Orfeu que não pode atravessá-lo - "Você ainda está vivo" - mas Orfeu não desiste. Ele começa a entoar uma canção muito emocionada na sua Lira sobre todos essas coisas que ele estava vivendo, e Caronte se sente na obrigação de ajudar. Ele acaba atravessando Orfeu. Do outro lado do rio, Orfeu se encontra com Cérbero, o medonho cão de três cabeças que guarda o Hades, e é de novo com sua vivência entoada em música que Orfeu consegue domar a fera. Finalmente frente a frente com Hades, o Senhor do subterrâneo, Orfeu suplica que lhe devolva a vida à ninfa que ele tanto ama. Hades fica muito irritado com a presença de Orfeu - "Como pode um vivo ter chegado até aqui no Reino dos mortos?" , mas mais uma vez é com a sinceridade da sua música que ele convence Hades a ouví-lo. Hades aceita reviver Eurídice, mas pra isso tem uma única condição: que enquanto Orfeu voltasse pro reino dos vivos com Eurídice, que ele não olhasse nenhuma vez pra trás. Orfeu pega o caminho de volta, e vai tocando músicas alegres que traduziam aquela explosão boa do sentimento de ter conseguido algo quase impossível. Mas quando ele está lá no finalzinho do caminho, quase chegando, ele sente medo - medo de estar sendo enganado por Hades, medo de Eurídice não estar de fato junto com ele seguindo o caminho, medo. Orfeu então resolve olhar pra trás e vê a sombra de Eurídice lentamente se desfazendo e sumindo no meio da paisagem. Como não cumpriu o que foi prometido, Orfeu perde Eurídice de vista pra todo o sempre.
A história de Orfeu pode ser interpretada de muitas maneiras. Mas uma forma de entender esse mito é prestando atenção na importância de confiar e não olhar pra trás pra conseguir de fato resgatar uma coisa querida. No passado sempre vão existir coisas admiráveis e temerosas, mas insistir em ficar olhando pra trás é botar tudo a perder. A questão é saber o que fazer com o passado que você leva junto consigo olhando pra frente.
Não é a toa que existe uma diferença gritante entre as pessoas que se importam com a história e as que se apegam ao passado. Enquanto as primeiras se inspiram, descobrem tesouros, e saem renovadas, as outras são conservadoras ferrenhas, que se prendem e acumulam sem um propósito, e sofrem muito com qualquer mudança - que invariavelmente vem.
Não é difícil enxergar que muitas das ideias que nos parecem mais frescas hoje tem a ver com várias coisas antigas. As vezes até a palavra ancestral aparece em algum lugar. São ideias que reconhecemos de algum modo na história humana, mas que em algum momento foram postas de lado ou ficaram desvalorizadas. Na superfície, alguns podem acreditar que vivemos uma nostalgia de tempos mais simples, em que a gente tinha mais contato com a terra, respeitava mais os nossos tempos e os nossos corpos e não se via constantemente ameaçado por um imperativo de produzir sem parar.
Mas essa não é uma vontade de voltar no tempo porque há sempre elementos novos sendo adicionados nesse desejo. É a vontade de voltar pro campo valorizando conhecimentos tradicionais mas trazendo também os conhecimentos científicos juntos; é o desejo de que as pessoas voltem a cozinhar, mas que não seja nunca mais só as mulheres a carregarem essa tarefa, nem que ela fique num limbo escuro de desvalorização; é a ânsia de experimentar viver mais conectado com a gente mesmo, mas sem abrir mão de estar conectado com os outros, procurando usar da melhor maneira possível essa coisa maravilhosa chamada internet.
Ao recontar nossas histórias, nós não estamos apenas olhando pra trás mas principalmente estamos buscando formas de reescrevê-la. Os mitos mesmo, como o de Orfeu, estão constantemente sendo recontados porque conseguem captar questões atemporais, que não fazem parte nem do passado nem do futuro especificamente, e são tão profundamente presentes que a gente as vezes chama de isso simplesmente de humano. Mas ainda assim, a forma de se contar os mitos - e principalmente a de entendê-los, ganha outras ênfases e outros formatos.
Artistas são pessoas que tem o poder de nos tocar profundamente porque conseguem nos mostrar com clareza uma mensagem sobre o nosso tempo. Não importa a forma que eles conseguem isso - usando palavras, imagens, sons, movimento, agulha e linha. A arte é um instrumento que nos dá dimensão do nosso tempo e nos ajuda a permanecermos conectados aqui. Por isso ela é tão urgente quando tudo parece caótico, e teimam em mudar o passado ou impossibilitar o futuro. Essa desesperança generalizada se combate entendendo nuances e camadas sutis do tempo presente.
Longe de ser um acessório, seguir firme tocando nossas liras ou contando histórias é um antídoto contra o medo. É o que nos permite seguir com o passo certeiro rumo ao reino dos vivos acreditando que a sombra das coisas que amamos vai seguir junto com a gente. E essa talvez essa seja a nossa melhor chance de resgatar as coisas que amamos.
Sobremesa
Estou colocando no ar hoje a loja do OutraCozinha, a OutraLojinha, com algumas produções minhas. Tem cartões postais com receitas PANC, também tem algumas sementes de plantas não convencionais - que vira e mexe alguém me perguntava onde encontrar -, e bordados de plantinhas.
Penso muito nessas produções minhas como resgates (que permitem enviar cartas, cultivar plantas e repensar o valor dos bordados como arte), mas todos assumindo uma forma contemporânea.
Sim, pode clicar na imagem pra entrar e matar a curiosidade
Essa história da lojinha começou quando fiz alguns cartões postais pra deixar na banca de um feirante daqui, pra convencer e ajudar ele a vender nabiças. Funcionou muito bem, e muitas pessoas gostaram quando mostrei esses cartões no site na versão DIY, pra imprimir em casa. Então achei que seria interessante colocar no mundo esses postais, mas queria algo a mais. Acabei encontrando o papel semente, que permite que quando o tempo do postal tiver passado você possa picar e enterrar num vasinho que ele vai brotar uma planta comestível. Achei uma forma singela de resgate que possibilita outra vida.
A lojinha é também uma forma que encontrei de viabilizar que esse trabalho de escrita e pesquisa no OutraCozinha continue existindo. Esse é um trabalho que gosto muito, mas que é feito sozinha (não tenho designer, fotógrafo, revisor, programador ou qualquer pessoa me auxiliando profissionalmente nisso), pelo qual eu não recebo nada financeiramente ainda, mas que exige tempo, pesquisa, paciência, e recursos (compra do domínio e hospedagem do site, de livros, de equipamento fotográfico, e principalmente tempo, muito tempo).
Então vou ficar muito feliz com a visita à OutraLojinha, os comentários e sugestões e com quem quiser me dar uma força pra espalhar por aí. Foi tudo preparado com carinho e logo tem mais coisa por vir.
Outro lançamento que aconteceu nesse mês foi do podcast Bobagens Imperdíveis, da Aline Valek. Curtinho - os episódios são só de 15 minutos - bem feito, roteiro cuidadoso, direto ao ponto. No episódio de abertura, ela explora o que existe de especial nas conversas. Você já se perguntou porque estamos experimentando uma retomada tão forte da oralidade, do texto falado? Tantos programas de podcast sendo lançados, áudio no whatsapp, memes em áudio. Vale escutar pra entender.
Outra proposta interessante de resgate é a do escritor Austin Kleon. Em More search, less feed ele nos lembra que pouco tempo atrás a gente era menos dependente do que aparecia no feed e fuçava mais. Quando eu abro o tuiter ou o instagram, todo mundo quer que eu pense sobre algum assunto. A internet ainda é valiosa para mim mas precisa ser mais auto-dirigida. Recuperar de algum jeito o passado pode ser uma maneira de repensarmos nossa forma de estarmos nas redes sociais?
No instagram, quem vive propondo essas reflexões com os olhos pregados no tipo de internet a gente quer daqui pra frente é a Fefe Resende. Ela vive dizendo de como contar likes é meio que abrir mão da nossa humanidade e aceitar resposta em forma de clique automatizadíssimo. Que tal se em vez de like a gente comentasse coisas significativas nas postagens que nos atingem em cheio? Você já parou pra pensar se sente orgulho do rastro que da sua presença online vai deixando? Tem conhecido pessoas interessantes ou tido conversas afetuosas? Aumentado o seu leque de oportunidades e aprendizados? Pois saiba que tudo isso é a verdadeira Internet Premium (e a melhor parte é que não precisa pagar nadinha pra ter acesso a ela).
Pra quem chegou até aqui, um abraço. Lembre-se de compartilhar esse texto com quem você acha que pode achar coisas importantes por aqui. Se quiser recuperar o baú do passado, as edições anteriores da newsletter estão por aqui. Você pode também recomendar a assinatura, o link pra se inscrever é esse daqui.
As artes que ilustram essa edição da newsletters são da artista Olga Prinku, que trabalha com flores secas pra criar um efeito completamente fresco usando tule e bastidor.
Até a próxima cartinha!
Um abraço,
Carla Soares