[OutraCozinha #33] Isto é completamente inútil e desnecessário
Estou investindo uma parte do meu tempo na escrita de um livro. Ainda é algo embrionário, não tenho tanta certeza de como ele será. O que estou escrevendo até agora é uma coisa híbrida, tem ensaios - como esses que envio todos os meses - misturado com algumas receitas ou sugestões práticas que tenham relação com os temas dos ensaios - como os que publico no OutraCozinha. Penso que um material visual artístico vai fazer muito sentido, mas ainda não consegui enxergar se são ilustrações ou quem sabe fotografias. E no fundo, tudo isso que estou contando pode ser que mude. Eu não sei bem porque ele ainda é uma ideia em andamento, é um processo.
Tive muito medo de escrever esse parágrafo. Tenho medo que agora que disse em voz alta possa me sentir constrangida se um dia esse livro não se tornar real. Tenho medo que ainda que ele se torne real, ele seja muito aquém do que eu gostaria. Tenho medo que ninguém nunca se interesse por isso e ache uma imensa pretensão da minha parte. Tenho medo também que esse processo seja longo demais ou que eu nunca saiba terminar. Grande parte da decisão de escrever um livro envolveu também assumir que é isso que estou interessada em fazer, a despeito do que pareça ser mais seguro ou útil. Embora eu conheça e estude um pouco de plantas e ecologia, me sinto limitada se tiver que me ater só a isso. Também nunca me vi como uma cozinheira, mesmo que nesse caso eu até tenha uma formação técnica curta que me ampara em muitas das coisas que solto no mundo. Mas o que reconheço em mim e me vejo entusiasmada é em observar as coisas de uma maneira muito sensível; sei ouvir e principalmente quero contar histórias. Repetidamente nesses 4 anos em que moro aqui no interior me vi obrigada quase todas as semanas a responder a pergunta sobre o que é que eu faço. É uma pergunta meio constrangedora porque há muito tempo que não tenho mais uma profissão definida e nem faço algo que não pareça completamente inútil e desnecessário. Então às vezes eu falava da professora que tinha sido por uns 7 anos. Outras eu me apoiava na minha formação em Jornalismo - muito embora eu nunca tenha trabalhado como repórter nem nada parecido, que é provavelmente o que as pessoas pensam quando conto disso. Noutras vezes eu contava dos trabalhos de revisão de texto que vez ou outra faço, mas que estranhamente não consigo também me sentir à vontade o suficiente pra chamar de profissão. Mas em algumas ocasiões, cada vez mais frequentes, eu respondo que sou escritora. Faço isso pra testar as reações. Não as de quem me pergunta, mas principalmente a minha.
Prato Principal
Pralém da famosa síndrome de impostor, tem uma coisa muito curiosa nesse sentimento de vergonha de se assumir como escritora. Eu estava lendo o livro A Grande Magia, da Elisabeth Gilbert, que é sobre processos criativos de um modo geral, e há um momento em que ela fala sobre como os trabalho artísticos são intangíveis e vistos como inúteis. E como é difícil se reconhecer, portanto, fazendo um trabalho.
O que mais me chamou a atenção, no entanto, é que a autora ficava muito feliz com isso: O fato de que posso passar a vida fazendo coisas objetivamente inúteis significa que não vivo em uma sociedade distópica pós-apocalíptica. Significa que não estou exclusivamente presa à labuta da mera sobrevivência. Significa que ainda temos espaço suficiente em nossa civilização para os luxos da imaginação, da beleza e da emoção - e até da completa frivolidade.
Não acho que ela estava fazendo o jogo do contente. É uma observação muito pertinente sobre o mundo que a gente vive, que tem uma definição tão pequenininha do que significa ser útil. E isso é uma coisa particular do nosso tempo, nem sempre foi assim. Em algum ponto do nosso caminho já foi mais importante produzir itens pra expressar percepções, emoções e ideias do que se dedicar a obter comida de um modo mais regular: os primeiros indícios de arte humana são de mais de 40mil anos atrás; já a agricultura tem apenas uns 10mil anos. É curioso e sintomático que se pense agora que a arte seja assim tão sem utilidade.
Inútil é frequentemente a palavra que eu uso pra dizer de mim mesma, de como eu me sinto sobre o que faço, e é o nome do meu desconforto quando me perguntam sobre o que me tornei. Talvez por isso eu tenha sentido um enorme alívio só de ler o título desse livro, e o li com uma urgência de quem tem muito a fazer.
How to do nothing (Como fazer nada) é um grande ensaio sobre a atenção, que faz críticas importantes ao capitalismo e a produtividade. Jenny Odell parte da observação de como a atenção é um recurso disputado nas redes sociais, que são todas desenhadas pra que a gente nunca saia delas, pra depois pensar mais largamente sobre o que é estar atenta no mundo.
Achei de um sabor muito especial – e me senti tão contemplada – com ela contando sobre a sua experiência de aprender a dar nome e conhecer pássaros à sua volta.
Ela conta que começou fazendo isso com um app que a ajudava a nomear pássaros, e tinha uma espécie de check list dos exemplares que você já tinha visto. No começo ela queria completar esse check list, mas aos poucos foi percebendo nuances na presença dos pássaros que a lista não dava conta. Começou a fazer correlações com o cantar deles e a hora do dia em que eles apareciam; depois percebeu que os pássaros eram vistos só em determinadas épocas e outras não; percebeu que alguns estavam sempre em companhia de outros. Chegou mesmo a fazer amizade com dois corvos que passaram a visitá-la na sacada.
Isso não tinha nada a ver com ser uma grande conhecedora de pássaros, mas dizia de uma relação muito específica que ela estabeleceu com esses bichos e com o seu entorno.
Vejo muitas semelhanças com o processo de conhecer plantas. No começo podemos achar que PANC é sobre amplificar sabores e experimentar ingredientes mas isso é o check list, quase uma competição anônima de quem sabe mais. Depois você passa a ser capaz de observar a época em que essas plantas aparecem e desaparecem, o tipo de lugar em que elas brotam, as plantas que aparecem em conjunto, os tipos de predadores e insetos que visitam essas plantas e muitas outras coisas assim. São sutilezas que nenhum livro, blog ou perfil no instagram vai dar conta inteiramente de oferecer como experiência porque este é um processo irremediavelmente pessoal de descobertas e de se sentir parte do seu entorno.
Dar conta dessas pequenas coisas passa por perceber o que está de fato à sua volta. Eu gosto sempre de lembrar isso quando escrevo. Pessoas que estão falando e mostrando PANC – como eu – são mais uma inspiração do que uma referência do que você deve experimentar. A graça verdadeira é descobrir a abundância do seu entorno, do micro mesmo. E esse é um trabalho que só você pode fazer porque não é só um simples mapeamento. É um processo em que você precisa estar presente e inteiro.
Não basta apenas parar e passar a observar. Por entender que a atenção é um recurso limitado e disputado, Odell consegue evitar argumentos simplistas, como dizer que é preciso que cada um de nós pare de gastar tanto tempo nas redes, ou mesmo tenha que sair delas. Em vez disso, ela observa que no capitalismo cada vez menos temos possibilidades de recusa. São esses trabalhos que fazemos sem remuneração porque achamos que precisamos aceitar pra conseguirmos outros depois; é a uberização das atividades, e os empregos tão mal-pagos que cheiram mesmo à escravidão moderna.
Porém, essa dificuldade de recusa também aparece em outros mecanismos, como as redes sociais. Fazer parte das redes sociais tem um valor. Elas são construídas pra explorar nossa necessidade de validação social, mas também são nelas que muita gente encontra sociabilidade, trabalho, e renda. O número de seguidores é tão importante porque indica um tipo de capital social, uma rede de apoio que temos disponível. Uma pessoa que pode se negar a ter um perfil numa rede social, ou mesmo decidir usar menos ou muito pouco é uma pessoa que já tem algum tipo de capital pra bancar essa escolha (seja esse capital social ou financeiro). Então a solução pro nosso vício das telas não é tão simples e individualista como os conselhos de largue o seu celular sugerem; é muito mais complexo conseguir achar esse equilíbrio.
A resposta que Jenny Odell tenta dar a essa questão caminha muito mais no sentido de se fazer perguntas sobre produtividade, já que temos uma visão muito estreita do que significa produzir e do que vale alguma riqueza no mundo que a gente vive. Precisamos ser capazes de enxergar utilidade e inutilidade de um jeito muito diferente; e isso envolve sermos capazes de valorizar cotidianamente outras coisas. É a coragem de sentar pra escrever um livro, mas também de dar valor a coisas sutis: a emoção no lugar da racionalidade, a contemplação em vez da pressa, o prazer no lugar do sacrifício, a demolição no lugar do que está construído.
Ao contrário do que o título do livro sugere, não se trata de uma mera recusa que se parece com não fazermos nada, pois por trás de movimentos que causam estranhamento em muitos há muito sendo feito e muito a fazer. Só não é o que alguns esperam que sejam feito.
Inspirado por um lote abandonado cheio de mato, um fazendeiro japonês chamado Masanobu Fukuoka escreveu ainda em 1978 um livro sobre seu método de cultivo, que ele batizou de “agricultura selvagem ou agricultura do fazer nada”. O seu método faz uso das relações que já existem na terra. Em vez de inundar um campo e semear com arroz na primavera, ele joga as sementes ainda no outono, como elas naturalmente teriam caído. No lugar de fertilizantes convencionais, ele deixa crescer uma camada de trevinhos e deita as sobras dos caules por cima da terra. O seu método parte de uma observação muito meticulosa de como a natureza funciona pra operar em conjunto com ela, como parte dela e não uma coisa do lado de fora.
Mesmo nas redes sociais podemos ter uma postura mais reparativa. Eu penso bastante sobre como posso usar as minhas redes. Nos meus espaços escrevo coisas com o coração, quando tenho algo a dizer, e não com uma expectativa de cliques. Contorno como posso o algoritmo, não clico e nem dou visibilidade a coisas negativas porque o pânico nos outros não me parece algo que gostaria de gerar. E sou bastante crítica sobre a natureza pública daquilo que falo.
Mas ainda que eu faça isso, não me esqueço que o modelo da natureza é o da interdependência, da generosidade e da abundância. É preciso olhar que cada um de nós é uma força dentro do conjunto. Alguns, como Fukuoka, vão ser capazes de observar propor formas mais integrativas de lidar com a produção de comida. Outros vão dar conta de melhorar nossa relação com as coisas que descartamos. Por certo alguns vão entender as relações entre a natureza, as mulheres, a raça e como as desigualdades também impactam no nosso modo de se relacionar com a terra. Outros vão saber pensar no uso das redes e contar novas histórias. As respostas sobre utilidade também passa por reconhecermos que nós não somos deuses ou máquinas, apenas precisamos ser capazes de reconhecer que somos parte.
Sobremesa
Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.
Sem uso,
ela nos espia do aparador.
Esse poema do Drummond aparece na última edição da newsletter Um lapso sutil, da Tatianne Dantas. Ela usou seu espaço pra fazer alguns comentários e traduzir a última coluna da Elena Ferrante escrita para o New York Times, sobre a importância das histórias serem contadas por mulheres como uma forma de subverter o poder. Na coluna, Ferrante tenta localizar nosso desejo de poder como algo dado pela colonização do pensamento masculino, mas também percebe que as coisas estão mudando - e já mudaram de um jeito que não tem volta. É sutil, mas Contar histórias nos dá o poder de trazer ordem ao caos do real sob nossa própria manifestação, e isso não está muito longe do poder político. Algo muito importante que fazia a liga desse tipo de relação de poder já (se) partiu; mesmo que várias tentativas sejam feitas para colar os pedaços, a rachadura fica.
Esse vídeo curtinho da National Geographic mostra como secretamente as árvores conversam umas com as outras. Ele me fez pensar nas sutilezas. Daqui de cima pode parecer que não está acontecendo nada, mas quantos processos de desenrolam fora dos nossos olhos? Essa entrevista com a filósofa Isabelle Stengers, publicada em 2018 pela Revista DR vem bem a calhar com o assunto dessa cartinha. Stengers sempre me traz vários insights sobre como criar um mundo novo - foi assim que me senti quando li e escrevi sobre seu livro No tempo das catástrofes, e nessa entrevista ela me causou o mesmo rebuliço. A inteligência coletiva é sempre uma inteligência “conectada”. O capitalismo funciona destruindo toda conexão, inclusive aquela do passado, e considera como suspeita e perigosa toda inteligência coletiva que reivindica suas conexões. Estou no podcast da Aline Valek, contando causos sobre a vida no interior, a escrita, e claro, sobre comida. Acompanho o trabalho de escrita da Aline com admiração muito antes de me tornar uma pessoa que escreve com regularidade, e foi uma honra mesmo ser convidada a participar. Os episódios são curtinhos, 15 minutos, o tempo de você passar um café e tomar (e matar a curiosidade de conhecer a minha voz e meu sotaque mineiro). Obrigada pela companhia em mais uma cartinha. Se quiser compartilhar algumas impressões sobre o livro How to do nothing, que permeia grande parte do que está escrito nessa cartinha, publiquei uma resenha só sobre ele e você pode compartilhar esse link. Também pode espalhar por aí que vale a pena assinar minha newsletter, o link pra se inscrever é esse daqui. Se quiser, também pode apoiar o meu trabalho comprando na minha lojinha criativa. Tem cartões-postais de receitas PANC bem bonitos feitos com papel semente, além de algumas sementes estranhas e bordados por lá.
As fotografias que ilustram essa edição da newsletter são da fotógrafa e artista visual Camila Fontenele. O trabalho da Camila fala muito sobre pertencimento, sutilezas e corpo. As imagens que escolhi são dos dias em que passamos juntas na cidade onde moro. Eu estou escondida em uma delas. São muitos os lugares nos quais eu me apoio no trabalho dela.
Até a próxima cartinha!
Um abraço,
Carla Soares