[OutraCozinha #34] Tira-gosto
"Que alívio não ter nada a dizer, o direito de não dizer nada, porque só assim há uma chance de se encontrar o raro, e ainda mais raro, que pode valer a pena ser dito."
(Deleuze, em Conversações, 1985)
Como tem sido difícil encontrar brechas em que se pode ficar em silêncio quando o algoritmo nos provoca a estarmos sempre compartilhando, o mundo goste tanto que sejamos extrovertidos, o sistema nos constranja a estarmos constantemente produzindo.
Decidi hoje não ser a voz que fala mas somente compartilhar algumas coisas que andei colecionando. Não são muitas, mas algumas são longas - e por isso essa talvez seja uma cartinha para ler e voltar.
Por mais que eu tenha feito um esforço de comentar pra estimular e mostrar porque esses passeios valem a pena, tenho sentido mais vontade de ficar em silêncio. É bom pra variar ficar calada e ouvir o que tem a ser dito. Espero que seja um apetitoso tira-gosto.
O ensaio Como os millenials se tornaram a geração do esgotamento tem um título meio clichê e é grandinho - o tempo de leitura estimado é de 30 minutos - mas vale muito a leitura.
A autora tenta entender porque estamos sempre tão cansados a ponto de tarefas aparentemente simples e banais como consertar alguma coisa que estragou na casa, responder um email longo para um amigo querido, ou levar o carro pra ser lavado serem frequentemente procrastinadas. A explicação, que não pode ser dada com uma resposta simples, perpassa o processo de criação que grande parte de nós passou, no qual as brincadeiras e interesses progressivamente foram deixando de ser livres pra se parecerem cada vez mais com investimentos (aula de música, esporte, ou qualquer outra coisa não porque se gosta, mas pensando no desenvolvimento cognitivo ou motor, entre outros exemplos que ela dá), passa pela gestão das mídias sociais, uma tarefa 24/7 um bocado indispensável pra se manter aberto a oportunidades de trabalho, pela a internalização de que não estamos nos esforçando o suficiente, até o quanto as tarefas domésticas tem de preencher um número infindável de aspirações: passeios têm que ser "experiências", a comida tem que ser saudável, caseira e divertida, ou quem sabe uma afirmação política, agendas e tarefas tem de estar em listas calculadamente bonitas e decoradas.
Descrever o esgotamento dos millennials é reconhecer a multiplicidade da nossa realidade ao mesmo tempo em que reconhecemos nosso status quo. Estamos profundamente endividados, trabalhando por mais horas e em mais empregos por um pagamento menor e menos estabilidade, com dificuldades para alcançar o mesmo padrão de vida dos nossos pais, operando em precariedade psicológica e física – tudo isso enquanto nos dizem que basta trabalhar mais para que a meritocracia prevaleça e comecemos a prosperar. A cenoura pendurada na nossa frente é o sonho de que a lista de tarefas irá acabar, ou pelo menos se tornar bem mais gerenciável. ****
Chegou uma cartinha aqui em casa com várias sementes vindas diretas de Goiás. Vieram em retribuição a outras sementes que eu havia enviado. Estou esperando ansiosa o fim de agosto, quando as geadas aqui do sul já devem ter terminado, pra começar a semear. Durante minha viagem a Belo Horizonte, mais uma vez sai carregando estacas, sementes, e batatas. Trouxe algumas pra doar pros agricultores da feira. Não é a primeira vez que faço isso. São esses pequenos gestos que conservam e perpetuam várias espécies. O chef e apresentador Dan Barber escreveu para a New York Times uma breve história das sementes: ele fala do patenteamento, do monopólio que elas atualmente enfrentam feito por somente 4 indústrias, e como o movimento de sementes livres que envolve agricultores, varejistas independentes, nutricionistas, educadores, chefs e comensais cada vez mais informados tem sido relevante na mudança desse cenário perverso. O texto está em inglês. ***
A propósito da última newsletter que enviei - em que apareciam várias percepções minhas sobre o livro How to do nothing (Como fazer nada), da Jenny Odell, a Letícia Arcoverde também escreveu sobre as suas. A partir da leitura do livro, ela ficou se perguntando sobre encontrar coisas que amamos fora desse circuito produtivista, no qual tudo o que é tocado se transforma em metas e objetivos.
Diferente de mim ou da autora do livro, a Letícia entende que sua atenção não pode ser transformada a partir de um contato mais detido com a natureza porque particularmente não é uma coisa que prenda tanto sua atenção. E embora nossas carências de contato com o mundo natural estejam muito em evidência, não há nada demais em não estar buscando intensamente por ele. Reconhecer essa pluralidade também é bastante relevante.
O que ela tenta e fazer é umas espécie de cartografia descompromissada das curiosidades e se perguntar: qual foi a última vez que você fez algo simplesmente porque você gosta, sem ter algum lugar pra chegar? Por que começar e desistir nos incomoda tanto? Eu sinto muita falta de mergulhar em buracos negros na internet sobre assuntos aleatórios e sair três dias depois tendo lido zilhões de textos obscuros em sites geocities que você não consegue entender da onde vieram. A ficar fascinada por algo que que não vai virar uma carreira, mas vai ser no máximo uma googleada sobre o ritual da morte dos Toraja na Indonésia e uma descoberta nova, para talvez comentar com um amigo um dia e ouvir um "é verdade, eu li sobre isso, que coisa estranha, né?!".
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Um buraco negro aleatório em que caí outro dia é este relato de uma pessoa que jogou uma mesma partida de Civilization por 10 anos. No experimento involuntário, que chegou até o ano 3991, várias coisas aconteceram: a calota polar derreteu depois da era industrial, todas as cidades gigantescas desapareceram e deram lugar a cidades menores, o mundo foi dominado por três grandes potências numa guerra infinita que já dura 1700 anos. O jogo parecia não ter fim, já que cada uma dessas potências gastava todos os recursos pra fomentar essa guerra, e a população vivia revoltada e à míngua (mas qualquer civilização que deixasse de fazer isso seria aniquilada). Um post no reddit acabou dando uma solução macabra wque permitiu que o jogo terminasse em 8 turnos. Qualquer semelhança com o mundo real talvez não seja mera coincidência.
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Outra curiosidade aleatória: esse post que fiz sobre acariçoba ou erva do capitão. Ela é uma parente muito próxima da conhecida Centella Asiática, é espontânea, invasiva e sim, dá pra comer. Será que você já viu por aí essa plantinha?
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Esse vídeo sobre leituras e livrarias de 37 minutos é bem gostosinho. Ele percorre algumas das livrarias mais significativas na Holanda, em Portugal, nos EUA e na Argentina, pra discutir algumas questões sobre hábitos de leitura na era em que nossa atenção é cada vez mais disputada.
Gostei muito da fala de uma entrevistada que compara a imersão em um livro como uma espécie de meditação ativa. Faz algum sentido, além de tirar o peso da ideia de que uma leitura precisa ser informativa ou edificante. Ela pode ser apenas um caminho pra entrar em contato com partes íntimas e caladas de nós mesmos (e também gostei de saber que eu intuitivamente havia acertado sobre algumas inspirações que levaram à existência de Harry Potter).
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Uma amiga me enviou a história de uma astrônoma que bordava e usava outras técnicas têxteis pra poder ensinar astronomia. Especula-se que ela passou cerca de 7 anos bordando e costurando um quilt do sistema solar completo, e depois usou esse material por muitos anos nas suas aulas. Esse quilt agora está em um museu de história americana.
Eu faço as coisas muito devagar. Preciso de um tempo pra acreditar na ideia, de outro tanto pra ir me acostumando com ela. Bordo porque é lento o suficiente pra que eu possa perceber certas coisas. Talvez seja por isso que eu nunca faça do jeito mais simples: meus bordados naturalmente pedem tempo para que eu preste atenção nas formas, nas cores, mas também em mim mesma. Como na história da astrônoma, aprende-se muito com eles. Principalmente eu.
Na foto, Bordado de capuchinha. Feito sobre algodão cru usando fios de meada de bordado. Foi colocado em um bastidor aro 16, e depois pendurado próximo do bordado de taioba que já havia feito a mais tempo.
Obrigada pela companhia. Se quiser responder essa cartinha pra compartilhar coisas interessantes que você viu por aí, é só responder normalmente, como se faz com qualquer email. Eu posso demorar a responder, mas sempre respondo. Gosto também das companhias silenciosas, então fique a vontade por aqui pra ser do jeito que você é. Ah! Você também pode recomendar essa newsletter a alguém, esse é o link pra assinar.
Até a próxima cartinha e não se esqueça de lavar os pratos!
Um imenso abraço,
Carla Soares
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