[OutraCozinha #35] A minha visão era diferente
Desde que assisti Capitão Fantástico o filme não sai da minha cabeça. Ele não é nenhum lançamento de agora - é de 2016, o que em 2019 significa que ele é praticamente um filme "antigo". Mas quando algo me afeta não importa tanto o tempo, fico com uma vontade imensa de conversar sobre o assunto. Por isso resolvi ler o que algumas pessoas estavam falando desse filme - ler também é uma forma de conversa.
O filme é a história de uma família que mora na floresta, isolada das outras pessoas. A família encarna aquele desejo que a gente fala meio na brincadeira meio real de fugir da humanidade se embrenhando no meio do mato, produzindo sua própria comida e deixando pra trás essa máquina de moer carne chamada capitalismo. Os pais proporcionam uma educação pras crianças inteiramente comprometida com as coisas que eles acreditam e bastante disciplinada, que envolve o conhecimento necessário pra sobrevivência do grupo, estudos filosóficos e também um treinamento pesado da parte física, tudo muito fora do achamos que é convencional. Porém, a mãe morre, e a partir daí todos eles acabam tendo de se haver de alguma forma com o mundo que rejeitaram.
O filme pareceu pra mim bastante alegórico - ele fala sobre ter a coragem de viver as suas verdades, os confrontos com o real que essa vivência causa e a coragem também de renegociá-las quando você erra. Mas o curioso é que as 3 ou 4 primeiras resenhas que aparecem no google juram de pé junto que o filme é apenas uma crítica à sociedade capitalista, e que ele é muito pueril porque os conflitos que emergem são meio que resolvidos num passe de mágica.
Tudo bem que realmente a "verdade" alternativa que a família vive envolve uma crítica à sociedade capitalista, mas essa é uma interpretação literal demais. Fosse qualquer outra a verdade da família ainda assim o filme faria sentido. O fato de que os conflitos são resolvidos de maneira mágica é um bom indício de que o cerne da trama não é esse. Aonde foi o parar o simbólico? Cadê o espaço pra perceber a fantasia, a alegoria, os arquétipos?
Ao mesmo tempo que achei um pouco perturbadoras essas resenhas sem espaço pro simbólico isso fez crescer ainda mais a minha atenção com o filme. O fato de que algumas pessoas não conseguiram ver muito além do que os olhos enxergam mostra o quanto pode ser difícil lidar com o fato de que tudo o que vivemos são apenas versões do real - se é que esse real existe.
Prato Principal
Quando me mudei pra cidade em que moro agora, conheci duas pessoas que adoravam me escutar falando sobre mato e comida. Eu estava sempre fazendo quitutes pros nossos encontros, e falava da amizade que eu começava a cultivar com os feirantes, e do número de ingredientes inusitados que eles jamais imaginariam que se pudesse encontrar na cidade.
Eu me lembro de quando eles disseram que eu deveria começar a registrar essas coisas, que era tudo muito interessante e que eu era muito atenta. Blog já andava meio demodê nessa época, mas eles achavam que poderia ser um jeito legal de dividir com mais gente essas coisas que me interessavam.
Eu achei a ideia meio boba. A minha resposta foi tentar mostrar pra eles que não era necessário porque já tinha fulano e beltrano falando sobre o assunto, e eles eram pessoas muito mais capacitadas do que eu e falavam muito bem. "Não tem problema", eles disseram. "Você escreve sobre a sua visão".
Essa resposta me marcou profundamente - mais do que eles poderiam ter imaginado. Eles usaram uma palavra tão precisa. Eu estava lá pensando nas coisas de uma maneira tão objetiva, de que já existe um artigo qualquer falando sobre uma planta, ou sobre uma forma de preparar uma comida, e que isso basta, é suficiente. Mas o que acontece é que não existe uma única forma de vivenciar as coisas. Nem de fazer, nem de comer, nem de pensar. E nem de enxergar. Eu sou cega de um dos olhos e isso sempre me fez pensar sobre a singularidade desse sentido em mim. Sempre foi concreto demais que a minha visão era diferente - não porque eu fosse única, mas porque eu era possível. E talvez por isso tenha me tocado tanto o que eles me disseram.
Nós nos esquecemos que todas as narrativas tem um ponto de vista. Que as histórias que estamos ouvindo e contando talvez sejam as verdades de quem as protagonizam. E que essas histórias nos interessam quando elas conseguem de alguma forma fazer sentido pra gente. Nem todas as histórias dizem coisas que pra nós tem algum significado, e talvez por isso precisemos de tantas histórias.
Acontece que pra quem vive uma história é muito difícil conseguir entender se o que você está contando tem qualquer coerência visto do lado de fora. Nós tendemos a nos ver como protagonistas, e como protagonistas, estamos sempre tentando dar uma explicação pras coisas que estão em volta da gente. Mas nenhuma história é absoluta. Quando somos narradores muito conscientes sabemos que ainda que as nossas visões nem são assim tão diferentes, elas são parciais, e que não vai haver a história definitiva. Somos limitados e nenhuma experiência dá conta da totalidade do que é a vida, nem mesmo das possibilidades de fazer uma simples receita.
Tem uma cena do filme Capitão Fantástico que é muito simbólica dessa questão das parcialidades. Uma das filhas conta que está lendo o livro Lolita, e o pai pergunta o que ela está achando. Ela explica que como o livro é narrado pelo personagem principal, é fácil criar empatia por ele. Ele nos convence de que aquela paixão que ele sente pela garota de 12 anos é linda, admirável, entusiasmada. Porém, se você conseguir olhar por outro ângulo ele é um pedófilo, ele estupra a garota, você deveria odiar ele. E você se sente confuso com o fato de que você não o odeia.
A estrutura narrativa do Capitão Fantástico também é assim: em grande parte do filme você se sente muito seduzido pela maneira como o pai cria os filhos - a maneira como eles parecem dedicados, as crianças habilidosas, inteligentes, parece tudo tão acertado. Mas elas também roubam, o pai as coloca em risco físico, e elas são incrivelmente incompetentes do ponto de vista social. E uma visão não invalida a outra. As duas coisas coexistem e, cada uma à sua maneira, são reais.
Quando damos a nossa versão das histórias que vivemos não há exatamente uma coisa certa ou errada, mas modos diferentes de encarar as coisas. E é percebendo essas nuances que a gente entende que o mundo não é preto ou branco, certo ou errado, X ou Y, mas um continuum cinza de experiências.
Tem uma coisa muito bonita nessa possibilidade que estamos vivendo em que tantas pessoas podem tornar públicas as suas visões com alguma facilidade na internet. Ter contato com esse mar de possibilidades tem uma potencialidade de nos tornar muito mais generosos e abertos pra enxergar a multiplicidade de se ver a vida. Talvez nós ainda estejamos aprendendo a lidar com a ideia de que o que existem são visões, conhecimentos e experiências e elas são múltiplas, e podem coexistir no mundo. É claro que isto não quer dizer que todas as histórias são válidas - há também um lado perverso quando qualquer visão pode ser ventilada pois algumas são mentirosas, preconceituosas ou perversas, mas mesmo com elas temos alguma coisa a aprender sobre como lidar com o mundo. Eu ainda penso muito no que disseram esses dois amigos cada vez que me vejo relutando em escrever algo que valorizo porque considero bobo, insuficiente ou menor. Precisamos continuar contando as nossas versões não só pra que elas possam se espalhar e encontrar quem também seja tocado por elas, mas especialmente pra aprender a lidar com as diferentes histórias, sem achar que existe uma visão adequada ou a única correta.
Sobremesa
A Isa Sinay escreveu uma newsletter curiosa sobre desejar o silêncio. Ela já vinha pensando sobre o assunto desde uma viagem que fez ao Japão - e embora ela julgue que a situação parece um pouco o clichê da ocidental que volta do Japão pensando sobre o barulho do ocidente - depois de tantos meses ela não se livrou desse desejo por silêncio porque parece que ele tem algum sentido profundo pra ela. Ela não se vê como uma pessoa muito silenciosa ou austera, então o que ela faz é tentar entender de onde vem esse desejo: Um pouco o silêncio que eu busco me parece ter a ver com isso: finalmente aprender a ouvir o que eu quero, o que eu gostaria. E isso me parece também uma vontade universal. Não que eu esteja aqui dizendo vamos todos acordar sem despertador e chegar no trabalho na hora que nossos corações mandarem (eu obviamente só faço isso em dias que estou apenas trabalhando de casa), mas que talvez a gente precise silenciar regras, estruturas e ideias de nós mesmos para ouvirmos o que queremos de verdade. Quando a gente fala de excesso de informação, de necessidade de respostas, da pressão das redes, talvez seja isso que estamos tentando acessar: a incapacidade de ouvir nossos próprios cérebros. Nossas próprias opiniões.
Colocar no ar o site Braço Gordo foi a forma escolhida pela fotógrafa Camila Rocha pra reescrever uma parte da história do seu corpo. Usando imagens suas com intervenções feitas com bordado, a Camila escreve sobre sua dificuldade de lidar com seus braços que pode ressoar em muitas de nós, além de oferecer uma parte do seu caminho pra lidar com a questão. Mas ela observa no site, assim mesmo, em negrito: Respeite a sua jornada. Essa daqui é a minha.
Quando postamos nas redes sociais estamos constantemente construindo narrativas sobre nossas vidas: quem somos, do que gostamos - ou pelo menos o que gostaríamos que vissem de nós. No entanto, algumas vezes nos tornamos coadjuvantes nas narrativas das outras pessoas que encontramos por lá. Esse episódio do podcast Digital Human da BBC narra uma série de histórias - algumas engraçadas, outras um pouco trágicas - de como nos vemos enredados por histórias alheias, e leva a uma série de reflexões. Como os nossos rastros na internet afetam as pessoas em volta? Qual a sua intenção ao postar algo? É pra atender ao algortimo, a você, o que você imagina que o outro quer, é pra contar qual história? (O podcast é em inglês).
No blog, sigo escrevendo coisas que contam do meu olhar sobre o mundo não porque ele seja único, mas porque acho que isso é a coisa mais sincera que posso oferecer. Aproveitei uma viagem de férias pra Fortaleza e escrevi sobre minhas impressões e tentativas de usar o Mel de caju que conheci e trouxe de lá. Mostrei as alfaces do mato que começaram a pipocar pelo meu jardim agora que o tempo no sul começou a querer esquentar (e aproveitei pra dar a receita de um molho de limão que fica ótimo com elas). E contei causos e ideias que me me chamaram a atenção durante a leitura do livro Fominismo - quando o machismo se senta à mesa, da francesa Nora Bouazonni, lançado pela Quintal Edições.
As imagens da newsletter de hoje são uma visão singular do mundo materializadas em pinturas a óleo feitas com os dedos pela artista Iris Scott.
Pra quem continua por aqui me acompanhando e de alguma forma incorpora minhas narrativas nas suas próprias, fico agredecida pela alegria genuína de poder me sentir parte. Se você acha que essa newsletter também vai fazer sentido na história de outras pessoas, pode encaminhar este email, recomendar a newsletter ou compartilhar este link nas suas redes sociais. Também pode me contar suas histórias de volta respondendo a este email.
Um beijo e um pedaço de queijo,
Carla Soares
Me encontre também no
Instagram * Twitter
Visite a lojinha do OutraCozinha - Tem sementes, postais e bordados 💚