[OutraCozinha #38] Sonhar pra si a metáfora das plantas
ma das últimas coisas que fiz antes de me mudar da capital pro interior foi consultar uma taróloga. As coisas estavam muito obscuras pra mim naquele momento porque apesar de desejar essa mudança, eu não tinha a mínima ideia do que estava indo fazer naquele lugar. Tinha feito essa escolha guiada por um senso vago de querer experimentar coisas diferentes, mas não sabia como agir, não tinha de fato nenhum plano concreto do que fazer ali.
A carta mais importante que ditou todo o tom da minha conversa naquela tarde com a taróloga foi A Sacerdotisa. A Sacerdotisa é a terceira carta da jornada arquetípica representada no Tarô, e costuma trazer o desenho de uma mulher pálida vestida com uma túnica enfeitada com cruzes, que está sentada num trono segurando um livro. Em algumas representações, como no Tarô clássico de Marselha, um ovo aparece ao fundo, à direita da mulher. A Sacerdotisa evoca uma mulher encerrada em um templo ou clausura, que fez um pacto com esse mistério que alguns chamam de Deus. Ela encarna o arquétipo do inconsciente manifesto. Sentada, ela parece estar chocando esse ovo e também a si mesma. Ela representa uma gestação, mas não de carne que cresce no ventre e sim uma gestação espiritual, já que a Sacerdotisa é uma mulher mística.
É uma carta que costuma ser mal recebida porque ela diz "não faça nada, não é hora de agir e sim de gestar". Ninguém que procura o oráculo aflito pra saber como agir gosta de ouvir que não é pra fazer nada, apenas deixar as coisas fluírem, sem atuar diretamente sobre elas. Nós estamos muito acostumados a achar que a única forma de atuação é pela ação, nunca pela sutileza da espera, da observação demorada, da adaptabilidade lenta e interna que a carta da Sacerdotisa sugere. Frequentemente, a gente não sabe nem o que quer dizer isso.
Não é algo só nosso, do bicho gente, mas comum a todos os animais. É parte do nosso perfil de respostas instintivas lutar ou fugir, duas ações drásticas e frenéticas que fazem nosso corpo inteiro se agitar pra responder ao que nos acontece. Já esse tipo de resposta que exige espera, que capta e analisa mas não se mexe, nós frequentemente julgamos que é inferior, coisa de organismos indefesos que ficam parados — feito uma planta.
Fiquei pensando muito na nossa dificuldade em lidar com essa atuação diferente sugerida pela carta da Sacerdotisa enquanto lia Revolução das plantas, livro escrito pelo neurobiólogo e pesquisador Stefano Mancuso. Nesse livro, o autor constrói uma série de ensaios curiosos, tomando as habilidades das plantas como modelos inspiracionais pra gente lidar com os desafios contemporâneos — e isso passa por sustentabilidade, mas também arquitetura, engenharia espacial, sociabilidade e cooperação. Mancuso conta que em geral pensamos nas plantas como uma coisa meio inanimada mesmo estando vivas, ou apenas como uma paisagem de fundo no lugar de protagonistas. Às vezes, reduzimos elas a um objeto — e o capitalismo é muito bom em nos ajudar a construir esse tipo de relação com as coisas. Mas dificilmente a gente pensa em plantas como seres complexos, dotados de inteligência, capacidades e percepções muito finas.
Qualquer um que já trouxe uma planta adulta exuberante pra casa e observou essa planta morrer pode ter sentido uma decepção consigo mesmo por não ter sido capaz de manter a planta viva. Dificilmente, no entanto, se deu conta de que a planta que chega ali tem uma história — ela viveu de determinada forma antes de chegar ali, recebeu luz e água e nutrientes de um certo jeito, e de repente se viu num lugar novo, diferente, que exigiu mais adaptações do que ela dava conta de fazer.
É difícil pra nós fazermos essa leitura até mesmo por questões biológicas, já que lidamos com o estresse de uma maneira muito distinta: diferentemente das plantas que ficam enraizadas onde estão, os animais lidam com as dificuldades que aparecem se movendo. Assim, se chega o inverno e o frio se torna penoso, a comida escassa e o ambiente hostil, a resposta é migrar pra uma região mais quente enquanto a estação não muda. Se o lugar não tem parceiros disponíveis pra reprodução, pensamos logo em ampliar os horizontes. Se acabou a comida, é melhor tentar procurar um lugar com mais fartura. Se no lugar que o animal vive elegem alguém inconcebível, ele pensa logo em se mudar pra outras bandas.
Embora todas essas respostas sejam soluções, não deixa de ser possível interpretar que também são fugas, tentativas de evitar um contexto desagradável procurando um mais favorável. Já a planta, que não pode se mover, tem que encontrar formas de se adaptar a todas essas coisas se quiser sobreviver. Pra isso, ela precisa ter uma percepção muito afinada do que está acontecendo pra ser capaz de se integrar. As plantas não fogem nem mudam o entorno delas, mas elas captam as coisas — e essa é a fortaleza delas.
Vegetais, então, precisam ter como perceber com precisão a quantidade de água disponível, além de ter uma prospecção sobre a umidade que está no ar. Precisam ser capazes de captar os minerais na terra, a temperatura, a luz e a composição dos gases atmosféricos. Também é bom que consigam distinguir estímulos mecânicos, a presença de predadores, de organismos simbiontes ou nocivos, bem como a proximidade ou o afastamento de outras plantas que podem competir por recursos ou serem úteis pro seu desenvolvimento. Em todas essas situações, as plantas precisam ser capazes de sentir a intensidade, a duração e a direção que caracterizam cada uma dessas complexas interações. "Essa é mais uma confirmação de que associar a ideia de vegetal à falta de sensibilidade é uma enorme estupidez", conta Mancuso.
Não é sem porquê essa forma sensível das plantas de lidar com o estresse. Esse tipo de resposta só pode ser dada porque a planta tem uma estrutura descentralizada, que é muito diferente da nossa. Enquanto nós temos um sistema nervoso central, as plantas têm sistemas espalhados e intrincados: são as raízes, que entram na terra e se ramificam formando uma espécie de rede esparramada por uma superfície gigantesca; mas também as folhas, que funcionam como partes autônomas, como se a planta fosse não um único indivíduo mas uma colônia com vários módulos que se repetem. Tanto é que diferente de nós, que se tivermos um órgão atingido corremos o risco de morrer, se a planta tiver uma folha arrancada não só sobrevive como em muitos casos é capaz de gerar um outro ser. É um tipo de organização que não temos fisicamente em animais, mas que é bem parecido com o que a gente vê em conjuntos deles, como nos insetos sociais — como abelhas e formigas — ou em animais que vivem em bandos — como pássaros ou macacos. Ambos atuam usando as particularidades surgidas a partir das interações para responder aos problemas e há nisso uma forma de inteligência que é muito maior do que a simples soma de ação das partes.
Nem sempre, porém, nós reconhecemos esse tipo de dinâmica como inteligência. Embora a complexidade orquestrada do formigueiro seja bonita de se ver e de se imaginar, a formiga em si não é vista como uma coisa inteligente porque a ação parece ser só uma resposta dentro do conjunto. A gente tende a pensar que a formiga corta folhas apenas porque esse é o trabalho dela — ela foi biologicamente programada pra fazer isso, e esse trabalho nem é de fato algo que resulta em algo pra ela, mas sim pro formigueiro. No entanto, a percepção de que só existe inteligência na expressão da vontade individual, assim como a de que nas plantas só há passividade é fruto de nos tomarmos constantemente como modelos. Não é necessariamente real.
A Sacerdotisa continuou a aparecer pra mim com frequência nos anos seguintes à essa mudança, como quem me avisa de que essa questão é tão importante que preciso permanentemente fazer as pazes com esse tipo de 'ação'. É uma lembrança arquetípica de que existem outras formas de inteligência e de se fazerem as coisas que não seja pela atuação volitiva — e não dá pra dizer que a Sacerdotisa é só instinto, afinal ela é uma figura que inspira um bocado de solenidade, ela tem um livro sagrado nas mãos.
É curioso nos lembrarmos nos momentos em que a gente sente que pode agir tão pouco de que existem outras forças. A gestação sagrada e a espera da Sacerdotisa é também a das plantas, que captam as coisas ao redor de uma maneira virtuosa. Nenhuma delas está de fato parada, apesar de nem sempre sermos capazes de ver. Conectar-se com o invisível é a potência da Sacerdotisa, que tem uma ligação profunda com o divino que habita em cada uma das coisas vivas.
A Sacerdotisa e as plantas dizem que não é necessário que se dê uma resposta tangível em alguns momentos. Que isso não significa se tornar paisagem, nem que nada está sendo feito. Não é uma atitude fácil de ser levada, tampouco é algo que facilmente pode ser reconhecido pelos outros como uma resposta inteligente. Todas as vezes que chamam alguém de planta é pra fazer virar bicho. Mas é uma falta de visão considerar que por estar parada a planta é menos potente. Quando o sistema nos obriga a agir permanentemente, um modelo que inclua outros tipos de saberes às vezes pode parecer que é não é possível, ou que é só uma fabulação. Mas nem sempre a gente precisa virar bicho. A gente também pode sonhar pra si a metáfora das plantas.
(Texto originalmente escrito à convite e publicado na Revista Deriva)
Fogo
iquei bastante tempo sem escrever essa newsletter. Não era minha intenção. Em fevereiro finalizei o manuscrito do meu livro, e estava então em busca de um lugar para publicá-lo. Mas como todo mundo, fui pega de surpresa pela situação da pandemia e a consequente suspensão da vida cotidiana e dos planos. Embora minha vida interiorana já fosse um bocado reclusa, também me vi perdida, emocional e fisicamente desgastada, tentando cultivar um lugar de calmaria dentro da tempestade.
Eu costumo pensar que sou uma pessoa de fermentação. Eu preciso de tempo pra deixar que as coisas se transformem, longe da luz. Meu compromisso nunca foi com manter uma periodicidade, mas agir quando sei que tenho o que oferecer.
Algumas coisas mudaram aqui dentro, pelo menos por um tempo. Tenho sentido menos vontade de ler e de escrever, mas há pouco percebi o quanto criar outras coisas estava me fazendo bem. Voltei a bordar, a secar plantas. Comecei a estudar de forma livre sobre chás, astrologia, tingimento com plantas. Coisas concretas porém sem nenhuma coerência, e que não tenho ideia ainda de pra onde me levarão. Estou trabalhando em alguns bordados que em breve devo comercializar nas minhas redes sociais. Tem sido um período em que apesar das palavras serem importantes pra mim, elas não têm dado conta do que eu preciso no momento. Que bom que existem outras formas de se expressar e que a gente não precisa se limitar a uma coisa só.
Terra
egue um recipiente qualquer - pode ser um vaso livre que você não esteja usando, mas também pode ser uma lata velha, uma garrafa PET descartada ou que você tiver à mão. O importante é que que você possa colocar nele terra e que ele tenha furos no fundo pra ter como escoar eventuais excessos de água.
Colete então terra de algum lugar. Não use terra vegetal comprada: desça até o jardim do prédio e retire gentilmente a terra de uma parte, ou leve uma sacola na sua próxima ida ao supermercado pra trazer terra de um parque, um canteiro ou do pé de uma árvore. Coloque essa terra no vaso e molhe todos os dias no mesmo horário pelos próximos 15 dias. Não importa se nos 10 ou 12 primeiros dias nada vier, siga acreditando e mantendo sua terra úmida. Espere a vida brotar espontaneamente dali. Num outro momento você poderá fazer o exercício de tentar identificar que planta surpresa veio pra você. Mas agora observe o que essa espera é capaz de trazer pros seus dias.
Ar
ei que não sou a única que ainda tem dificuldades de colocar em palavras o que estamos vivenciando. Ainda na mesma edição da Revista Deriva de que participei, Fabrina Martinez escreveu sobre como o silêncio da quarentena pode ser diferente porque ainda nos faltam as metáforas necessárias pra falar dele. "Longe de revelar nossa fragilidade individual, o vírus expôs nossa fragilidade coletiva e derrubou conceitos que nos pareciam tão concretos. Minha percepção do tempo mudou tão violentamente quanto minha percepção de solidão e silêncio".
Já que além de plantas também trouxe o tarô pra conversa, o episódio #5 do podcast Bobagens Imperdíveis vem bem a calhar. Nele, Aline Valek fala sobre Pamela Smith, a artista que ilustrou um dos baralhos de Tarô mais famosos do mundo, o Rider-Waite (que ironicamente leva os nomes do ocultista que o encomendou e de seu editor, e não o de Pamela). Pamela Smith jamais foi devidamente reconhecida por essa obra, mas não morreu sem deixar rastro. Muitas pessoas fazem trabalhos mágicos, que podem até alcançar o mainstream (como é o caso da arte desse baralho), mas que não necessariamente trazem recompensas materiais ou fama pra quem as produz. Mas existem outras formas de presença. Cada vez que a gente abre esse Tarô, "a gente consegue evocar a Pamela, chamar ela pra conversar e pedir ajuda pra entender o que a gente não tá conseguindo ver. Ela desenha pra você". O episódio de 26 minutos tem roteiro cuidadoso, pesquisa muito bem feita, e emociona, como tudo que a Aline costuma fazer.
Apesar do modo peculiar de se adaptar das plantas, observar outros animais também pode trazer alento. Na VerdeSP da Maisa Infante, o caso curioso de um prédio na zona leste de São Paulo que atrai maritacas. Todos os dias às 5h30 e às 17h, elas se agarram à fachada de tijolos há cerca de 25 anos: "Observar esse fenômeno dentro da cidade, em uma bairro super movimentado é uma experiência interessante. Mostra o quanto a natureza é resiliente. Assim como o sabiá-laranjeira, que adaptou seu canto para a madrugada por causa do barulho, essas maritacas encontraram um local seguro para seguir suas vidas. O que será que podemos aprender com isso?"
No blog, deixei uma receita que é uma lembrança pra gente se cuidar integralmente nesses tempos: preparar um chá yogi com intenção e atenção plena. Pode parecer bobagem, mas da mesma forma que quando nós remoemos coisas ruins tudo parece cinza, se concentrar na delícia do momento de fazer e saborear ajuda a transformar esse chá num verdadeiro ritual. Também contei o causo do alecrim que era lavanda, uma descoberta que fiz depois de 3 anos convivendo com a planta. O mistério é curioso, mas também ajuda a pôr em perspectiva que as coisas levam tempo, o tempo que é preciso pra se revelarem aos olhos da gente.
Se você se interessou pelo livro Revolução das plantas, do qual falei no ensaio dessa newsletter, use este link para comprar. Com ele eu ganho uma porcentagem pequena sobre o valor da venda do livro. É uma forma de apoiar meu trabalho de escrita e a continuidade do OutraCozinha, pra que ele exista de maneira independente.
Obrigada por estar por aqui mais um dia. Caso você queira compartilhar o ensaio Sonhar para si a metáfora das plantas, o link da publicação está aí. Você também pode recomendar a assinatura dessa newsletter. Não se esqueça de que compartilhar o que nos faz bem ajuda a multiplicar o bem-estar por aí - e isso parece ser bem importante neste momento.
Um abraço,
Carla Soares
OutraCozinha