[OutraCozinha #40] Integralmente
Sigo muitas pessoas que fazem arte e outros trabalhos interessantes e usam as redes sociais pra mostrar o que fazem. Nas minhas redes tem outros escritores, ilustradores, fotógrafos, bordadeiras, muitas pessoas de místicas, alguns cozinheiros e nutricionistas, biólogos, naturalistas. E se tem uma coisa que vira e mexe eu vejo todos eles reclamando é que hoje em dia não adianta só saber o seu ofício, mas também é preciso saber operar integralmente a maquinaria. Saber jogar o jogo da comunicação e das redes é importante pra poder conseguir ser ouvido.
Eu entendo bem esse sentimento, porque vira e mexe eu também estou lutando com ele. Eu sou uma pessoa bastante reservada, e que tem questões em se expor, e até de expor o que faz. Pra mim é especialmente difícil gravar um vídeo, ou contar uma coisa pessoal e sensível, correndo um risco alto de ser mal interpretada e julgada. Só eu sei o quanto é difícil sair de alguns sentimentos depois que eles chegam, e por isso, eu tento me preservar um bocado.
Mas é verdade que ocupar espaço na internet torna inevitável que a gente se abra um pouco, se desapegue da própria imagem e se coloque numa posição vulnerável. Não tem uma medida exata e isso não significa transformar sua vida num reality show, mas é preciso um pouquinho de coragem. Da maneira como inventarmos que pode ser.
Embora ache particularmente sofrido expor várias das minhas questões, quando estou do outro lado assistindo as pessoas que admiro, acho uma coisa profundamente bonita ter a oportunidade de saber que essas pessoas também tem sua dose de humanidade. Saber que elas são contraditórias, que também têm questões em se exporem, ou que as vezes tudo fica penoso e complicado diante das coisas da vida chega a ser um alívio.
Uma amiga da internet muito querida voltou esses dias depois de um pequeno hiato de luto, e desabafou sobre a surpresa de perceber que ela perdeu um número significativo de seguidores em todas as redes. Ela sentiu esse abandono como se fosse um recado dado pela audiência como uma falha na sua atividade como entretenedora. Mas entretenedora estava muito longe de como ela se via - uma pessoa, com problemas, perdas, dificuldades, e um ritmo nem sempre linear de fazer seu trabalho, tentando fazer o que pode e nem sempre sendo suficiente.
Fico pensando sobre como essa lógica de existir algo que a gente chama de lixo no mundo reforça a ideia de que existem coisas que são feitas pra ser descartadas e enterradas longe das vistas, e outras que são uteis e aproveitáveis. Mesmo quando a gente quer falar sobre mudar o uso que a gente faz dos alimentos, a gente acaba sem querer criando uma dicotomia. É mais ou menos o que acontece com esse termo "aproveitamento integral de alimentos". Ele reforça uma ideia de que existem as partes boas e as partes ruins, e que no máximo dá, com jeitinho, pra tentar dar utilidade e tirar proveito das partes que não são tão boas assim. Faria mais sentido se a gente desse conta de ver a coisa mais como um todo, sem separar e fazer tanto juízo. Mesmo que não sejam comida, dentro da cadeia orgânica da vida não existe alguma coisa que possa de fato ser considerada lixo - as coisas apodrecem pra virar alimento pra outros tipos de vida. E isso também é integralidade, mas a gente tem dificuldade de perceber.
Quando fico aflita ou chateada por não sentir que estou sendo vista na minha inteireza como humana, eu tento me lembrar do humano inteiro que existe do outro lado. Do humano que tem falhas e incoerências, e que eu também não consigo entender direito. Eu tento esquecer dos números e lembrar da pequena comunidade que acabei criando. Ainda que tenha muita gente que dança a dança dos algoritmos e da loucura do entretenimento descorporificado, também tem pessoas que não estão dispostas a se relacionar desse jeito. E são com essas pessoas que eu sinto que estou conversando.
Embora a ideia de se desapegar dos números possa ser muito difícil porque o mundo tem muito apreço por ela, uma boa pergunta a ser feita é "O que você quer com esse monte de pessoas te vendo?". As redes sociais são um instrumento terrível em reforçar na gente essa sensação de escassez, como se não houvesse atenção suficiente disponível. A gente se acostuma a achar que é o tamanho da rede que delimita o tanto de espaço que a gente tem pra se amparar, mas de nada adianta pular em uma trama grande com nós fraquinhos e a corda puída. A gente se estabacaria no chão do mesmo jeito.
Essa abertura pra falar da nossa porção mais humana é o que também faz com que esses nós possam ser mais bem dados. É a partir deles que a gente se identifica, que a gente enxerga que tem problemas parecidos, que não dar conta é uma coisa que acontece mesmo e que a gente não tem que empurrar tudo de qualquer jeito. Não é só com um repertório de coisas bonitas que a gente cria. As dificuldades também nos ajudam a ser capazes de construir nossas próprias soluções pros problemas da vida. É difícil encontrar a medida daquilo que a gente se sente confortável de abrir, e o julgamento que a gente é capaz de suportar, mas me parece sempre alguma coisa admirável de se tentar.
A gente precisa estar atentos pra criar e manter esses espaços minimamente seguros, eles são importantes demais pra gente acessar as coisas bonitas, e também as fragilidades. Se por lado é mesmo mais difícil ter que desenvolver múltiplas habilidades, por outro lado também nunca foi tão acessível ver toda a nossa humanidade. Integralmente.
Sobremesa
Galo de luta é o nome que o motoboy Paulo Lima escolheu pra usar nas redes e na vida. Ele ficou muito conhecido quando teve sua inscrição num desses aplicativos de entrega foi cancelado por conta de um pneu seu que estourou. Galo fez um então um vídeo, onde ele aparecia falando: "Sabe como é difícil carregar comida nas costas de barriga vazia?". Esse vídeo tomou conta das redes e fez com que Galo criasse o movimento dos entregadores antifascitas. Nesta entrevista que ele deu para a jornalista Milly Lacombe na TRIP, Paulo fala sobre sua história, sua luta, mas também expõe um lado seu muito humano. Longe desse jogo de culpabilizações que as redes sociais tentam criar sobre a noção de privilégio, Galo lembra que não tem essa de se colocar pra jogo como supertrunfo e 'ajudar' na luta. A primeira coisa é entender que você é parte, igual o entregador. E termina com uma mensagem sobre a importância de estar junto: "Se eu fosse o Lemann, eu ia comprar a utopia pra todo mundo porque eu não consigo entender como é que as pessoas conseguem ser felizes sozinhas. Felicidade vem do coletivo"
Se você, assim como eu, tem um pouco de dificuldade de se expor na internet (e também em outros espaços), o episódio A Era dos Introvertidos do podcast Boa noite internet pode te interessar. Nele o apresentador Cris Dias faz um exercício especulativo sobre um mundo pós-pandemia. O nosso mundo favorece bastante as pessoas mais barulhentas, que falam mais alto e não tem medo de botar a cara no sol. Mas será que com essa loucura que estamos vivendo também está nascendo um contexto em que pessoas que se recarregam quando estão sozinhas serão finalmente favorecidas? Eu não sei, ele também não sabe, mas o texto bem cuidado do podcast está uma delícia. (E se você não gosta muito de podcast, não tem problema. Aqui todas as aptidões são favorecidas. Olha aqui o transcript pra quem preferir ler)
No blog, eu escrevi sobre porque não uso mais o termo PANC. Já tinha um bom tempo que eu vinha evitando usar o termo pra falar desses ingredientes menos comuns, mas achei que era importante falar sobre essa minha escolha. O termo PANC foi útil pra criar percepção do tamanho da perda de biodiversidade no prato causadas pelo agronegócio, mas apaga a diversidade real por trás delas e cria uma sensação de escassez, já que inscreve todas essas plantas num único rótulo de "não convencionais", e portanto, raras. Eu evitei escrever esse texto por muito tempo - mais de 1 ano - porque eu tinha muita insegurança sobre como essa ideia ia ser recebida. E de fato, muita gente desdenhou e me achou presunçosa, atacaram a legitimidade das minhas ideias já que não estou na academia. Mesmo quem concordou fez isso com um tom mais agressivo, invalidando completamente o termo, o que foge bastante do tom que geralmente costumo usar. Mas também recebi emails emocionantes. Chegou até mim que o texto circulou na academia, que foi compartilhado pelo Slow Food, e também replicado por outras pessoas que me contaram que existe um interesse por esse debate. Foi um fim de semana particularmente difícil pra mim, mas ainda acho que valeu ter tido a coragem de jogar essa garrafa no mar.
A Lorena Uceli compartilhou no blog Das Minúcias uma reflexão sobre o amor e o morrer. Blogs são cantinhos que ainda hoje guardam a possibilidade da gente desenvolver com um pouco mais de espaço esse nosso lado vulnerável, poder contar sobre coisas difíceis, e ser mais estranha e ambígua. Nesse texto, ela conta com uma delicadeza ímpar sobre como aprendeu o que era morte quando criança, a dificuldade de observar a morte sendo uma estudiosa da vida, até chegar na partida do pai agora adulta. É admirável se colocar de maneira tão desarmada pra falar desse assunto. São daquelas coisas que fazem a gente também retomar nossa própria humanidade.
Pra quem chegou até aqui, obrigada pela companhia.
Como já disse em outras oportunidades, eu não acredito e ando muito cansada desse modelo publicitário na internet. Se você gosta do meu trabalho, considere me Apoiar financeiramente. É esse apoio que permite que o que eu escrevo continue sendo feito com cuidado, e seja de acesso público e livre. A partir de $5 reais, você também recebe todos os meses uma cartinha digital minha, um pouco como essa daqui, mas com regularidade. Mas tem outras modalidades também e até uma cartinha que chega pelos correios.
Um enorme beijo e até a próxima,
Carla Soares
OutraCozinha
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As artes que ilustram essa cartinha são do perfil Shitty Watercolor, que publica regularmente esses quadrinhos no instagram e no tuiter. Nos últimos meses ele vem postando mais devagar porque está trabalhando num livro com essa série de quadrinhos aquerelados de conversas compassivas com o gato.