Eu me lembro do meu pai sentado nas pedras que ficavam acima do lago, usando a sua camisa xadrez. Quando ele levantava o bule de café do fogão parecia que o tempo parava. A gente sabia mesmo sem ninguém dizer nada que era tempo de prestar atenção.
O sol ajudava a dar um tom âmbar brilhante para o líquido que se derramava do bule para a terra, enquanto a gente observava o vapor que contrastava com a manhã fria. Papai derramava o café e falava com uma quietude: “Esse daqui é pro deus de Tahawus”
Eu tenho certeza que nenhuma outra família que eu conhecia começava o dia desse jeito, mas eu nunca questionei de onde veio essa tradição, e meu pai nunca explicou. Era só parte da nossa vida enquanto a gente viveu ali nos lagos.
Esse ritmo me fazia sentir em casa, e a cerimônia desenhava um círculo em volta da nossa família. Com aquelas palavras, eu sentia que era como se disséssemos “aqui estamos”, e imaginava que a terra ouvia, e murmurava de volta para ela mesma “ah, aqui estão aqueles que sabem dizer obrigado”.
Eu sabia que há muito tempo atrás as pessoas agradeciam entoando algumas canções de manhã cedo, rezando, e ofertando tabaco sagrado. Mas durante toda a vida com a minha família, nós nunca soubemos essas canções.
Quando fui crescendo e me tornando uma adolescente, essa oferenda do café começou a me deixar irritada e triste. Esse círculo que me trazia uma sensação de pertencimento parou de fazer sentido. Eu ouvia na mensagem que no fundo nós não pertencíamos, porque falávamos a linguagem do exílio. Era uma cerimônia de segunda mão. Em algum lugar existiam pessoas que sabiam a cerimônia certa, que conheciam a linguagem perdida, e que sabiam os nomes verdadeiros das coisas, incluindo o meu.
Ainda assim, todas as manhãs eu assistia o café desaparecer no meio da terra, como se voltasse para ela. Eu sentia que era uma cerimônia solitária.
Mas do mesmo modo que o fio de café entrando na terra acabava fazendo com o tempo o musgo brotar, a cerimônia aos poucos foi trazendo um pouco de tranquilidade de volta para a vida. Talvez fosse uma cerimônia de segunda mão, mas mesmo no meio da minha confusão eu reconhecia que a terra bebia o café.
Anos mais tarde, perguntei ao meu pai de onde veio essa cerimônia. Ele ficou pensativo por um tempo e me contou a seguinte história:
“Era café fervido. Não tinha filtro, e quando se fervia por algum tempo, o pó subia e formava uma espuma que podia entupir o bico do bule. Daí o primeiro copo que se servia tinha essa massa de pó, e ia acabar sendo desperdiçado. Eu acho que a primeira vez que fiz isso foi pra limpar o bico do bule”
Toda aquela história que eu me lembrava, o círculo de pertencimento e gratidão, não era nada além de tirar o aglomerado de pó de café?
“Mas nem sempre tinha pó pra limpar. Começou desse jeito, mas virou outra coisa. Virou algo respeitoso, um tipo de obrigado que eu dizia pelas manhãs. Eu acho que isso era contentamento”.
Isto, eu acho, é o poder da cerimônia. Ela junta o mundano com o sagrado. A água vira vinho, o café vira oração. O que mais se pode oferecer para a terra, que tem tudo, além de alguma coisa sua mesmo? Uma cerimônia caseira, uma cerimônia que cria uma sensação de lar.
[Robin Wall Kimmerer, escritora e botânica canadense de origem indígena, no ensaio An offering, do livro Braiding sweetgrass. Traduzido e adaptado por Carla Soares]
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Não importa quais são os seus rituais de final de ano, se você compartilha com muitos outros ou se está criando o seu modo de pertencer. Ela é a sua forma de se lembrar de quem você é e onde você está.
Esta newsletter que estou te enviando é a minha. É o meu jeito de agradecer por você ter estado aqui, por ter feito parte junto comigo do que eu queria colocar no mundo.
Aqui estamos, pra lembrar mais uma vez do que nos mantém vivos <3
Sobremesa
Enviei uma versão impressa dessa história, com uma encadernação costurada à máquina por mim, pra todos os que apoiaram financeiramente meu trabalho criativo e de escrita no OutraCozinha. Essa cartinha foi acompanhada de adesivos ou de um pôster tamanho A4, com uma ilustração original que encomendei com a artista Laura Athayde. Foi um mimo que quis enviar pra agradecer por esse suporte, num ano que foi particularmente difícil pra mim.
Tenho algumas poucas impressões extras dele. A ilustração em tamanho A4 numa impressão bacanuda em couche fosco com laminação custa $75, já com as despesas de envio pra qualquer lugar do Brasil e exterior. Se você tiver interesse, é só responder este email que a gente conversa sobre o envio <3
Se você ainda estiver procurando uma receita de fim de ano de última hora, pra servir ou presentear, dê uma chance a esses biscoitinhos amanteigados, que publiquei ao longo deste ano. Além de simples e só levar 3 ingredientes, você pode colocar especiarias, castanhas, confeitar por cima, do jeito que o seu coração pedir.
Mas se a intenção agora é só pensar nos refrescos e pequenas alegrias que vem de experimentar coisas diferentes, minha sugestão de férias é esse picles cheio de especiarias feito com a entrecasca da melancia.
Que 2022 seja mais gentil com a gente
Enorme abraço e muito descanso,
Carla Soares • OutraCozinha
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