Bagagem extra
Encontrar significado divino em coisas à nossa volta é o suficiente, maior do que a boca da baleia que nos engole diariamente
Assistir outra vez coisas que já vi é a minha forma favorita de rapidamente me fazer sentir confortável. Sei mais ou menos o que vou experimentar, e posso de novo pensar em algo que sei de antemão que é importante pra mim.
Foi nessas que eu resolvi rever o seriado Dark, uma história em que não por acaso eu me identifico com o personagem principal Jonas, que fica indo e voltando numa mesma história durante as três temporadas.
Não é todo expectador que gosta de Jonas. Jonas é um cara que está envolto em um mistério, o desaparecimento de um amigo numa noite na floresta em que estavam juntos, e quando ele volta pra casa descobre que o pai havia se matado. Esses eventos desastrosos deixam Jonas muito mal, e ele fica algum tempo afastado da escola, da sua casa e da cidade onde mora. Quando retorna, um quase romance que estava engatando parece não ser mais possível, alguns amigos parecem distantes, e novos acontecimentos estranhos começam a acontecer em volta dele. Tudo isso faz com que Jonas fique muito intrigado por desse ponto onde todas as coisas parecem ter dado errado.
le tenta a todo custo Ele passa grande parte do tempo analisando obsessivamente a história pra encontrar o ponto em que as coisas deram errado, e tentando voltar a esse ponto viajando no tempo pra tentar consertar tudo – mesmo sem saber direito o que esse tudo significa.
Jonas as vezes soa aflitivo porque grande parte do tempo ele é muito repetitivo. E embora o seu esforço seja exatamente pra fazer com que as coisas parem de se repetir, é ela que move o personagem - e também a minha vontade de rever o seriado. Repetições sempre vão nos dar uma pista das coisas que nos tocam, dos sentimentos nos quais a gente está investido, e nos grandes mistérios da vida que ficamos intrigados querendo resolver. Isso faz sentido tanto pras histórias que pessoalmente nos interessam quanto para as que são repetidamente contadas entre nós.
Ele é meio herói e meio vilão, e que causa um bocado de aflição nas pessoas.
A história de Jonas em Dark, aliás, é uma dessas histórias recontadas. O nome do personagem não é por acaso. Ele faz referência à história bíblica de Jonas, que tem semelhanças em outras histórias de culturas não cristãs – como o Gilgamesh dos sumérios, ou o mito grego de Jasão e a busca do Velocino de ouro. Elementos da jornada de Jonas também aparecem em várias outras histórias populares – como o Moby Dick de Herman Melville, que além de ter a figura da baleia também conta com um sermão sobre a história de Jonas; ou as aventuras de Pinnochio, em que o personagem e seu pai são engolidos por uma baleia.
Na história, Deus pede a Jonas que ele vá até a cidade de Nínive levar uma mensagem de arrependimento e salvação. Mas Jonas não quer fazer essa tarefa, ele tem medo do que os outros vão pensar se ele for até essa terra que é inimiga. Ele corre então para o porto e embarca numa viagem no sentido oposto, fugindo da tarefa designada. Durante a travessia, no entanto, uma tempestade terrível começa a cair, e a segurança da embarcação é posta em risco. Jonas nesse momento fica aterrorizado, e começa a acreditar que a causa da tempestade é a sua recusa em cumprir a tarefa solicitada por Deus. Pra conter a tormenta, ele pede então aos tripulantes que o atirem ao mar, no que é, depois de bastante resistência, atendido. Assim que é atirado, a tempestade se apazigua, e uma baleia o engole. Ele sobrevive por três dias e três noites no estômago da baleia, e durante o período decide então cumprir a tarefa designada. A baleia nada até a cidade de Nínive e o vomita. Ele entrega a mensagem de Deus na cidade achando que jamais seria ouvido, mas as pessoas o ouvem, se arrependem, e a cidade é salva porque Jonas entregou sua mensagem.
As interpretações mais comuns sobre a história de Jonas pensam nela como uma história de arrependimento e os caminhos pelos quais o divino leva a gente a agir. Mas saindo das interpretações teológicas, e pensando em termos narrativos, ela pode ser vista como uma jornada, ainda que não pareça tão corajosa, ao desconhecido. A missão de Jonas depende de algo que vai muito além da sua vontade e do pensamento racional. É uma aventura que ele só pôde viver graças à capacidade que nós temos de atribuir significado às coisas que acontecem à nossa volta. É a imaginação que nasce das coisas banais que nos sucedem e às quais atribuimos significado que nos fazem percorrer as mais diferentes caminhadas.
Além disso, é desconcertante perceber que Jonas é gente como a gente. Jonas não é um salvador, mas alguém que pralém de receber uma missão dos céus, é um pouco egoísta, e não quer dividir a misericórdia divina com os seus inimigos ninivenses. Ele também não se torna um grande herói ao pedir que o joguem no mar quando a tempestade aperta – ele poderia simplesmente ter se atirado, mas não encontra coragem pra fazer. E apesar de decidir entregar a mensagem divina aos ninivenses durante o período escuro dentro da barriga da baleia, é ela quem o deixa exatamente onde Deus disse que ele deveria estar. Jonas é só uma pessoa, que foge, que erra, que tenta, e que as vezes é engolido pelo mundo.
Essa premissa humana, de heróis que não são tão heróicos nem capazes de façanhas divinas ainda que o próprio Deus nos diga que ela deve ser feita, nos diz muito dos nossos limites, das nossas vidas que quase sempre parecem tão insignificantes. Ser importante e capaz de grandes feitos nem sempre é possível, porque a vida comum é feita de coisas pequenas e banais.
Sentir um certo afeto por essa história e por todos os personagens populares que encarnam de alguma forma esse mesmo Jonas me faz pensar no quanto pode ser desconfortável lidar com nossos limites, com se entender ordinário, e ter de operar no cotidiano. É como se esses Jonas nos lembrassem que uma existência que não seja tão comum não tem mais sentido que outras porque a vida também é feita das nossas insuficiências. Se as coisas se movimentam é porque encontramos significado nas tempestades que caem ao nosso redor.
A gente se vê tão afundado em miudezas que é até difícil pensar o que usar como parâmetro pra pensar numa vida que não seja ordinária. Não sei responder ao certo o que pode ser assim tão grande e importante, mas sei das coisas que considero comuns. É se manter numa rotina, cuidar de si mesmo e da manutenção da vida, das coisas que parecem que não afetam quase ninguém além da gente mesmo. Eu sei que tanta gente escreve e fala sobre a importância política dessas coisas, mas a verdade é que o que eu faço é bem diferente. Faço de um jeito pequeno e privado, sem salvar a ninguém e as vezes nem a mim mesma, só porque importa pra mim.
Cozinhar é uma dessas coisas pequenas. Tão pequena que parece que se tornou desnecessária, opcional. Ou talvez pequeno demais pro nosso pretenso potencial. A verdade é que embora seja básico ninguém mais parece precisar aprender a cozinhar, à exceção dos cozinheiros profissionais. Ainda que comer comida caseira possa trazer coisas boas, isso não significa exatamente cozinhar, já que existem outras soluções possíveis pra se chegar a isso. É difícil justificar o gasto de tempo com essa atividade se pensarmos nos termos do sistema em que a gente vive. E muitos de nós fugimos dela, porque cada um sabe do que dá ou não conta.
Cozinhar minhas próprias coisas, no entanto, apesar de ser um tanto contraintuitivo, sempre me ofereceu uma espécie de antídoto pra esse estar no mundo hiperespecializado, e cada vez mais desconectado com o fazer de coisas concretas. Às vezes é a forma que encontro de me sentir um pouco mais presente, e também de me sentir um pouco mais capaz. É tanto tempo meu que preciso alocar pra cumprir tarefas que não são as que eu gostaria de estar fazendo, que quando me encontro fazendo algo por mim sinto um tipo de contentamento estranho. Ter um resultado concreto nas mãos que você pode colocar na boca e achar gostoso me faz sentir bem.
Fazer comida, pra mim, também têm o poder de tornar um pouco menos opacas muitas das linhas que nos interligam com o mundo natural do qual somos parte. Estar sempre envolvida com a comida desse jeito próximo me ajuda a perceber as mudanças que acontecem a cada estação, e também as grandes mudanças ambientais que estão acontecendo no mundo. Ajuda a situar o meio ambiente um pouco menos como algo que acontece “lá fora”, nas florestas, no campo, em lugares que não estamos e talvez nunca possamos estar, e passamos a ver como elas estão todas tão dentro das nossas casas. A crise ambiental, afinal, é uma crise do modo como vivemos.
Outras atividades podem ser capazes de ligar as pessoas com todas essas coisas – com a concretude do mundo, com a sua naturalidade e as mudanças, com a capacidade que cada um tem de fazer. Mas a verdade é que se vejo qualquer coisa disso na minha cozinha é porque estou interpretando uma mensagem divina. São significados que fui construindo pra justificar porque fui escolhendo fazer essas coisas. É o que fui capaz de criar e que me leva a entender pra onde devo ir.
Tem alguma coisa de muito gratificante em fazer um trabalho tão tangível quanto cuidar de si — que inclui, sem dúvida, cozinhar — que não encontramos nas outras tarefas abstratas e amorfas que a nossa sociedade de especialistas teima em querer que a gente faça. Enquanto em tantas coisas a gente parece perdido, falhando em ver qualquer significado ou sentido, no cozinhar parece que tem um recado sendo sussurrado. Tanto faz se ele é verdadeiramente divino ou não porque afinal importa a forma como eu o recebo, importa se eu consigo acreditar que isso me mantém viva. Sou só uma pessoa tentando lidar com o que se apresenta.
Há uma beleza muito sutil em ser pequena. Ser pequeno é saber que todos temos limitações, várias delas, que estão sempre nos assombrando. Dar conta da vida comum na maioria do tempo é uma tarefa desafiadora porque o cotidiano, assim como muitas das histórias que contamos, é algo que se repete. Seguir os ritmos da vida apesar do nosso potencial de ser sempre um pouco Jonas, que tem medo e que é errante, mas também encontra significado divino em coisas à sua volta é o suficiente, maior do que a boca da baleia que nos engole diariamente.
Obrigada por dividir pequenas coisas comigo
Um abraço aconchegante,
Carla Soares • OutraCozinha
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As imagens que ilustram a cartinha são, na ordem de aparecimento: “Sands of time”, “Jonah and the Whale” e “Harvest dance”, da artista plástica Hilda Katz. Foram depositadas no Smithsonian American Art Museum em memória dos seus pais.
Eu já tinha gostado muito desse texto no ano passado, quando o tinha lido pela primeira vez, mas agora acho que fez ainda mais sentido pra mim. A ideia de repetição está mais presente ainda agora que eu trabalho todos os dias, o dia todo, com as mesmas turmas, lidando com as mesmas pessoas e os mesmos problemas. Dia após dia. Tem semanas em que eu me sinto o Jonas da série, tentando achar o ponto do início do novelo, pra tentar desenrolar algum problema de algum aluno (ou vários, ou todos; geralmente todos). Tem semanas que me sinto o Jonas na barriga da baleia, só rezando pra deus me dar uma luz de como fazer o trabalho que eu sei que preciso fazer. Mas toda semana, todos os dias, apesar de sentir que estou repetindo a semana anterior, alguma coisa nova acontece (ainda que apenas dentro da minha cabeça) que ilumina algo que precisa ser visto e eu consigo seguir um pouquinho mais adiante.
Se não fosse a repetição e a rotina, eu com certeza não conseguiria perceber o que precisa ser feito. A falta de repetição me desorganiza e apesar dos problemas se repetirem TB, é nessa repetição que eu vou experimentando soluções e ficando um pouco melhor a cada rodada.
Brigada pela repetição desse texto, também. Ele me ajudou a respirar fundo aqui e me preparar psicologicamente pra mais uma semana em que tudo vai ser mais ou menos igual, mas também um tanto diferente.
Adorei muito esse texto. Tenho pensado muito em como a vida e as coisas da vida são crônicas, no sentido de que apesar de se repetirem, o tempo é o agente modificador daquela ação, mesmo que a gente não perceba num primeiro momento. Faço exercício 5x por semana há 8 anos e todos os dias quando acordo pra ir tenho essa sensação terrível de que é inglório, que não dá resultado, que não vale a pena. Só me dou conta de que a repetição daquela tarefa fez algo por mim na hora de uma caminhada mais longa em que eu fico inteira ou na hora de carregar alguma coisa mais pesada sem grandes traumas.
Nos últimos dias também ouvi a uma série documental em podcast chamada Projeto Querino, que reconta a história do Brasil a partir da perspectiva das pessoas negras. Desde que ouvi, venho recomendando às pessoas como se fosse o livro Universo em Desencanto, abriu muito a minha cabeça, observar os mesmos fatos a partir de um ponto de vista antagônico ao original. Uma coisa que me chamou bastante a atenção é que é possível ver que a história se repete muitas vezes (inclusive essa que vivemos agora e achamos que é tudo inédito), mas, novamente, esse efeito invisível (mas perceptível) do tempo faz toda a diferença. Também penso que as ações repetitivas dos povos oprimidos de educar seus iguais, conscientizá-los e manter vivas suas histórias também acabaram sendo pontos importantes de resistência ao conservadorismo e à violência, num espaço de tempo que as próprias pessoas que repetiam essas atividades não conseguiam enxergar ainda. Então, mesmo que o efeito das repetições seja invisível, é preciso que a gente confie que o tempo não deixa nada no mesmo lugar nunca e é daí que saem as transformações.