Eu vivo voltando numa frase da artista plástica Louise Bourgeois que dizia que só depois de nós mesmos fazermos e observamos muitas vezes as nossas próprias criações é que entendemos de fato o que estamos mesmo querendo comunicar.
Nesses 7 anos escrevendo, falar sobre comida é sempre o meu ponto de partida. Mas o comer é só um lugar que eu acesso muito facilmente por razões pessoais, que fazem parte da minha história. É justamente porque eu tenho uma trajetória com esse assunto que ele quase sempre me leva a reflexões de outra proporção, em que eu fico muito à vontade pra navegar.
Por partir dessa experiência comum - porque afinal, não dá pra ignorar a comida se assim a gente quiser, todo mundo precisa comer -, fui percebendo o quanto ela permitia que os outros também pudessem construir um sentido único sobre os assuntos que eu escrevia. Eu estava de algum modo ancorando a conversa em experiências próprias, mas que falavam com algo que é partilhado: o banal, que faz parte de todas as nossas vidas, e que se conecta com questões profundamente humanas.
Foram muitas as vezes, no entanto, em que me senti intimidada e diminuída com o fato de que eu estava interessada em construir narrativas que partiam de alguma coisa da minha experiência. Eu me perguntava se fazia algum sentido o que eu escrevia, porque parecia ser pequeno e mesquinho querer falar em alguns momentos de mim mesma. Eu me perguntava até que ponto aquilo que eu escrevia tinha algum valor - artístico, informativo, algo pros outros que pudesse ir além do que me era conveniente.
Não é um tema exatamente novo pra mim. Experiência foi um conceito com o qual me atraquei no meu mestrado, uns bons anos atrás. Entender o valor estético da experiência a partir de uma diversidade de produções artísticas que envolviam narrativas pessoais sempre me atraiu. Em parte, porque estou continuamente tentando fazer as pazes comigo mesma, e com o fato de que esses são meus interesses e a minha produção.
Por alguns anos tive um clube de leitura por skype com algumas amigas, e eu me lembro muito do encontro em que conversamos sobre o livro A guerra não tem rosto de mulher, da escritora e jornalista bielorussa Svetlana Alexievich. Ela foi a ganhadora do prêmio Nobel de 2015 e, à época do anúncio da premiação, formou-se toda uma controvérsia em torno da indicação da autora. As pessoas apontavam que havia uma similaridade desses livros com o trabalho jornalístico, e se perguntavam se aquilo ali de fato era ‘literatura’.
Seus livros tentam dar vozes a pessoas comuns que via de regra têm pouco espaço para se fazerem ouvidas. A guerra não tem rosto de mulher é todo construído fazendo uso de aspas: as histórias contadas por mulheres sobre o período da Segunda Guerra aparecem na voz delas mesmas, intermediadas pelo trabalho de escuta e registro da autora.
Dá pra notar em cada um dos livros da Svetlana um trabalho extenso de pesquisa, de percepção, e criação em cima desse material que, de forma bruta, são o vivido narrado, sobre o qual Svetlana se dedica de forma muito perspicaz. Cada um dos livros dela levou décadas para ser construído. Fazer alguém falar em uma entrevista é um processo custoso, ainda mais quando o assunto é envolto em silêncio, como os assuntos com os quais ela se empenha em seus livros.
Em A guerra não tem rosto de mulher são contadas as experiências de mulheres que participaram da Segunda Guerra mundial no lado soviético, em postos que não são exatamente nos quais esperaríamos encontrá-las. Além das cozinheiras, enfermeiras e lavadeiras, há também médicas, francoatiradoras, motoristas de tanques, sapadoras (são as que cavam trincheiras) e engenheiras. Ao contrário dos homens, essas mulheres não voltaram pra casa como heroínas, mas estigmatizadas como mulheres ‘da guerra’, que ocupavam espaços que não eram delas. Elas contam das acusações, do medo de nunca conseguirem se casar ou ter um espaço social digno, e do silêncio que foi imposto sobre a experiência delas.
Apesar da assustadora vontade que essas mulheres diziam ter de estar na linha de frente, que nos faz ficar intrigados com o espírito patriótico e coletivo que as moldaram, a história da guerra que elas contam não é a dos grandes feitos. É a das sutilezas. São cenas assustadoras e fragilizadoras de mutilação. Da ausência de roupas e sapatos em tamanhos adequados a elas, e de como os seus pés ficavam completamente destroçados, pois a guerra não tinha sido pensada com elas dentro. É a história dos uniformes duros que cortavam a pele por causa do sangue seco e do frio que se acumulava nos tecidos. De perder a humanidade e desejar muito matar, mas reencontrá-la quando vê seu colega do lado oposto ferido mortalmente, e se por em risco pra salvá-lo mesmo sabendo que ele irá morrer de qualquer jeito.
Uma passagem muito sintomática do quanto essa visão de que a história do cotidiano é menor é quando elas contam repetidamente que seus maridos e outros familiares, quando ficam sabendo da entrevista para o livro, pedem que elas não falem “dessas bobagens”; que se fale da vitória, da coragem, do heroísmo dos tempos de combate. Sabendo de antemão que tipo de coisas elas estão acostumadas a contar sobre essa experiência, eles pedem que se conte a história que estamos acostumados a vermos serem contadas nos livros de histórias, ou nas fantasias épicas de guerra.
A historiografia e a 'estoriografia', essa das artes literárias, são ambas marcadas por esse viés: falamos dos grandes acontecimentos, das grandes questões filosóficas que assombram toda a gente, das civilizações e da história da humanidade (o que quase sempre significa a porção das pessoas que viviam no pedaço ocidental-europeu). Falamos das grandes vitórias, dos declínios, e das grandes descobertas e mitos. E no entanto, saber desses eventos não nos dá uma boa dimensão de como as pessoas, em cada época, de fato viviam o dia-a-dia. Essa vivência do cotidiano está sempre na margem, no interstício, que tentamos espiar a partir de coisas secundárias a todo esse enredo.
A vida social nunca aparece nessas narrativas porque ela é feita de miudezas: de pequenos saberes, de pequenos fazeres e acontecimentos. A vida é feita de cotidiano, banalidades, repetições e experiências íntimas.
Quando insistimos em desvalorizar essas miudezas que vivenciamos, e que formam uma parte importante do que é viver a vida, construímos e valorizamos narrativas que não correspondem àquilo que se passa conosco. A vida é roupa sendo estendida no varal; é correr atrás do ônibus que está passando no ponto; é uma conversa sobre o tempo dentro do elevador e a decisão de todo dia do que fazer pra comer no jantar.
Não olhar pra essas banalidades é o que torna ainda maior nosso sentimento de discrepância entre como achamos que a vida deveria ser e como a vida é. Falar das miudezas cotidianas é colocar o mundo numa escala mais do nosso tamanho. É essencialmente reconhecer nossa humanidade, e abrir a porta para nos tornarmos mais humanos.
Ao ler histórias fundadas pela experiência, estamos cultivando narrativas humanizadoras dentro de nós mesmos. Ainda que elas sejam irremediavelmente particulares, escrever sobre experiências é pinçar, escolher e compor retratos específicos usando cores comuns. Nelas, podemos conhecer a nós mesmos, mas também somos capazes de reconhecer o outro, que dá sentido praquilo tudo na medida em que interpreta, apresentando sua própria versão da história.
Esse tipo de escrita, no entanto, sempre esbarra em lugares delicados, como a controvérsia sobre o Nobel da Svetlana deixa a gente perceber. Essa mesma polêmica do valor das narrativas que falam do vivido reapareceu em 2022, com a anúncio do Nobel para a obra memorialista da escritora Annie Ernaux, dessa vez com a ideia de que esse anúncio apontava para um sintoma dos nossos tempos: o de que talvez tenha diminuído o ambiente da ficção, com uma perda significativa: menos espaço para imaginar e reconhecer o outro de um modo radical como somente a literatura de ficção proporia. O valor da escrita do vivido narrado, para a crítica, seria diferente, e eu diria que ela considerou, apesar do Nobel, que esse valor era limitado.
Falta reconhecimento do valor de se narrar o cotidiano, tanto do ponto de vista historiográfico quanto artístico. Narrativas pessoais não estão "prontas"; são trabalhos minuciosos de composição. É preciso escolher o ângulo, as palavras, o ritmo mais adequado pra que de fato ela seja capaz de se conectar com o outro. É um trabalho de transformação, humanizador e crítico, como em qualquer outro ofício cultural.
São várias as obras artísticas marcadas por narrativas pessoais que me encantam, mas muitas vezes elas são subestimadas simplesmente porque não estão alinhados com os valores dominantes de grandeza, protagonismo, e força que a nossa cultura acredita serem os melhores, ou os que importam. Mas penso que se é verdade que o valor delas ainda é subestimado, eu não preciso repetir esse gesto - nem quando aprecio e muito menos naquilo que crio. Isto, sem dúvida, é o que eu procuro na literatura e na arte, aquela com letra maiúscula, ao menos no meu coração. Importa que esse tipo de narrativa seja capaz de reconhecer as nossas miudezas pois pra mim, e pra muitos outros que encontram refúgio lendo experiências alheias, reside nelas uma imensidão.
Sobremesa
"Criar uma arte significativa para mim e para o outro sem precisar me preocupar com o retorno financeiro, ao passo que os boletos exigem essa preocupação, é uma dança difícil de dançar". A Ana Margonato escreve sobre essa relação pessoal mas tão coletiva sobre o valor que damos a certos trabalhos, que não depende só de como cada um se sente sobre eles, mas da estrutura em que vivemos.
Vale muito voltar a essa newsletter da Babi Bom Angelo, que compartilhou suas impressões ao assistir a fala da Annie Ernaux que esteve na FLIP no ano passado. Annie contou que começou a escrever a partir do cotidiano, da vida comezinha, “porque é nesse âmbito que a tensão entre classes se mostra com força. Do modo como falamos ou mesmo sonhamos.”
A escritora Vivian Gornick, autora de Afetos Ferozes e Uma Mulher Singular, livros muito marcados por experiências pessoais da autora, parte neste ensaio para a Lux Magazine de conversas íntimas com sua terapeuta para falar sobre feminismo e o trabalho de se levar a sério. (Em inglês)
Compartilhei esse post algumas semanas atrás no instagram, mas ainda penso nele e em como ele me diz muito:
Cafezinho
Terminei nessa última semana esse livro da Ana Elisa Granziera, que me inspirou muito a retomar o assunto dessa newsletter. Dizer que é um livro de contos, como figura na capa, seria injusto, e faz todo sentido o “outras coisas” que o acompanha. Ele é uma mistura de contos - que se você tirasse a ideia de que são ficcionais podiam bem passar por crônicas. Tem também alguns cartuns, micropoemas, e todos eles estão apontando para a vida ordinária, essa que a gente não vê nos livros de história. A pergunta que a Ana Elisa parece se fazer é o que tem de significativo - não de bom, ruim, ou de bonito - nos tropeços da vida? A resposta que ela desenha é mais bem humorada do que eu esperava e me divertiu imenso.
Para comprar o livro físico ou digital peça no site da editora Mocho.
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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As artes dessa edição são ilustrações da Rosina Wachtmeister, uma simpática austríaca de 82 anos que passou parte da infância no Brasil, e hoje ilustra e faz cerâmica usando cenas da sua vida rural na Itália.
adoro te ler =) esse texto foi muito bonito e delicado, trazendo um pouco da reflexão da escrita de si como arte e como esse tipo de texto é um encontro de tantas referências. a bagagem de cada um torna tudo único. lindo demais.
Adorei o texto. Esses dias eu justamente estava falando do quanto gosto de pessoas que falam sobre suas experiências cotidianas a partir da comida. Citei vc, porque é sempre agradável demais a leitura das suas narrativas. 😘