Eu tenho um livro de receitas indianas que gosto muito mas acho um pouco difícil de usar. Eu trouxe de uma viagem que fiz pra Singapura, onde pelo menos 30% da população tem origem indiana, e por isso não é um livro que se presta a traduzir ou adaptar pro ocidente certas coisas. É um livro de receitas vegetarianas indianas para os desterrados no sudeste asiático.
Mas talvez eu possa falar melhor do que isso: esse não é um livro de comida indiana. A Índia é um país tão grande quanto o Brasil, e comida brasileira é um termo vago - o que mais tem é brasileiro que não provou uma diversidade de comidas tipicamente brasileiras. Com a Índia não é diferente. O meu livro de receitas é da região de Uttar Pradesh, uma província do norte indiano, conhecida por ser uma das áreas mais populosas do mundo. A capital da Índia não fica nesse pedaço, mas ele é famoso porque é onde está o Taj Mahal. Vários pratos que costumam ser bastante conhecidos são comuns por lá, como os pães do tipo tandoori naan, ou o creme de espinafres e especiarias com pedaços de ricota palak paneer. Mas nenhuma dessas receitas está nesse livro. Ele não replica receitas tradicionais, e sim usa ingredientes e técnicas indianas, com propostas criativas que fazem sentido para a região.
Por fazer fronteira com o Nepal, é uma culinária que tem semelhanças com a cozinha da Ásia central, do Oriente Médio (região da qual ela também está muito próxima geograficamente), e outras partes do norte indiano. Tem uma predominância muito grande de pratos vegetarianos, porque a população de lá é majoritariamente de religião hindu, embora pratos não vegetarianos também sejam encontrados por lá.
Mas o caso é que eu acho difícil usar o livro pra replicar as receitas porque alguns dos ingredientes sempre foram um pouco inacessíveis pra mim.
Agora que eu estou num lugar mais tropical, muitos desses itens começaram a ficar mais disponíveis por conta da semelhança de clima - é o caso do coco, e da presença o ano todo de quiabo, pimenta e coentro que acontece onde eu tô agora -, mas ainda tem bastante coisa que embora seja semelhante ainda está um bocado distante.
O início do livro tem um pequeno glossário com fotos dos ingredientes e utensílios usados - o que eu achei uma proposta maravilhosa - mas também me dá uma ideia muito concreta de onde está minha dificuldade.
Ele tem pelo menos uma dúzia de grãos de bico e lentilhas sortidos, que eu não faço a mais remota ideia de como exatamente variam os seus gostos, embora dê pra imaginar se eu usar a minha experiência com a variedade de feijões brasileiros. Alguns legumes, apesar de conhecer e já ter experimentado, são muito pouco convencionais aqui - como o melãozinho de são caetano verde, que pra nós é comida de criança ou de passarinho, e a gente praticamente só come a polpinha madura das sementinhas no quintal; ou as mangas verdes - não vale de vez -, que são usadas pra dar o sabor azedo característico de picles e chutneys, que em outras províncias indianas é obtido usando o tamarindo. Isso sem falar nas ervas e especiarias, o principal recurso e pelo qual essa culinária é famosa: feno grego fresco, bulbos de capim santo, folhas de curry (que além de significar um mix de especiarias também é o nome de uma planta aromática). Você já imaginou que existia mais de um tipo de cardamomo? Pois existe. Além, é claro, de uma infinidade de outros pós que são acessíveis mas exigem uma dispensa muito bem abastecida.
O caso é que toda vez que eu pego esse livro, longe de me sentir muito desanimada, eu saio com ideias novas e uma sensação de autenticidade, que eu não consigo encontrar muito fácil em outras obras.
Embora possa parecer realmente útil pegar um livro de receitas com uma culinária de uma região específica e conseguir replicar na cozinha da sua casa com o que se pode achar em qualquer supermercado, me dá uma estranheza um livro regional que é repetível em qualquer lugar do globo, como se fosse de lugar nenhum.
Receita é um gênero de texto quase sempre lido como utilitário - ele existe pra se executar uma prescrição que deve estar muito bem descrita ali. E talvez essa visão, combinada com a ideia de uma uniformidade alimentar global com a qual nos acostumamos, faça com que a gente se interesse mais pelos livros em que parece que todas as receitas apresentam apenas novas combinações do que já conhecemos, e modos de fazer com os quais estamos razoavelmente familiarizados. Mas há outras formas de se ler um livro de receitas, e há a possibilidade de treinar o olhar pra reconhecer itens que embora não sejam os mais ordinários também não são tão incomuns assim.
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Durante o último mês eu estava fazendo uma pesquisa pra compor o desenho de um bordado. Eu queria montar uma ilustração botânica com cara de antiguinha de uma das frutas que agora fazem parte da minha rotina: o cajá-manga.
Como mineira da capital, o cajá era pra mim uma fruta só de quando a gente estava na praia na Bahia. E mesmo assim, eu não tinha experimentado vezes o suficiente pra saber exatamente o que esperar do sabor da fruta.
Aqui no sertão do norte mineiro o cajá é uma fruta razoavelmente comum. Tem um pé no pomar da minha chácara. Agora que é época é fácil encontrar os amarradinhos com meia dúzia de frutas sendo vendidos na feira, e eu já até colhi uns cajás que encontrei recém-caídos no chão durante um passeio na rua.
Mas mesmo sendo o cajá uma fruta muito presente, especialmente no norte e nordeste brasileiro, ela não é uma fruta que se encontra facilmente nos supermercados de nenhum desses lugares. É mais comum de ser encontrado como eu estou contando, nas feiras, ou nos quintais e chácaras, sendo uma fruta muitas vezes compartilhada. É mais ou menos como é a jabuticaba, as amoras, as pupunhas e tantas outras frutas: todo mundo daquele lugar conhece, mas são bastante sazonais e só se acha pra comprar em lugares específicos.
Isso é muito diferente de pensar em um item raro, como às vezes pode parecer quando nos deparamos com algo que a princípio não está no supermercado.
Essa uniformidade que está ali à espreita em tantos livros de receita acontece por uma questão de mercado, mas também é um viés cultural. Em nome de uma ideia de universalidade, acaba-se matando uma série de especialidades, que podem estar nesses ingredientes que nem são de fato raros, mas chega também nos modos de fazer, no tempo requerido, e na apresentabilidade dos pratos.
Uma das coisas que me chama atenção no livro indiano é que há vários processos intermediários explicados numa sessão especial do livro, que recebe o nome de Cooking Process. Lá ele explica, por exemplo, como fazer seu Garam Massala. Como fazer uma pasta de manga verde que pode ser usada no lugar do amchur. Também explica como fazer o panner (ricota) do palak panner. Essas etapas geralmente são aquelas que quase sempre queremos evitar - afinal, dá pra comprar o Garam Massala, o amchur, e a ricota, não tem porque perder tempo com isso. Mas se um livro de receitas é um manual descritivo de como fazer, por que há tão pouco tempo a se perder com isso? E se esses processos são parte, por que é tão raro encontrá-los em livros de receita?
Os livros de receita - assim como os vídeos de 1 minuto no reels e TikTok, os posts em sites, e toda uma diversidade de formas que esse tipo de texto ganha - são uma expressão cultural dos nossos tempos, e refletem os anseios e as disposições que temos. Receitas que não tem um apelo de praticidade e rapidez, assim como ingredientes percebidos como circunscritos a determinados locais, se tornaram uma espécie de literatura de nicho, quando na verdade eles estão mais presentes do que somos capazes de nos dar conta. O que grande parte dos livros de receita estão dizendo é que não há tanto espaço para se falar de um modo de vida que não seja essencialmente globalizado, disponível em qualquer prateleira de supermercado, e pra ser consumido instantaneamente.
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Outro livro de receitas que me fez pensar sobre como o localismo não tem nada a ver com raridade foi o Flora Comestível do Brasil, da Rita Taraborelli.
O livro tem esse nome porque trabalha com ingredientes autóctones - uma palavra solene pra se referir aos ingredientes que são originários de um determinado lugar. É o exato oposto do globalismo que a gente aprendeu a encontrar na maioria dos livros de receita. Mas o que achei mais encantador é como isso não significa que as receitas tenham ingredientes inacessíveis ou pouco convencionais. O que ela apresenta, me parece, é uma lógica distinta, de valorizar e reconhecer elementos que já estão muito presentes entre nós.
Ela traz pra conversa, por exemplo, a mandioca, o maracujá e o abacaxi, itens que ninguém tem dificuldade pra comprar mesmo no supermercado, assim como imagino que na Índia não tem nada de complexo em conseguir um dos doze diferentes tipos de lentilhas ou grão de bico. O que é curioso na forma como ela se aproxima é o reconhecimento da singularidade de acesso que nós temos, que facilita que a gente torne esses ingredientes estrelas. E essa abordagem é uma raridade.
Diferentemente do livro indiano, a autora explica na apresentação que a sua proposta não é pensar numa culinária brasileira - no sentido de se pensar técnicas ou preparos tradicionais - e sim pensar em ingredientes que fazem parte dessa brasilidade, e que tem uma versatilidade e acessibilidade que nem sempre estamos acostumados a reconhecer.
Não há uma região privilegiada. Tem plantas amazônicas (puxuri, cumaru, guaraná, pupunha); do cerrado (pequi, ora-pro-nobis, baru); da mata atlântica (uvaia, pinhão, bertalha, pitanga); e da caatinga (caju, licuri, amburana).
O livro também usa de um recurso parecido com o glossário que encontrei no meu livro de receitas indianas - ela separa as receitas por ingredientes, e antes de cada um deles faz uma apresentação botânica ou de cultivo, usando pra isso não só o texto mas um trabalho de ilustração aquarelada mesclado com fotografias. É uma estratégia interessante, já que o livro traz plantas de vários biomas e regiões, e por isso nem todas são muito familiares pra gente. Além disso algumas das plantas retratadas ainda estão mais frequentemente restritas aos quintais, sítios e outros espaços domésticos, o que deixa o recurso do cultivo uma extensão útil.
É encontro interessante com muitas das coisas que são especiais no nosso país, e que nem sempre a gente entende o quanto elas podem ser singulares.
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Quando comecei a pesquisar sobre o cajá pra fazer a ilustração do bordado, eu fiquei pensando um bom tempo sobre a quantidade de coisas diferentes que eu acabei conhecendo durante esse (quase) primeiro ano em que passei a morar no norte mineiro. Eu não tinha ideia de que todas essas coisas existiam aqui porque essa é uma região do estado que eu não conhecia, e que é desvalorizada. Enquanto o café do sul de minas e da zona da mata, os queijos do sudoeste mineiro e alto paranaíba, o artesanato do vale do jequitinhonha são bastante reconhecíveis, pouquissímas das coisas que existem no norte de Minas chegam com regularidade à capital.
Quando fui selecionar e fazer novas fotos pra compor essa newsletter, eu fiquei passando pelo meu cartão de fotos, admirada com a quantidade de coisas diferentes que eu experimentei. Ainda que muitas dessas novidades pra mim - como o cajá - não sejam exatamente uma fruta brasileira (a origem dela é da Oceania), é interessante perceber a diferença que pode existir de ingredientes e cultivos sem nem ter saído do meu estado.
Eu fico pensando, olhando pra esses livros de receita que trazem esses elementos que me parecem dizer algo muito específico sobre os lugares, o quanto faz diferença a construção de um olhar pra se enxergar o que é especial em uma região. É ali mesmo nesse especial que mora muita da originalidade, que não precisa ser só quanto à origem mas pode estar nas práticas e no reconhecimento do que faz parte de uma verdadeira comunidade, porque é comum. Não só porque uma diversidade enorme de sabores e saberes, mas porque também é muito bom ter com quem conversar quando a gente chega num novo lugar - mesmo que esse lugar novo seja pra nós um pouco mais do mesmo.
Sobremesa
1. Você já saudou a mandioca hoje? Nessa newsletter, elaborada pela Sustentarea - um grupo de extensão da USP - eles falam sobre os usos mais populares da mandioca na região Sudeste. Biscoito de polvilho, pão de queijo, bolinho de aipim; e afinal no sudeste também se usa macaxeira e aipim pra falar da raiz? Eu fiquei toda feliz também porque meu post sobre pão de queijo apareceu como referência pra entender as diferenças dos polvilhos e a função do escalde. Em edições anteriores outras regiões e receitas já foram apresentadas, vale a pena seguir ou vasculhar
2. Quantas vezes por semana você ainda come feijão? Pesquisadores da UFMG constataram que o feijão está sumindo do prato dos brasileiros - e essa pesquisa está relatada nessa reportagem da BBC. Mudanças culturais, o avanço dos ultraprocessados, mas especialmente o valor do feijão também tem desestimulado o consumo. E esse aumento não é fruto só de problemas econômicos, mas de uma perda de espaço de cultivo para outras commodities, como a soja e milho
3. No blog, publiquei um post sobre como esse cultivo estético que se vê demais no Instagram não é uma coisa ruim a priori, e a gente também usa pra comunicar coisas bem interessantes - da aceitação de comidas pouco valorizadas a uma mudança sobre a percepção de grupos minoritários.
Cafezinho
Eu resolvi escrever pra Rita Taraborelli, a autora do livro que mencionei no post porque nossos trabalhos tem muita coisa em comum, e eu já tinha tido contato com outras produções dela.
Eu planejava republicar uma das receitas do livro dela, apresentando um desses ingredientes autóctones que eu estou tendo o prazer de experimentar com frequência, que é a amburana, uma especiaria da caatinga que na verdade a gente encontra sendo vendido entre as raizeras daqui.
A Rita gostou da ideia e me autorizou a replicar a receita do livro, e eu espero que eu possa espalhar um pouquinho desse olhar pro que é nosso por aí. Estou dando no post aquele toque meu de trazer curiosidades e detalhamento, e devo publicar na próxima semana no blog.
Mas ela aproveitou a intenção que eu tinha de falar do livro e da amburana, e resolveu oferecer um desconto pra quem se interessar pelo livro.
Você pode usar o cupom OUTRACOZINHA pra ter 5% de desconto na compra desse ou de qualquer outro livro no site da Rita. Ela tem várias outras obras como essa.
É um livro de receitas independente, cuidadoso e artesanal, como as coisas que faço por aqui.
Toda a produção por aqui é feita com o apoio financeiro dos leitores, que sustentam a disponibilidade e gratuidade para todos, e por isso merecem um agradecimento especial.
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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Adorei o texto e a reflexão sobre nossos ricos ingredientes. E de fato, não tinha parado pra pensar sobre o quanto estamos comendo menos feijão. Isso que é um ingrediente mais do que popular... Vou dar uma espiada nas indicações que você citou. Um abraço!
Como sempre uma delícia te ler Carla!
Alguns PS
1- Queria morar onde tem quiabo o ano inteiro
2- socorro acabarem com meu feijão de cada dia
3- Queria comer essas receitas tudo indianas
4- Sua escrita é revolução ❤️
Beijo grande amiga!!