Fazer molho de tomate em uma quantidade assombrosa é uma tradição que repeti durante alguns anos morando no interior do Paraná, e que já tinha mencionado em alguma newsletter enviada muitos anos atrás. Reunia amigos, colocavamos os tomates pra cozinhar por 3 ou 4 horas, bebíamos, ouvíamos música, jogavamos conversa fora. E no final, cada um saia com uma quantidade razoável de vidros do mais delicioso molho, que podia ser congelado e durar o ano inteiro.
Na última vez que fiz, no início de 2020, fiz um enorme fio no tuiter, pra que todos pudessem acompanhar o processo que eu tava fazendo, recheado de imagens que iam ficando com a luz mais escura conforme o dia ia anoitecendo. Muitas pessoas me seguiram a partir disso, outras tantas durante muito tempo me marcaram em tuites com seus molhos, vários se lembravam de mim como o @ do molho.
São muitas histórias memoráveis que eu tenho com esse meu molho.
Com a possibilidade do fim do tuiter, tem a chance de uma parte da memória coletiva de muitos de nós que moramos por lá ser perdida. Não só dessas vivências cotidianas, mas também dos encontros, dos memes, da linguagem e do acervo de muitas coisas que aconteceram nesses anos. Comunidades muito importantes conseguiram se estabelecer naquele canto. É, por exemplo, a rede mais amigável em termos de acessibilidade, e que tem pautado mudanças nas outras nesse tema, o que por si só já justificaria a tristeza desta perda.
Muito mais do que ser o lugar que mais me possibilitou encontrar quem tivesse carinho pelas minhas ideias, é uma rede que me trouxe amigos, encontros em muitas cidades, novas ideias, uma melhorada incrível na minha capacidade de síntese e muita risada. Ela tem seus problemas, como quase tudo na vida, mas eu realmente gosto de participar desse lugar.
Ninguém sabe no momento o que vai acontecer - talvez estejamos até mesmo cantando a derrota antes da hora. Ainda que apareça outra rede baseada em texto, o que foi cultivado por cada um de nós ali naquele espaço não é replicável em outro lugar.
Pra todos que estão há muito tempo na internet, vale a lembrança de que outros serviços também acabaram, mas a gente encontrou caminhos. Acho que quem me lembrou da coisa mais significativa sobre esse possível fim foi a @srtabia:
Resolvi retomar por aqui essa vivência dos tuites do molho de tomate transcritos no formato de post, como uma homenagem pelo que vivi por ali. Fiz algumas pequenas adaptações, pra que o texto tivesse mais sentido nesse formato. Mantive as fotos, com todas as imperfeições que são a cara da espontaneidade da rede. Ainda que você não tenha feito parte dessa comunidade ou não goste nada do tuiter, e mesmo que a rede não acabe, acho válido celebrar e guardar com carinho esse pedaço.
E independente disso, meu trabalho no OutraCozinha continua enquanto não acaba a rede de apoio dos leitores <3
Espero que você possa desfrutar desse gostinho bom!
Prato principal
A mulher que adquiriu uma caixa de 30kg de tomates orgânicos hipermaduros pra fazer molho não quer guerra com ninguém. Só contra o agronegócio.
É um ritual anual de verão esta caixa aqui. Eu combino com os feirantes e eles já separam os tomates menores/muito grandes/mais maduros/que tem menor valor comercial. Vendem mais barato. Daí faço o molho, e armazeno em vidros e congelo pra usar o ano inteiro.
O dia que faço é o melhor dia. Eu já aproveito o molho fresquíssimo e o jantar é alguma coisa maravilhosa com ele <3
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Os tomates estão no fogo e vão ficar lá umas horas. Eu vou mostrar o que estou fazendo, mas é bom dizer que é um molho CASEIRO, o que significa que não tem uma ficha técnica. São quantidades aproximadas. E tem uns pulos importantes.
Antes de tudo: Capricha na escolha dos tomates. Longa vida, que é o tomate mais comum no mercado, não costuma ser a melhor escolha - são selecionados pra durar mais na prateleira e não pra terem o melhor sabor. Mas cada um sabe do que é possível e acessível. Faça do modo que for possível pra você.
Misturar tipos diferentes de tomate costuma dar bom - equilibra bem acidez e sabor. Esses são orgânicos, tem de vários tipos misturado - e como moro numa cidade pequena comprei direto com o produtor.
Quando eu ainda morava em BH, já negociei tomates italianos no sacolão - eles retiram tomates das gôndolas com pequenas imperfeições, e costumam estar muito bons. Pedi pra me venderem mais barato, passei no fim do dia e deixaram pra mim separado. Funcionou também.
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Mas vamos pra cozinhança propriamente dita. Eu começo pela cebola. Esse molho com 30kg de tomate tem uns 2kg de cebolas. E uso essa panelona gigante (mas dá pra fazer com a quantidade e a panela que você quiser viu)
Pode picar a cebola grosseiramente mesmo, em quartos. Aliás, tudo pode ser picado assim porque vai cozinhar até quase dissolver, e o que não desmanchar a gente vai bater no fim.
A cebola pode ir refogando bem devagarinho - no óleo, na manteiga, no azeite; como preferir. Fogo baixo, e pode deixar formar aquele fundo preto, como na foto. Quando ficar assim, bota um copo generoso de vinho tinto pra soltar esse fundo. E aproveita o melhor cheiro do mundo.
Essa parte do vinho na cebola não é firula. Ela ajuda que o molho fique com a acidez bem equilibrada, e mais docinho. Chama deglaçar esse processo. O açúcar da cebola é o que escurece e está no fundo a partir de uma reação química maravilhosa que acontece - chama reação de Maillard, pros curiosos.
Depois de soltar o fundinho de cebolas, podemos começar a por os tomates. De novo, cortes grosseiros. Quartos, sextos no máximo. Com pele. Com sementes. Disso a gente cuida no final com a peneiragem.
A única parte que eu tiro (além das imperfeições) é esse miolinho do tomate, que é duro e pode ajudar a amargar. Só ir com a ponta de uma faca circulando ele que ele vai soltar.
Junto com os tomates você pode colocar alho - aqui tem umas duas cabeças inteiras. E ervas frescas. Eu colhi louro, tomilho, alecrim, orégano, cebolinha, salsa. Você pode colocar o que quiser, mas evite manjericão, que é muito frágil e perde sabor no calor. Ele você acrescenta só na hora de servir.
Esse ano tô emocionada que tem ervas da espiral que eu plantei <3
E agora um truque que eu amo: colocar algumas cenouras pra cozinhar junto - elas são doces e também vão ajudar a corrigir a acidez final sem precisar de colocar açúcar ou bicarbonato, técnicas mais comuns que costumam ser utilizadas pra isso. As cenouras não aparecem no gosto. É precioso isso, pode acreditar. Nos 30 kg de tomate eu coloquei algo como 1kg de cenouras.
Todos os ingredientes na panela em fogo baixo, vão ficar por algo como 3-4h.
Durante o cozimento não precisa mexer tanto. É só dar uma mexidinha a cada 15-20 minutos. Pra decidir a hora de desligar o fogo é só ir observando. Não se prenda muito pelo tempo, mas sim pela percepção de que a água foi secando e o molho ganhou corpo. No início você vai ver uma água rala na superfície, e aos poucos ela vai diminuindo. É assim que você vai saber quando desligar.
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Depois que desliga o fogo, é hora de bater o que não dissolveu com esse instrumento maravilhoso, que permite que você bata na panela mesmo, sem sujar outros utensílios. Indispensável quando se faz uma quantidade dessas como eu tô fazendo. É o mixer.
Agora é hora de peneirar. É melhor peneirar com ele ainda quente pq o calor deixa o molho menos viscoso e escorre mais fácil pela peneira. Isso é física - o que é praticamente mágica.
Dá pra ajudar mexendo com uma colher. Mas a melhor técnica, pra mim, é bater a peneira contra a vasilha pra fazer o líquido passar.
Daria pra usar sem peneirar? Daria. Mas a textura fica tão maravilhosa e profissional peneirando que compensa. Dos 30kg, tirei quase 2kg de sementes e cascas. E não se preocupe: na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Vai tudo pra minha compostagem.
Última etapa do dia, armazenagem. A estimativa é que os 30kg de tomate (com outros 3kg de outros legumes) viraram 17kg de molho. Olha quanta água se foi!
Eu coloco em vidros e vasilhas plásticas no congelador porque me economiza um trabalho grande importante: esterilizar uma quantidade imensa de vidros.
Porém, é claro, tem o problema do espaço. A minha geladeira tem o congelador separado da geladeira, mas é o menor modelo desses disponível. O negócio é que já sei que vou fazer molho, e a essa altura não tem nada dentro dela só pra eu armazenar meus vidros. Eu me planejei pra fazer isso.
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Duas perguntas recorrentes que me fizeram:
1. Tem que por água? De jeito nenhum. O tomate solta muito líquido, fazer molho é evaporar essa água. No início, inclusive, você vê o líquido bem ralo boiando na superfície. Colocar água só atrasaria o processo.
2. Pra todos que me sugeriram colocar salsão: Mozi odeia salsão. O melhor molho não é o da receita clássica e sim o que serve a quem come. Tem muito espaço pra menos prescrições e mais interpretação com aquilo que lemos nos livros de receita. Sejam felizes com o que vocês gostam!
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Enfim. No fim do dia, depois de tudo, é óbvio que você tem que preparar uma coisa apetitosa pra comer com isso. Pra mim esse trabalho concreto na cozinha significa se importar menos com o que produzimos e mais com como vivemos. Comer bem é aproveitar a vida. Bom apetite!
Sobremesa
Essa thread da Jana Viscardi sobre as implicações do fim de uma rede social para quem produz. Sempre achei que por ter um site estava me protegendo desses colapsos que são inevitáveis, mas tenho pensado que é mais complexo do que isso. A Jana sintetiza bem algumas questões.
Este texto sobre o molho também está replicado no site do OutraCozinha. Uma tentativa de controle ilusório enquanto penso mais sobre o assunto.
Obrigada pela companhia,
e até o próximo mês.
Carla Soares • OutraCozinha
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Primeiramente, feliz aniversário atrasado Carla ♥️ e segundo, seu molho me lembrou muito minha mãe, ela tem esse ritual todo ano também, mas faz de tomate cereja que planta lá no sítio e em um tacho enorme no fogão a lenha. Nunca comi molho mais apetitoso. Gosto de fazer aqui no forno, faz tempo que não faço, você me deixou com vontade de cozinhar tomates 😬♥️
"O melhor molho não é o da receita clássica e sim o que serve a quem come."
Magnífico. <3