A proximidade do verão nesse pedaço de terra que mistura o cerrado e a caatinga trouxe uma mudança muito significativa na paisagem. Com as chuvas, o que estava seco e aparentemente sem vida começou a ganhar outra cor. Junto com tudo estar rebrotando, aos poucos uma diversidade de insetos foram aparecendo, especialmente nas noites mais mornas e com menos vento, mudando a minha rotina de comer fora todos os dias - na varanda. Uma miríade de frutas no pomar foi amadurecendo, me obrigando a ser rápida e inventiva - e também a saber conviver com a impossibilidade de aproveitar tudo.
Quando essa movimentação toda apareceu, foi difícil dar conta de tudo o que estava acontecendo. Montei uma colcha de retalhos de palavras com algumas fotografias com pedacinhos desse momento de mudança. O que fiz é como um caderninho de viagem, em que se registra pensamentos soltos, detalhes que passariam despercebidos, coisas pequenas que ainda não sabemos costurar com o resto da vida mas que não queremos esquecer.
Ao contrário da nossa memória, que grava eventos marcantes, os registros feitos nesse caderninho tentam captar o banal, que se repete ou que parece pequeno e desprovido de significado, pra tentar refletir sobre a teia tantas vezes indistinta do que chamamos de cotidiano.
Chateada com um dia inteiro sem água e sem conseguir encontrar ajuda na cidade pra resolver o problema em pleno fim de semana, resolvi sentar do lado de fora, no chão de pedra que dá acesso à grama. Um monte de matos que me são familiares nasceu nesse pedaço. Percebi que um deles, que ainda não tinha clareza, abriu flores branquinhas. Ah, é poaia branca - Richardia brasilienses, um nome que me veio fácil por conta desse patronímico. Mas do lado dele, ainda mais miúdo e mais rasteiro, umas florzinhas amarelas também apareceram no que parecia grama. Arranco. Um cheiro fortíssimo de capim limão. Passo os próximos minutos tentando achar que planta é essa. É claro que deve ser de comer.
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Errei a primeira fornada de refrigerante de acerola que fiz da árvore do quintal. Deu bolor em cima. Fiquei triste, me sentindo amadora. Minha melhor amiga me lembrou que a adaptação está também nessas pequenas coisas. O clima quente e úmido que está fazendo neste momento não é algo que eu esteja acostumada a lidar. É diferente também dos primeiros seis meses secos que passei aqui. Eu posso saber que não vai ser a mesma coisa, mas é outra história ver a diferença acontecendo.
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Os primeiros dias catando manga eu conseguia comer todas porque colhia 4. Logo viraram 8, depois uma sacola. As que caiam no chão e ainda estavam firmes, mas com um pedaço mole de ter batido eu levava pro cavalo do vizinho, que fica logo ali do lado de fora. Ele parece que adora.
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Depois de uma semana, o cavalo parou de dar uns passos pra trás desconfiado quando eu estou chegando. Ele já sabe que eu sou a humana das mangas.
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As 5h da tarde é oficialmente a hora da manga. Sentamos no quintal de frente pra barragem. Tiramos a casca com os dentes; comemos fazendo lambança. E no final tem campeonato de arremesso de caroço.
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Fomos arrumar mais um pedaço de canteirinho e semear coisas. Enquanto eu cuidava de desfazer as bolotas de esterco de cavalo que juntei e curti pra adubar a terra, o marido ia fazer um montinho de terra. Meteu a enxada na terra e a primeira coisa que sentiu foi um cheiro forte... de capim limão. Me chamou, porque percebeu que ele não estava vendo mas era claro que tinha daquele mato de capim limão ali. Eu já fui pensando meu deus do céu vou arrancar e deixar na geladeira pra não perder e usar em algo esses dias. Mas quando eu chego lá, surpresa: tem um mar desse mato. Um mar. Infinitos matos de capim limão. Deixei ele capinar e formar os canteiros sem se importar porque era besteira me apegar.
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Depois que você vê um, vê outros em todo lugar e não sabe como ainda não tinha visto aquilo.
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A sacola de manga diária virou sacolas. Umas foram pra universidade repartir com quem quisesse pegar, outras viraram uma geleia de manga com maracujá da caatinga e outras ainda uma mangada. Nunca tinha feito essa última. Segui a receita que aparece em todas os resultados da busca no google, esse site quebrado em que você acredita que acha algo mas na verdade sei lá. Já sabia que era uma receita meio problemática, que tinha uma medida subjetiva, e que minha manga não precisava peneirar porque eu tinha feito isso na geleia e ficou claro que ela não tinha fiapo. Ficou bom, mas achei doce demais.
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Fiquei sem lugar no dia que vieram cortar a grama. Eu sabia de um monte de matos interessantes que estavam nascendo no meio dela: vários carurus, uma trapoeraba gigante e linda de flor arroxeada que sempre quis experimentar, malva branca e até um pé de pimenta e outro de maxixe, e tava incomodada de matar. Tentei me concentrar que era bobagem, olha o tamanho do lugar que você está, mas fiquei dentro de casa trabalhando desconcentrada, andando de um lado pro outro.
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Pra usar a mangada doce demais resolvi que ia fazer um casadinho. Escolhi uma receita que me pareceu boa, levava bastante amido de milho pra desmanchar na boca. Mas a massa era mais difícil de lidar do que parecia. No meio do processo eu queria jogar tudo no lixo. Marido me ajudou a não desmanchar, os biscoitos saíram, ficaram crocantes e delicados, mas não sei se eram o que eu queria. Achei trabalhosos. Me senti de novo amadora, fui eu quem não soube ler a receita, sou eu que não sei fazer biscoitos, não sei fazer nada direito. Eu deveria saber cozinhar, eu deveria saber, eu me apresento por aí como se soubesse.
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A segunda fornada de refrigerante de acerola do quintal precisou ser corajosa. Eu tinha quilos de frutas, precisava usar. Amassei, coloquei no vidro grande, juntei uns 3 litros de água e fiquei vigiando com medo de errar de novo. A primeira vez que abri umas 6h horas depois já senti o cheiro fermentado, meio azedo. Com 24h o vidro já tinha um leve cheiro alcoólico começando a aparecer. Corri pra engarrafar, e deixei só umas 12h a mais. O liquido ficou translúcido, uma cor linda. O gás na concentração certinha, sem entornar na hora de abrir a garrafa. Foi tudo tão rápido.
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Me lembrei que outro dia enquanto andava no lote onde está a árvore da cagaita senti um cheiro forte fresco, meio mentolado. Fiquei imaginando que devia estar encostando em algum mato cheiroso, tá tudo meio alto ali, toquei em várias coisas pra ver se descobria o que era. Não descobri. Bom, agora eu já sei. É aquele da florzinha amarela que achei. Alecrim bravo, capim limão de flor, Pectis brevipedunculata. Mato da caatinga.
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Andando de novo próximo da árvore de cagaita pisei em algo que fez um barulho ploc. Abaixei pra ver o que era. Achei uma bolinha miúda recoberta por uma penugem, um tipo de folha modificada que nem sabia dizer que estrutura da planta devia ser - talvez uma bractea? Dentro, um monte de semente comprida. Não tinha um cheiro especial, era cheiro de mato. Voltei pra casa com a lembrança dela, mas também de uma mini pata de vaca que nascia no meio do pedregulho, e de um tipo de joá arrebenta cavalo que chamei de arrebenta pônei porque era minúsculo. No sertão tem muita coisa assim diminuta.
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Eu colhi as mangas, fiz um doce que se mexe por horas, depois assei uma enorme fornada de biscoitos, e juntei o doce com a massa. Mas o pesar que eu senti por não parecer simples pra mim me fez escapar completamente a não trivialidade do que eu estava fazendo. Será que esse negócio de ter que se apresentar dizendo o que você é pelo que você produz faz a gente acreditar que tem que ser tão especialista que nada é especial o suficiente?
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Minha melhor amiga veio pela segunda vez no ano passar uns dias aqui comigo. Depois de várias expedições aleatórias reparando mato (e bichos, ela adora insetos), sentamos pra folhear um dos catálogos de plantas que tenho. De repente, vimos a foto da planta rasteira com frutos redondos recobertos por penugem, aquela que fez ploc. Família Passifloraceae. Passiflora foetida. Um maracujá. Corremos pro google pra ver mais fotos. Há vários subtipos, uns ficam vermelhos e outros amarelos depois de maduros. Nem passou pela minha cabeça que aquilo pudesse ser um maracujá. Fiquei com a missão de voltar aonde ele estava e ver se descubro mais alguma coisa e experimento. Mas ele precisa madurar.
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Tem um mês que eu tô comendo mangas todos os dias. Tem tanta que não estou comprando nenhuma outra fruta, tudo é de manga. Tô ficando cansada. Mas tenho certeza que vou sentir saudades da época que tinha manga todos os dias.
Sobremesa
Duas estações é uma crônica da Mariana Vieira sobre a abertura da temporada de chuvas no Cerrado. Depois de mais de 150 dias de estiagem, ela conta que surgem duas aparições: os seres de açúcar e os loucos de chuva, cada qual com suas alegrias. Um dos textos mais lindos que li sobre essa mudança.
O Rodrigo VK fez um vídeo no reels sobre fazer geleia de jabuticaba com as frutas que ele colheu do pé. Ele pesquisou, ficou horas de pé na cozinha se dedicando a encher os potinhos, e o resultado é que a geleia deu muito errado. “No instagram todo mundo acerta de primeira. Na vida real não é tão bonito. Mas aprender é curtir o processo, se descolar um pouco do resultado.” Tem uma versão em texto também pra quem não é de vídeos.
Durante uma estadia de alguns meses no Japão, o Tales Gubes tem escrito sobre suas pegadas na viagem, o contraste do cotidiano lá e aqui, e as impressões que tudo isso causa, ainda que vagas, que vão construindo uma história de como vamos tecendo a vida. Nesta cartinha aqui, ele elabora suas razões pra ter aprendido japonês, e depois ter se deslocado até o outro lado do mundo pra uma temporada. E conclui que, embora seja custoso admitir, não há nada além de porque ele quis. Um relato sincero que pensa sobre por que é tão difícil apresentar a justificativa nesta forma.
Compartilhei esse poema da Marina Colasanti nessa coisa efêmera que são os stories do Instagram, mas fiquei pensando depois um tanto sobre ele.
Dá pra imaginar que ela está falando sobre o que é ser uma mulher que escreve, e todas as coisas que concorrem pela nossa atenção que não as palavras. Mas gosto muito mais de pensar que ela marca que escrever não é mais importante que todas essas outras coisas da vida.
É tão comum ver nós mulheres nos perguntando como seria se pudéssemos ter mais tempo para nos dedicarmos mais a escrever, tocar, desenhar; se dedicar mais a algum trabalho externo que desempenhamos. Enfatizamos como decidir o que vai ser feito pro almoço todos os dias nos atrapalha a ser uma artista ou uma profissional melhor. Mas não sei por qual razão desejamos tão mais que seja diferente pra nós do que estranhamos que o tempo deles possa ser tão descolado do que a manutenção da vida pede.
Arte pra mim tem que fazer parte do cotidiano senão não tem sentido. Estranho pra mim parece se dedicar à arte pela arte, pela fama, pela virtuose técnica ou por qualquer outra coisa que não toda essa vida acontecendo. Viver é louça.
Um beijo e até o ano que vem,
Carla Soares • OutraCozinha
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Certamente correndo o risco de ser repetitiva aqui, mas não poderia deixar de comentar um texto tão lindo como este. Amo retratar o cotidiano, minha escrita se enrosca todinha nesta simplicidade misturada com encanto que é o viver e a sua forma de relatar este cotidiano é tão linda porque vem do lugar de quem vive na presença, mesmo quando não é gostoso estar ali. Sabe que fiquei pensando neste poema que compartilhou também, vi nos seus stories (inclusive compartilhei) porque me tocou muito. A escrita divide espaço com muitas coisas cotidianas na minha vida, nem todas gosto, mas parte delas compõem a Ana que escreve. É um emaranhado de sentir, dificil de descrever, por isso fiquei tão feliz em te ler e, mais uma vez, me encontrar em suas palavras. Lhe desejo um final de ano cheio de dias comuns, com muita manga e também aqueles com suas firulas, porque viver é estar sempre em movimento. Beijos grande Carla!
Ah, Carla! Que bom te ler, saber que também por aí chegou a abundância quase enjoativa das mangas, descobrir que você gostou do texto da mudança de estação. Bom fim de ano e boas colheitas!