[OutraCozinha #25] Um café sempre tem defeitos
Ano passado, numa das minhas viagens épicas de carro do sul do Paraná até BH, numa das paradas fomos visitar um armazém de exportação de café no sul de Minas, ali pros lados de Três Corações. Eu estava curiosa pra conhecer um pouco mais do processamento dos grãos, entender por que um grão é melhor do que outro e tem preços diferentes, e saber se aquela história de que a gente exporta o café bom e fica com o café ruim era verdade.
A primeira sala que visitamos era um laboratório. Nele, os funcionários pegavam amostras das sacas de café colhidas ali no sul de Minas e passavam por seis peneiras encaixadas, cada uma com buraquinhos de tamanhos diferente da outra. As peneiras mais de cima - 18 ou 17 - ficavam apenas com os grãos graúdos de café, mais raros, com poucos grãos defeituosos e por isso mais caro. Já na última peneira - 12 ou 10 - ficavam os grãos menores, quebrados, e um bocado de impurezas que vinham da colheita: pequenos pedacinhos de galhos, folhas, ou a casca do grão de café. No jargão do café, este é um café de mil defeitos. Nas peneiras entre os extremos ficavam os grãos de tamanho médio, com diferentes proporções de defeitos.
O laboratório e as peneiras graduadas de madeira, quadradas.
Eu pensei à princípio que, verificando as porcentagens dos "tipos" de grão que estariam em uma saca, você classificava o café. Um grão com uma porcentagem de café muito grande caindo na última paneira ia valer menos; já um com muitos grãos perfeitos nas peneiras de cima ia valer mais.
Só que não era bem assim que acontecia. É verdade que a partir do que se via no laboratório os valores das sacas eram definidos pra poder pagar pro produtor. Porém, dentro dos galpões gigantes em que entramos logo depois de visitar o laboratório, o que acontecia é que esses grãos eram separados para serem vendidos. Esse processo corresponde àquelas vezes que a gente diz que um café é selecionado.
Os grãos crus passavam por vários processos. Achei incrível a máquina que fazia a separação por gravidade - era uma esteira gigante chacoalhadora e muito barulhenta, e funcionava partindo do princípio de que os grãos maiores tem uma aerodinâmica específica, e, chacoalhados em uma esteira descomunal, teriam maior probabilidade de se ajuntarem em um determinado lugar, por exemplo. E a história de que o café bom vai pra fora, segundo o exportador, é uma lenda. O café que vai pra fora vem da mesma saca de café do que fica. O preço, no entanto, dá um certo indício de que altura da peneira o café que você está tomando se encontra. Grãos do tipo moka, por exemplo, são grãos que ficam em uma peneira específica porque eles tem um formato arredondado. Não são, à princípio, nem piores nem melhores do que os grãos da peneira 18 - mas tem um gosto específico, que no caso é doce -, e apreciar eles é uma questão de gosto.
Passei grande tempo, no entanto, pensando sobre como o valor das sacas de café não tem tanta relação com o que é vendido em um supermercado. Uma saca é uma saca; é um amontoado de grãos mesmo, uns mais redondos, outros mais achatados, alguns partidos no meio, com um pouquinho de casca e pó no fundo. Por melhor e mais cuidadoso que seja o processo, o que se produz com as mãos nunca é completamente uniforme. O processo que produz a uniformidade é o que vem depois, é o que eu vi nos galpões. É o processo da máquina.
As sacas de café selecionado aguardando para serem colocadas em contêiner e partir em viagem
Prato principal
Apesar da visita ter sido deliciosa, ter me ensinado muito sobre café e me feito pensar e conversar algumas horas sobre escalas, homogeneidade e classificação, o assunto instintivamente me vêm todas as vezes que vou catar feijão. Eu morro de preguiça de catar feijão, mas toda vez esse processo me faz lembrar de que as coisas não estão prontas, de que o mundo não tem essa cara homogênea, que o imperfeito é a condição de existir nesse mundo. Por mais bonito que o feijão pareça, lá estão um monte de pedrinhas, alguns feijões achatados, de casca com cor estranha, outros com um furinho entregando que tem algum caruncho.
Na escola de cozinheiro uma das partes mais básicas e importantes, mas que se fala pouco por que tem pouco glamour envolvido, é aprender a cortar os legumes de maneira uniforme. Cubos minúsculos, ou médios, palitos julienne, ou um molho de folhas cortadas em chiffonade; não importa. O exercício mais temido dos aprendizes de chef é esse: escolha o tamanho apropriado à receita e faça o corte idêntico em cada um dos exemplares de uma caixa de 50kg de cenoura. Apesar de ser uma tarefa pouco valorizada, que em geral se deixa pra quem está começando no ofício, este é um segredo importante que diferencia a comida de restaurante da comida de casa. Ter legumes cortados de um mesmo tamanho (por vezes, inclusive, muito pequeno) faz com que o sabor se solte de maneira uniforme, e o cozimento se dê por igual. É claro que esta é uma parte pouco falada nos realities de comida; a imagem glamourosa do chef de comida que habita as nossas cabeças não passa por alguém picando mecanicamente 50kg de cenoura de modo milimétrico. É uma tarefa pouco glamourosa porque é repetitiva, enfadonha, monótona. Saber cozinhar profissionalmente é, de um jeito sutil, se tornar um pouco uma máquina de fazer cozinha - e a gente usa mesmo essa expressão assim, sobre alguém que faz algo com maestria e velocidade, para o bem e para o mal.
Essas tentativas de separar cafés, feijão, cubos e palitos de legumes perfeitos não são uma coisa ruim. Na verdade, a gente parece precisar de alguma forma ordenar o mundo, transformar o caos de coisas dispersas e diferentes entre si em algo mais coeso, semelhante, agrupado.
É claro que toda essa necessidade de ordem não fica apenas ali contida na cozinha. Outro dia estava me gabando de como o bordado, que pratico como hobby, é muito adequado pra esses arroubos de pessoa perfeccionista: gasto um bocado desse meu atributo tentando fazer com que os pontos saiam o mais alinhados possível, e nesse caso ao menos o perfeccionismo parece fazer algum sentido. Ver as meadas de linhas irem preenchendo o pano, formando padrões organizados e desenhos reconhecíveis, é um processo prazeroso e com um resultado muito bonito. Algumas vezes inclusive, o que sai nem é assim tão organizado, nem tão bonito, mas mesmo assim o processo me desperta curiosidade. Há uma sutileza entre se divertir criando ordem e achar que só se pode divertir se o mundo estiver ordenado.
Em parte, é esse esforço de enxergar ordem na desordem que nos faz criar arte, ciência, e muitas outras coisas interessantes. Gostar de ordem não é nenhum pecado. É parte daquilo que somos, do que nos move, e do que temos feito ao longo da existência humana.
O problema aparece quando a gente começa a condicionar demais o olhar acreditando que o mundo tem uma ordenação e um enquadre milimetricamente alinhado em vez de prestar atenção na condição desordenada e pouco estável que o mundo tem de fato. A gente se acostuma com tanta invariância que existe no pacote de café, de feijão, nos legumes de restaurante, e na precisão do bordado de máquina que, quando fazemos alguma coisa com as próprias mãos achamos que está errado, que não presta, que não é bom o suficiente, que não nos esforçamos o bastante porque as coisas precisam e são assim regulares.
A ordenação tem muito a ver com as nossas expectativas. Dar uniformidade é tentar criar uma previsibilidade mínima do que vai sair de resultado. Quando os grãos de café são separados, o que o exportador está fazendo é estimar os defeitos, e dizer pro comprador como vai se comportar o café quando for torrado, moído, preparado. Já em uma saca saída da roça, com todos os tipos de grãos misturados, é mais difícil se prever. Pra algumas pessoas, no entanto, a graça está em não saber o que se vai encontrar quando você finalmente abrir a garrafa. A graça nem sempre precisa se concentrar na expectativa da bebida perfeita, mas também pode se encontrar na emoção da descoberta, da prova, da experiência. E pode também variar entre as duas perspectivas.
Quando comprava pacote de feijão de supermercado e não na feira, nem passava pela minha cabeça que a ordenação fosse uma criação, e das mais raras; parecia que tudo podia sair igualzinho, perfeitinho, alinhado, que nem a ordenação do supermercado. O que eu gosto da experiência de catar feijão, picar legumes ou de passear num galpão de exportação de café é o quanto ela me lembra que uniforme, na natureza, é quase um defeito.
Sobremesa
Um TED que a Carolina, do blog Viver é isso, Clarice compartilhou no twitter mostra de um jeito muito bonito como o nosso olhar molda as coisas que enxergamos no mundo. Dewitt Jones é fotógrafo da Natural Geografic e nos chama pra celebrar o que o mundo tem de bom (em inglês, sem legendas, infelizmente).
Uma entrevista com o filósofo sul-coreano Byung-Chaul Han, publicado pelo El País, bota a gente pra pensar em hiperconsumismo e o que ele chama de "inferno do igual". Ele explora o porquê da uniformidade ser um atributo tão querido no mundo em que a gente vive: Quanto mais iguais são as pessoas, mais aumenta a produção; essa é a lógica atual; o capital precisa que todos sejamos iguais, até mesmo os turistas; o neoliberalismo não funcionaria se as pessoas fossem diferentes.
No blog, postei uma receita de risoto de taioba com banana da terra. É uma ideia pra se usar taioba (uma PANC mineira deliciosa), que foge do jeito que a gente tradicionalmente prepara ela lá em Minas - geralmente refogadinha, pra servir com arroz e feijão bem novinhos, quem sabe acompanhado de um angu e também quiabo. A receita do risoto leva 30 minutos pra fazer, tem uma cara de sofisticada, mas esses ingredientes fogem um pouquinho da uniformidade alimentar que existe no mundo, já que são muito nossos.
Se quiser comentar, contar causos, tiver curiosidade de saber mais sobre café ou simplesmente mandar um abraço, é só responder esta mensagem. Vale também me encontrar no twitter pra falar da vida, ou no instagram, pra gastar toda a necessidade de uniformidade com bordados.
Um abraço,
Carla Soares