[OutraCozinha #37] Comer, dormir e respirar
bserve como você está sentado. Isso, agora, antes de continuar a ler, observe como você está sentado. Procure perceber se alguma parte do seu corpo está tensa ou contraída, e tente se ajeitar numa posição mais confortável. Descruze as pernas se elas estiverem cruzadas. Desgrude os lábios, abra a boca, solte a mandíbula. Deixe também os braços soltos, relaxados. Gire os ombros e depois solte. Puxe o ar pelo nariz, devagar, mas com vontade. Solte o ar lentamente pela boca deixando sair fazendo som e soltando os ombros. No final da respiração solte os músculos da barriga, deixando ela ocupar inteiramente o espaço que é dela.
Respirar de maneira consciente é uma das coisas mais eficientes, controláveis e ainda assim simples que podemos fazer pra lidar com os redemoinhos que as vezes tomam de assalto a nossa cabeça e que parecem impossíveis de irem embora. E pra maioria de nós isso nunca nem foi ensinado. Respirar parece tão automático que essa é a última coisa que passa pela nossa cabeça - ainda que a gente diga de brincadeira "respira, não pira", nem sempre isso toma a forma concreta de se parar pra respirar por alguns minutos do dia assim, de maneira consciente.
Não me parece a toa que não damos atenção a isso. Agora que uma série de domínios já foram incorporados pelo sistema - tantos espaços e interesses privados na mão de quem tem poder, o que inevitavelmente significa dinheiro - a última fronteira da colonização capitalista são as coisas mais básicas da nossa biologia: comer, dormir e respirar.
A ansiedade já é lugar comum. Com ela, a respiração frequentemente fica alterada, curta e no alto do peito, e os pensamentos por consequência, confusos, desordenados, ameaçadores. E nós nem mesmo nos damos conta da ligação entre emoções e respiração, e da importância de se prestar atenção nisso.
Junto com a respiração, a necessidade de repouso é outra que a gente não tem como ignorar se a gente quiser. E embora isso seja um fato da vida, muitos de nós negligenciamos essa relação, e subestimamos frequentemente nossa necessidade de descanso.
Entre uma epidemia de pessoas insones, com dificuldades pra dormir - conectadíssima com esse aspecto da respiração e da ansiedade - há ainda uma pressão pela não necessidade do sono. Isso passa por posts (pseudo)motivacionais já devidamente transformados em risíveis memes do tipo "trabalhe enquanto eles dormem". Pode vir também na forma do conselho de acordar 1h mais cedo - como se dormir fosse algo que pudéssemos deixar de lado, e 1h de sono fosse um luxo caro demais pra você manter. Ou ainda também aparece em declarações como as do ex-prefeito de São Paulo, João Doria, que à época gostava de divulgar pra imprensa que dormia apenas 3h por noite enquanto distribuía complexos vitamínicos pros seus funcionários como forma de convidá-los a se tornarem também supra-humanos, como convém à imagem que se queria dar pro seu governo neoliberal.
O caso da comida me parece ainda mais emblemático, e possivelmente de todos os três talvez o que já esteja num estado mais avançado de colonização. Comer se tornou uma tarefa tão complicada e dolorida pra tantos de nós que é preciso o tempo todo ouvir e se consultar com especialistas - que estão nos consultórios, na mídia, na rua, e até desinteressadamente nos aconselhando nas prateleiras do supermercado, vestindo os produtos. É uma inversão surpreendente pra uma tarefa que deveria ser intuitiva, corriqueira e perfeitamente natural. São tantos os conselhos que nós nos sentimos espremidos, constantemente fazendo algo errado, e justamente por já ter sido alvo há mais tempo do capital, tornou-se difícil escapar dessa lógica.
Nós somos ensinados a ignorar a sabedoria do corpo ainda pequenininhos. Não há espaço pra um dia em que se coma muito, e outro que se quer quase nada - mães e pais frequentemente são bombardeados por informações muito rígidas sobre porções, horários, e nutrientes; são cercados também de olhares julgadores e sobrecarga de trabalho (incluindo o das refeições) por todos os lados. E aí não sobra espaço pros nossos pequenos aprenderem a ouvir, conviver e confiar nas suas intuições. E esse ciclo desregulatório vai se repetindo vida afora, com pessoas que sabem muito de nutrição mas não sabem nada do seu próprio corpo, e acabam comendo coisas por obrigação em vez de saber ouvir os sinais.
O efeito desse lógica perversa, que se concentra em desmandos externos em vez de olhar pra dentro, pro alimento, pros comportamentos ou pros contextos, são pessoas sofrendo, algumas com transtornos alimentares, ciclos compulsivos repetitivos dos quais não conseguem escapar, ou mesmo o comer transtornado – que é quando comer se torna carregado de culpa, excessivamente preocupado com o conteúdo nutricional ou com um “comer corretamente” que pode assumir as mais diversas formas e, mesmo não preenchendo os critérios de um transtorno alimentar traz muito sofrimento pra quem o experiencia.
Nos três casos - comer, dormir e respirar -, o que esse embaralhamento nos tira é a possibilidade de prestarmos atenção em nós mesmos. Não tem muito diferença entre estar tão aflito e sobrecarregado que sequer se lembra de respirar, ou de estar tão atento no que os outros fazem pra poder ter a mínima chance de competir a ponto de não poder fechar os olhos pra dormir. Comer desatento ou com os olhos grudados nas informações nutricionais ou no relógio ou na etiqueta de preço ou na telinha do celular torna praticamente impossível a tarefa de perceber como você se sente, o que a comida te causa, ou até mesmo os cheiros, o gosto, as situações à sua volta.
Tem uma cena que repetidamente vêm à minha lembrança de uma vez que soquei um pacote de pão de forma. Eu estava na praia com meu namorado e minha mãe, e ambos sabiam como podia ser difícil pra mim me permitir comer adequadamente. Então eles faziam um tremendo esforço pra me oferecer um ambiente pouco ameaçador, e compravam pra mim um pão em que a tabela nutricional gravada no pacote indicava que eram as fatias com o menor número de calorias do mercado. Deu trabalho achar, eles tiveram que ir a mais de um supermercado, e encontraram o tal pacote no supermercado mais longe de onde estávamos hospedados. Era uma forma deles me oferecerem um pouquinho de alívio. Embora eu fosse capaz de enxergar o esforço deles, e conseguisse sentir uma ternura pelo cuidado que eles estavam tendo com os meus medos, eu fui tomada por uma raiva imensa. Eu me sentia presa àquele pacote de pão, o único que eu me permitia comer, mesmo naquela situação de um dia memorável na praia. Eu me sentia tão constrangedoramente inadequada. Comer o pão era inadequado, não comer era inadequado, comer outro pão era inadequado. Pra mim parecia uma situação tão sem saída, e eu me sentia incapaz de colocar esse cheque-mate tomado em palavras. O máximo que consegui foi dar um soco no pacote. Um soco grande, imenso, que deixou os pães completamente amassados. Pode não ter sido muito eficiente em comunicar exatamente o que se passava comigo, mas ainda assim era uma tentativa de lidar com a prisão em que eu me sentia. Era uma expressão mais genuína do que me resignar a viver da forma como eu vivia.
A perversidade maior de todo esse processo é que todo esse trabalho de procurar "o pão correto" emulam muito bem a lógica de dar atenção à comida. Você parece ter justificavas pra fazer isso, e estar munido das melhores informações e intenções. E no entanto, toda essa atenção na verdade é só controle. Diferentemente da atenção, o controle não permite que as coisas nos atravessem, e nos faz perder completamente o momento. Elas não deixam que se entre em contato com o seu corpo, seu contexto, nem com a brisa do mar, porque fica tudo esvaziado por um domínio e um saber que é alheio, externo. É aquela imagem de banana que quanto mais eu aperto, mais ela me escapa nos dedos.
Nossa relação com a comida anda tão esfarelada que além do controle, tem os que se colocam no extremo oposto do espectro e parecem não ligar pra absolutamente nada quando o assunto é comida. Comem por comer, só porque é preciso, pra matar a fome, procurando ter que lidar o mínimo possível com aquilo.
Dentre os que se posicionam dessa forma, tem pelo menos dois processos que explicam a escolha. Tem os que se sentem tão apavorados, que reconhecem que os excessos propostos pelos discursos do controle são tão aversivos que desistem de fazer qualquer tentativa mais elaborada. E tem os que decidem não ligar porque captam o pouco valor que se dá pra essa coisa de se fazer comida. Nessa ponta, estão as pessoas que mesmo sem perceber, estão cobertas por várias camadas de machismo, que ditam que cozinhar não é trabalho, não precisa ser remunerado, pode ser facilmente feito por qualquer pessoa ou até pelas máquinas porque não significa quase nada.
Esse pensamento também agrada muito ao sistema porque significa que uma pessoa desinteressada está totalmente satisfeita em transferir seu controle pra quem oferecer o menor preço. Não é por um acaso que os algoritmos adoram e incentivam que a gente vá pra extremos.
Uma vez, depois de reclamar sobre como minha casa tinha as refeições sempre tão desorganizadas que parecia que ninguém se importava, ouvi de uma acupunturista um conselho: - Comece limpando o seu espaço. Se a mesa estiver cheia de papéis e outros objetos (e ela sempre estava), coloque-os de lado ou retire os objetos ao menos do lugar onde você pretende usar. Coloque um jogo americano, um pequeno forro de mesa, faça um prato e posicione os talheres, mas não deixe de arrumar o espaço pra você.
Sair do piloto automático é desesperadoramente difícil porque é quase como pedir pra se encontrar uma saída do próprio sistema. Parece estranho ter de falar pra alguém se importar com uma coisa que a gente não tem como dispensar. Mas no capitalismo, enquanto a gente está extremamente preocupado com o quanto produzimos, com o quanto acumulamos, ou com o que é que vai nos faltar, nos desligamos completamente de coisas básicas como de ser o que a gente é.
Fogo
e você estiver lendo este email no dia em que eu enviei, é dia de lua nova. A lua nova, em diferentes tradições, é o momento que marca a entrada, um novo início de ciclo, e é muito propícia pra mentalizações de coisas que queremos realizar, perceber, sentir ou experimentar no período de aproximadamente 28 dias. É na lua nova que os calendários de agricultura biodinâmica indicam ser o melhor momento pras semeaduras. Na astrologia, esse é o momento em que a lua se encontra em conjunção com o sol num mesmo signo, marcando a nova lunação. Nos vários calendários lunares que já existiram, a lua nova marcava o início de um novo período. E até mesmo a ciência reconhece a influência da lua sobre as águas dos mares: a lua nova é o momento da maré baixa, onde o mar se recolhe ao fundo, esvaziado, pra começar a se encher todo outra vez na próxima fase.
Essa newsletter em 2020 vai chegar em cada uma das 12 luas novas de 2020 com pequenas propostas pra cultivar a atenção com as coisas à nossa volta.
Se quiser, aproveite este lembrete pra se comprometer com um pequeno ritual. Escreva num papel o que você deseja pra esse ciclo. Acenda um incenso, uma vela, prepare um vaso de flores frescas, coloque uma música, dance, fique um tempo sob a luz da lua - o que fizer sentido pra você. Seja específico, escolha coisas pequenas - é delas que nascem as grandes mudanças. Se sentir que o tema do mês da minha newsletter conversa com você, incorpore ou use ele no seu ritual pessoal. Mentalizações coletivas têm imensa força.
Terra
site do OutraCozinha também tá de cara nova, pra combinar com a primeira lua nova do ano. Lá também está tudo reorganizado conectado com os 4 elementos, como fiz por aqui.
Na Água, separei meu trabalho emocional nos escritos mais reflexivos como os das newsletters; na Terra, o trabalho concreto com receitas e cultivos; no Ar, as ideias que trazem novos ventos, como indicações de livros, séries e outros produtos culturais; e por fim, no Fogo, reuni meu trabalho artístico com agulha, linha e materiais naturais.
Aproveitei pra arrumar um cantinho pra falar do livro que estou finalizando e de outras publicações minhas. Também criei espaço pra falar dos cursos e palestras que venho oferecendo, que unem comida e estórias. Em 2020 vou oferecer um deles, sobre Escrita compassiva nas redes sociais, na versão online. Se sentir que pode ser pra você, entra aqui, deixa seu email, que assim que abrir você vai ser o primeiro a ficar sabendo.
Enfim, dêem uma volta por lá, sintam-se em casa, espero que apreciem.
Ar
ma resolução popular de ano novo (e porque não, também de Lua Nova) é comer melhor. Pra alguns pode parecer um contrassenso mas o livro O peso das dietas, da Sophie Deram, propõe deixar de se preocupar com nutrientes, não focar no peso e definitivamente NÃO FAZER DIETA pra se chegar num lugar mais pacífico com o corpo e a comida. Acho que o subtítulo do livro - Emagreça de forma sustentável dizendo não às dietas - me pareceu equivocado, porque a proposta é se preocupar menos com o peso e mais com a sua relação com seu corpo e a comida. E ela propõe fazer isso à partir da valorização da observação pessoal das suas sensações, e da aceitação radical das suas vontades. Pra quem está acostumado com a abordagem controladora dominante de porções pré-definidas, contagens e restrições, é sem dúvida um salto de confiança. Se quiser saber mais, escrevi sobre o livro no OutraCozinha. [Aproveitando: use o link dessa newsletter ou do meu site se você for comprar o livro. Ganho uma porcentagem pela indicação e é uma forma de você apoiar o meu trabalho no OutraCozinha]
Amar-se e cuidar de si é um discurso bastante colonizado pelo mesmo ciclo de produção 24/7, incessante, do qual discutimos por aqui. Você sempre parece precisar fazer mais: cuidar mais da sua alimentação, da sua saúde mental, do seu sono, como uma forma de demonstrar que está bem e ajustada. Porém, a jornalista e escritora Laurie Penny nota que o modo como o capital nos impõe esse tipo de cuidado gira sempre em torno de uma responsabilidade individual. Reconhecermos nossos ciclos, nossa biologia e nossas experiências ganha outra conotação no que a jornalista escreve em Life-Hacks of the poor and Aimless: on negociating the false idols of neoliberal self-care. Sua importância deve ser coletivizada para se tornar uma oposição real ao sistema.
O episódio #28 do podcast Coemergência traz a psicóloga Erika Leonardo de Souza pra falar sobre mindfullness e cuidado de si. Em 2019, ela organizou no Senac, em São Paulo, o I Encontro Nacional de Compaixão, evento que reuniu representantes de diferentes protocolos e metodologias para apresentar como é possível cultivar a compaixão por si e pelos outros - congresso no qual eu também tive a oportunidade de me apresentar e fazer parte. No episódio, Erika traz de maneira muito didática explicações sobre os nossos sistemas de regulação emocional, e propõe algumas práticas que podem ajudar a entender o cuidado de si de uma maneira mais humana.
Pra quem se interessar por entender mais da prática de respiração consciente, pode assistir no Netflix o documentário On Yoga - A arquitetura da paz, que mistura o trabalho do fotógrafo Michael O'Neill com vários insights sobre o significado do Yoga. Saí do documentário estranhamente relaxada, como sairia depois de praticar um pouco de respiração consciente, e só isso já valeu a pena.
Pra quem chegou até aqui, obrigada pela companhia. A próxima cartinha chega no seu email na próxima lua nova, dia 23 de fevereiro, em pleno carnaval.
Essa cartinha também está publicada aqui, caso queira espalhar por aí (espalhamentos são sempre um carinho que agradeço <3).
Um imenso abraço,
Carla Soares
OutraCozinha