Eu estou tentando aprender a fazer cerâmica sozinha. Mas não é uma cerâmica qualquer. Eu estou tentando fazer cerâmica extraindo da terra minha própria argila.
Cerâmica é daqueles hobbies que parecem caros e pomposos, feita em estúdios minimalistas, com um monte de equipamentos grandes e meio complicados. Mas se você parar pra pensar, essa é uma arte tão antiga; nossos antepassados que não tinham nada disso já faziam. Ainda na idade da pedra lascada eles usavam instrumentos simples que eles mesmos produziam, pra criar peças que eram ao mesmo tempo úteis e também bonitas.
Apesar do mundo nesse meio tempo ter mudado muito, eu não vejo porque a gente não poderia fazer algo assim se quisesse, parecido com o que era feito em outros contextos. Sem tornos sofisticados, sem argila comercial ou fornos tecnológicos, que não são muito acessíveis pra mim no momento. O que eu estou querendo fazer é uma espécie de cerâmica ancestral, uma cerâmica que usa radicalmente o que eu tenho disponível em volta de mim pra criar.
Eu passei algumas semanas fazendo experimentos com uma fonte de argila que encontrei na beira do rio. Extraí, separei, percebi que não era tão plástica pra se fazer cerâmica. Daí eu observei e depois estudei pra entender com que tipos de outros materiais ela tava misturada. Separei mais uma vez, agora com uma técnica que me pareceu mais adequada pro que eu tinha entendido, e consegui uma plasticidade mais interessante. Fabriquei alguns instrumentos pra lidar com a argila, como uma espátula feita com um pedaço de cabaça, e um molde arredondado a partir de uma carapaça de coco. E aí então eu comecei a moldar.
As primeiras tentativas foram muito frustrantes. A minha sensação foi a de ser muito ruim naquilo, e que eu jamais iria conseguir sem ter aulas. Ou que talvez a minha argila e meus instrumentos construídos não fossem bons o suficiente. Embora eu tenha conseguido fazer algumas peças, elas não se pareciam com nenhuma cerâmica que eu tenha ou que aparecem todos os dias no meu feed de Instagram. Eram peças menos lisas na superfície, menos simétricas, que pareciam ainda mais impossíveis de se replicar pra fazer mais de uma idêntica. E eu fiquei achando que esse meu interesse novo era meio louco, estranho, até inverossímil, como se eu tivesse ido longe demais nas minhas invencionices.
Mas eu estava aprendendo essas técnicas antigas no youtube com alguém que também se interessava por fazer cerâmica tirando argila da terra e inventar os próprios instrumentos. Pensei então que talvez existissem outras pessoas que também estavam fazendo peças de forma parecida. Eu fiquei imaginando se pralém do que eu acho fácil no meu feed existem outros ceramistas cujo interesse não é pelo mais liso e comercializável da cerâmica, mas por uma aparência mais orgânica, ou pela pesquisa e réplica de instrumentos naturais de outros tempos, pela tentativa de criar pigmentos a partir de vegetais e minerais que estiverem à mão, ou qualquer outra pira que eles possam ter e que talvez se pareçam mais com as minhas. Ainda que seja cerâmica, o que eu quero fazer é um outro tipo de arte, que é tão válida quanto a que praticam todos os outros ceramistas que fazem as cerâmicas mais populares.
Ter encontrado outras pessoas que faziam essas cerâmicas diferentes mudou totalmente a minha perspectiva sobre as primeiras peças que eu tinha feito. Fui capaz de ver que realmente ainda posso melhorar muito, mas é como se agora eu tivesse um outro parâmetro do que realmente posso chamar de defeito. Não sinto mais uma incrível frustração da distância das cerâmicas comerciais esmaltadas, mas fico agora comparando com peças que são igualmente reais, modeladas com as mãos e outros pequenos instrumentos, e feitas com argilas artesanais. Conhecer essas outras possibilidades tornou pra mim muito mais fácil perceber o quanto praticar essa modelagem com argila me deixa realmente entretida, feliz e animada, ainda que esteja saindo muito imperfeita.
Prato principal
Outro dia contei nas minhas redes sociais sobre um fotógrafo que comecei a seguir que ensinava a fazer fotos de comida. O foco dele é ensinar a fazer um tipo de imagem específica que ele chama de "foto de comida que vende".
Saber fotografar comida de um jeito que ela fique bonita é uma habilidade muito legal, porque mesmo a mais ordinária das criaturas vez ou outra quer dividir nas redes um pratinho interessante que preparou, e fazer fotos boas de comida dá um certo trabalho. Mas apesar de fotografar comidas com certa regularidade, o que me fez ficar ali naquele perfil foi outra coisa.
Eu comecei assistindo os videozinhos dele ensinando a montar cenário, a escolher elementos e como fazer a composição. Lá encontrei vídeos pra falar dos melhores ângulos em que você deve posicionar a câmera pra criar boas imagens. Outros vídeos destacavam a questão da textura da comida, do que escolher e de como enfatizar esses elementos na imagem. Era uma verdadeira aula prática de semiótica, e as imagens que ele mostrava eram realmente de muito bom gosto.
Mas apesar do cuidado estético e da coerência dos argumentos, esses vídeos todos me davam um incômodo que eu não sabia dizer muito bem o que era.
Foi quando os posts com as fotos dele começaram a aparecer no meu feed e eu já não precisava mais checar pra saber de quem eram as postagens que esse meu incômodo começou a ficar mais concreto. Eu comecei a pensar o quanto essas fotos eram bem montadas, mas eram sempre ensaiadas. E principalmente, elas eram sempre iguais umas as outras.
Os paninhos meio largados, o legume cru que foi usado na receita colocado ao lado do prato que se quer mostrar, as cerâmicas artesanais esmaltadas usadas pra servir sobre um fundo de madeira; a mão que parece que está cortando algo, mas que ao mesmo tempo você sabe que é posada. E tudo isso estava presente em todas as fotos dele, mas também mais ou menos desenhada em qualquer postagem que tenta ter uma cara mais séria no Instagram. Milhares de fotos feitas com mais ou com menos destreza, mas quase sempre uma variação dessas ideias.
Fiquei pensando em quantas vezes eu acabo não postando uma foto que fiz porque ela me parece inadequada, mesmo que eu não saiba muito bem dizer porque ela me faz sentir assim. Muitas vezes acho que construo algo bem dentro desses moldes, é verdade, mas nem sempre minhas fotos estão nessa estética. Eu às vezes sinto preguiça de criar toda uma produção pra fotografar uma coisa que deveria ser corriqueira, que acontece dentro da minha cozinha. Mas a sensação é que qualquer coisa que fuja demais disso não parece tão digna de se exibir.
Eu sei que fotografo pra mostrar, e que ainda que eu não seja profissional é natural que eu faça isso com algum cuidado. Mas o que fico pensando é no quanto essas estéticas parecem um tipo de meme: um negócio que vai se repetindo tanto que se torna linguagem, gênero, e que qualquer coisa fora disso comunica mal, parece mais propensa a ser lida como inadequada.
Ainda que eu não estivesse querendo criar "fotos que vendem", como o perfil prometia, são essas imagens que povoam nosso imaginário e as nossas referências, já que vender é a palavra de ordem do dia. Essa perspectiva, no entanto, é um pouco desestimulante pra quem faz, porque é muito chato criar pra simplesmente se encaixar naquilo que já está sendo feito. Mas pra quem consome essas imagens também se torna particularmente tedioso, porque passa a ser difícil criar uma leitura que tenha qualquer sentido que foge do que as propostas comerciais entregam.
É um paradoxo: parece que quanto mais coisa igual existe no mundo, mais vai ser fácil criar algo original e único, já que tudo o que existe é muito parecido. Mas é o oposto que acontece. Fica mais difícil criar coisas novas porque ninguém cria do nada; a gente usa aquilo que já conhece pra construir coisas novas. Se o que se conhece é só mais do mesmo, por mais estranho que pareça, é muito difícil construir algo realmente original.
Recentemente esbarrei numa newsletter em que a autora, que também é uma blogueira de comida, constatava que a diversidade de blogs de comida simplesmente desapareceu com a popularização das redes sociais e seus algoritmos, que fazem a gente, mesmo sem se dar conta, desenhar nossos posts de forma que eles sejam mais vistos nesses espaços. Ela conta que publicou um livro recentemente, e que quase sempre a expectativa é de que, por ela ser uma blogueira de comida, seu livro seja de receitas - e não é. É como se existisse uma expectativa tão bem formatada do que é ser uma blogueira de comida que a gente não consegue nem imaginar outros enfoques, ângulos e projetos possíveis que caibam dentro do assunto comida. Os posts populares com receitas rápidas apresentadas com estética impecável em 1 minuto, as dicas que nem sempre são muito boas mas que invariavelmente são apresentadas com o espanto de como você sempre fez aquilo errado, o foco em ser mais saudável, mais natural, mais gostoso, ou mais politicamente engajado - tudo isso formata bastante as nossas expectativas sobre o que é ler hoje sobre comida. E, claro, é o que possibilita conseguir algum contrato publicitário que garanta de alguma forma de sobrevivência para a blogueira.
Ela sente algo que eu também sinto: é difícil comunicar e agradar com o que você está fazendo se isso não é o que já esperam. As expectativas sobre formas possíveis que um determinado assunto possa ter se tornaram tão fechadas que parecem ter atingido até a nossa capacidade imaginativa.
E não é só na nossa capacidade imaginativa que os efeitos dessa falta de diversidade de parâmetros sobre o que é uma produção aceitável acaba esbarrando. Parece que agora, por existir uma margem tão estreita e um desejo tão intenso por ter qualquer viabilidade comercial, isso também impacta na forma como nos relacionamos com as pessoas dentro das redes. Parece que nós não sabemos seguir as pessoas sem desejar ser, fazer ou consumir as mesmas coisas que elas. Há cada vez menos uma ideia de ver quem admiramos nas redes como uma mera referência, uma possibilidade de relação que não precisa passar pelo desejo de ter os mesmos objetos ou as mesmas experiências.
É um movimento de mimese tão grande que não basta apenas que a gente vá batendo no liquidificador as ideias e gerando outras novas. Parece que agora pra manter aceso o desejo, as pessoas se vêem obrigadas a manter uma estética inspiracional tão impecável quanto irreal, enquanto outras desejam se tornar iguais pra ter alguma chance de também serem populares.
Não há nada errado em querer ser visto. Ser aceito e pertencer é uma necessidade humana. Mas quando tudo é desenhado pra que esse seja o único parâmetro válido pra decidir o que merece ou não ser visto, a beleza da diversidade das coisas corre um enorme risco. Nem sempre a gente se dá conta do quanto esses modelos invadem e contaminam as nossas percepções. Mas se o diferente passa a ser inadequado, muitas possibilidades acabam sendo mortas antes mesmo de terem tempo suficiente pra crescer e serem desenvolvidas.
Eu sinto falta de ver fotos menos montadas. Eu sinto falta daquela foto em que tem alguma coisa que escapa, que ainda que sejam reais não pareça que todos os esforços dela estão concentrados em me fazer ter uma reação de apertar um botão numa rede social. Muito tem se discutido sobre a falta de espontaneidade nessas redes. Mas aí de novo, a resposta pra isso tem sido incorporar uma espontaneidade calculada, um contrassenso enganador que nada mais é do que uma tentativa que o sistema sempre faz de incorporar a crítica pra continuar sobrevivendo.
Mas o que eu mais sinto falta, talvez, não seja exatamente dessa espontaneidade. Eu sinto falta mesmo é de uma diversidade maior de coisas. Quando me vi querendo encontrar outros ceramistas que faziam peças fora do torno, ou quando segui o fotógrafo de comidas que vendem, o que mais me incomodava era perceber como eram restritas as minhas referências. E principalmente: como era difícil sustentar uma alegria de criar quando eu me sentia limitada por só conseguir pensar nessa medida de popularidade, que não era o que eu tava procurando pra mim naquele momento.
O que a gente precisa não é só de pessoas fazendo coisas diferentes, e sim de uma diversidade real, que tenha chance de sobreviver mesmo sem o olhar intenso do outro. Uma diversidade que não seja só de ideias, mas também de critérios, de motivos que nos levam a fazer as coisas que não sejam apenas "se eu fizer isso será que outras pessoas vão se interessar e eu serei vista?".
Esse processo de uniformização dentro do nosso sistema produtivo tem um propósito. Ao simplificar o processo de produção, ele tenta aumentar o controle sobre ela, e com isso diminuir custos. Mas isso também tem outras consequências. A ativista ambiental Vandana Shiva no livro Monoculturas da mente (atualmente esgotado), observa que não é só na produção agrícola e de bens de consumo que a simplificação e o esvaziamento da diversidade é a norma. Tudo que o sistema capitalista toca se transforma em monocultura. Mas ela também explica que essa lógica não produz mais, ela apenas controla mais o processo produtivo, mas com perdas muito significativas da auto-organização e diversidade da vida, que se arrastam pra todos os espaços das nossas vivências.
Quem se mete com quebrar as monoculturas, apesar de produzir uma diversidade de riquezas, corre o risco de não conseguir sobreviver dentro desse sistema. Essas pessoas têm a sobrevivência ameaçada porque se sustentar aqui é ter um monte de pessoas que pagam pelo seu valor, e elas operam em outra lógica. Como estamos acostumados a achar que esse é o único jeito de se existir, muitas vezes parece que essas coisas menos populares nem mesmo fazem sentido, e talvez devessem mesmo desaparecer. Mas se a gente não cultivar uma diversidade maior de ideias e de motivos que nos levam a fazer o que queremos, corremos o risco de acreditar que a vida é isso aí mesmo, que só porque nem tantas pessoas estão interessadas, certas coisas não são dignas de existirem mesmo.
A gente só vai ser capaz de conseguir pensar um mundo diferente desse se ideias diferentes começarem a ser mais cultivadas. Toda vez que alguém faz algo um pouco diferente, e é capaz de insistir e sustentar a sua extravagância, eu sinto como se fosse um aceno. Muitas pessoas vão ter dificuldade de entender o que está sendo feito, mas ao sustentar o diferente eu me sinto também mais livre pra exibir toda a minha estranheza. Talvez um dia eu não sinta que precise tanto caber numa caixinha.
Sobremesa
Newsletters em formatos diversos têm devagarinho se tornado mais populares, especialmente porque elas parecem ter alguma coisa bem diferentes das redes sociais. Em novembro vai acontecer um evento online pra falar sobre essa singularidade.
Estarei participando de duas mesas: uma discutindo quem são as pessoas que estão interessadas em ler newsletters, e outra pra pensar sobre newsletter como um gênero literário. Tem um monte de escritores que admiro bastante que vão participar dessas conversas e também oferecer oficinas. Um prato cheio pra quem já escreve newsletters ou tem vontade de começar uma.
A programação completa e os ingressos pra participar estão disponíveis neste link.
Você viu essas almôndegas de caju que mostrei nas minhas redes esses dias? Relutei em publicar minha foto informalzona, mas estou ali explicando como fazer. É das melhores coisas que experimentei nesses últimos tempos.
No blog, mostrei com cuidado como fazer chips de banana verde assados. E nas próximas semanas, depois de uma série de testes, vou começar a publicar algumas receitas com mangas verdes - elas funcionam muito bem como um legume, pra fazer pratos salgados.
Em breve as mangas devem começar a madurar, e eu tô de olho em algumas receitas. Separei essa sobremesa de pérolas de manga feitas com farinha de tapioca e regadas com leite de coco pra experimentar. Mas estou aceitando sugestões, já que tenho uma mangueira inteira pra dar conta, junto com os morcegos e meus vizinhos.
Esse e todo o trabalho de pesquisa e escrita que faço existem com o apoio financeiro generoso dos leitores, que podem ser poucos, mas acreditam em outras formas de se levar a vida.
Obrigada pela companhia,
e até o próximo mês.
Carla Soares • OutraCozinha
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As fotografias desta newsletter são da fotógrafa Vivian Mayer, que passou mais de 50 anos da sua vida interessada fotografar a vida urbana mas só mostrou essas fotos pros outros no fim da vida. Esse vídeo apresenta a artista e também discute porque ninguém precisa ver nossas fotografias para que elas sejam válidas.
Tenho pensado tanto nessa linha de combater a monocultura que o capitalismo produz. Certamente vou atrás do livro que vc cita :) Valeu hehe
No mais, tô anotando esse trecho do "estamos acostumados a achar que esse é o único jeito de se existir, muitas vezes parece que essas coisas menos populares nem mesmo fazem sentido, e talvez devessem mesmo desaparecer. "
é bem isso mesmo. bom domingo aí! seguimos nessa construção coletiva de apresentar alternativas :)
O título da sua newsletter me lembrou — não sei se é uma citação proposital — o refrão de uma música chamada “O caminho pisado”, dos Paralamas, que é minha banda favorita.
Abro a newsletter e tem fotos da Vivian Maier, que é minha fotógrafa favorita.
E depois você começa a falar de cerâmica, que é o hobby da minha noiva: https://instagram.com/gabikolling
Acho que podemos ser amigos. Hahaha