O ano é 2022.
40 milhões de pessoas vivem apinhadas numa única cidade. O espaço urbano se tornou caótico - muitos moram aglomerados pelas escadas dos prédios, nas igrejas e templos que agora foram transformados em abrigos, ou só perambulam pelas ruas porque não existem casas pra todos.
Uma atmosfera esverdeada envolve todos os lugares e parece pesada, insalubre. Os dias são muito quentes, e a qualquer hora as pessoas estão suadas, com gotinhas visíveis escorrendo pelo rosto. Não há também ar condicionado, porque não existe energia elétrica suficiente pra dar conta dos prédios que servem toda essa gente.
A água é racionada; a comida, um item raro. Ninguém mais conhece alimentos que eram comuns no passado - alface, maçã, morangos, tudo isso é raridade reservada apenas a quem pode pagar muito, muito bem. O que se come mesmo é soylent, um biscoitinho processado que é vendido em um amigável formato quadrado, feito com soja de verdade. Tem soylent de vários sabores: red, yellow e a novidade que acaba de ser lançada, o soylent green, feito de plânctons e algas. Mas pra conseguir comprar é preciso chegar cedo na fila do mercado e contar com a sorte porque ele é muito disputado.
Esta é a situação que a gente assiste em Soylent Green, um filme de ficção científica de 1973. O cenário distópico futurista é pano de fundo pra investigação de um assassinato que ocorre logo no início da trama. Um alto executivo da Soylent Corporation, aquela que fabrica os biscoitos, é morto dentro de casa. Um detetive consegue perceber que não se trata de um crime comum: o rico executivo levava uma vida de "regalias", com acesso a comida de verdade, bebidas, ar condicionado e até um chuveiro, mas nada foi roubado da sua casa. O detetive passa então a investigar qual teria sido a motivação praquele assassinato, e encontra um mistério. Parece que o alto executivo da Soylent sabia de um grande segredo da corporação, e por isso terminou silenciado. Mas ele não sabe que segredo é esse.
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O ano é 2013.
Um engenheiro de software do Vale do Silício, cansado de ter que lidar com o preparo de refeições, resolve usar os seus conhecimentos de engenharia pra tornar o processo de se alimentar mais simples e eficiente, diminuindo o gasto de tempo com planejamento, execução, ingestão e pós-preparo.
Ele começa a estudar bioquímica em alguns livros didáticos médicos, e também se torna um leitor voraz das recomendações governamentais estadunidenses acerca dos nutrientes indispensáveis. Com seus conhecimentos recém adquiridos, resolve comprar os ingredientes que parecem mais oportunos: gluconato de potássio, carbonato de cálcio, fosfato monossódico, maltodextrina. Começa a fazer alguns testes de fabricação de uma bebida, com o intuito de usá-la como um substituto de todas as refeições.
A primeira cobaia é ele mesmo. Ele ingere exclusivamente esse preparado por 30 dias. O alimento foi projetado pra ter um sabor neutro, bem pouco marcado, que não enjoe de tanto tomar. Com o experimento ele percebe que a bebida precisa de ajustes. Daí ele muda a proporção de ingredientes pra lidar com alguns problemas de saúde que apareceram, mas nada que não possa ser resolvido com um melhor balanceamento dos micronutrientes.
O engenheiro percebe que ele tinha algo interessante em mãos. Ele realmente conseguiu diminuir o tempo gasto com comida - sua maior motivação pra começar todo esse processo. Mas o que ele também descobre é que além da diminuição do tempo gasto, a bebida fez ele diminuir seus custos mensais. Também se sentiu mais no controle de tudo: agora ele sabe exatamente o que põe pra dentro, e com isso garante que está se alimentando direitinho. E principalmente, agora sobra muito mais tempo pra poder se dedicar ao que realmente importa: gastar menos tempo com tarefas enfadonhas e supérfluas, e poder fazer um uso mais eficiente do seu tempo.
É nesse ponto que o engenheiro então resolve tornar pública a sua jornada de criação. Após a divulgação do experimento num site de notícias de empreendedorismo e tecnologia que chamou muita atenção do público, o engenheiro decide criar uma campanha de financiamento colaborativo pra tirar do papel a fórmula e dar início à fabricação e comercialização dessa bebida que promete ser revolucionária.
A campanha é um estouro. 200 mil dólares são levantados em questão de horas. Assim como o engenheiro, as pessoas também parecem ter um enorme interesse em um processo alimentar mais eficiente.
Em 2014, com o dinheiro levantado, as primeiras garrafas começam a ser comercializadas. Ele batiza a bebida de Soylent, fazendo referência aos biscoitos do filme de 1973. Apesar de não serem feitos de soja, e saber que no filme há um mistério macabro que envolve a Soylent Corporation, o engenheiro acha que o nome é instigante: "Eu queria que as pessoas ficassem curiosas e se interessassem por investigar".
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O ano é 2023.
As pessoas precisam trabalhar mais e mais horas em troca de um salário insignificante, e que muitas vezes ainda assim não é suficiente. Têm dois, três empregos. Outras estão amarradas com contratos temporários sem nenhum direito que não o de receber um valor minguado que nem sempre tem dia certo pra cair, e vivem com medo de como será o amanhã.
Nas cidades abarrotadas, elas transitam apertadas ou dependuradas no ônibus que passa as 7h da manhã em direção ao centro - isso quando conseguem entrar. As moradias são cada vez menores, mas não faz tanta diferença porque não sobra muito o que fazer no dia-a-dia além de se sentir cansado, tomar um banho, ficar em frente a uma tela a escolha e dormir. A sensação claustrofóbica, de que a qualquer momento um pode roubar o seu lugar faz com cada um lute com unhas e dentes pela sobrevivência. Qualquer tarefa que desvie o foco dessa luta é com razão vista como um enorme estorvo, um acessório, uma perda de tempo. É uma vida de apertos não só no passo, mas em muitos outros lugares.
A rotina se tornou tão atribulada pelas demandas do trabalho que há dias em que nem sempre sobra tempo pra comer, o que dirá planejar, preparar e depois organizar a louça que se suja pra produzir mesmo um prato simples de comida. O custo de uma refeição comprada pronta nem sempre é acessível, isso quando não tem também uma qualidade duvidosa. Está na ordem do dia procurar otimizar e achar formas práticas para poder se alimentar.
Uma tática comum que é compartilhada por organizadores profissionais, marmiteiros personalizados e influencers de comida em redes sociais é a de preparar em algumas horas do fim de semana todas as refeições que deverão ser comidas nos dias úteis. Várias técnicas diferentes são ensinadas. Enquanto alguns apontam as melhores vasilhas e formas de acondicionar a comida preparada, outros informam como aquecer e fazer com que ela pareça fresca novamente; como montar cardápios mais eficientes; truques para fazer as compras e tornar a comida mais barata. Cursos explicam como otimizar o tempo de preparo, já que cozinhar um volume de comida que dê pra semana inteira exige panelas e logísticas que merecem ser melhoradas.
Há um clamor por tornar o processo mais rápido, otimizado, e gastar bem pouco tempo com essa necessidade que a gente ainda tem pelo menos umas três vezes no dia. Mas também parece que pra algumas pessoas a economia de tempo e energia é vista como escolha. Elas introjetaram tanto a importância de produzir como uma medida do valor delas mesmas que se sentem culpadas se não estão fazendo suas tarefas da melhor forma ou se não estão fazendo nada útil. Elas fazem o que precisa ser feito, hora após hora, e qualquer coisa fora da eficiência ou que não tenha como virar dinheiro acaba sendo visto como um efeito colateral que pode ser melhorado pra sustentar a sobrevivência.
O trabalho tomou tanto espaço na vida de todos que se tornou difícil imaginar se dedicar a qualquer coisa que não seja a eficiência no que se faz. Também é difícil pressupor que exista algum prazer que não esteja ligado com o próprio fazer - mesmo quando o objeto é uma atividade fisiológica que naturalmente nos faz sentir prazer. Alguns se defendem dizendo que não se importam com comida, e suspeito, eles encaram a comida como mais uma tarefa que precisa ser feita, já que ainda precisam daqueles nutrientes. O que importa é se manter funcionando pra dar conta de ganhar a vida.
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— Como foi que a gente chegou nisso?
Sol, o colega de quarto do detetive, chora copiosamente enquanto olha extasiado pra uma cabeça de alface murcha e duas maçãs mixurucas sobre a mesa, que haviam sido roubadas pelo detetive da casa do executivo assassinado.
Sol prepara então um almoço para os dois. Arruma a mesa e coloca uma panela ao centro. Ele abre um estojo forrado de veludo contendo uma faca, um garfo e uma colher e mostra pro amigo. É uma relíquia. O detetive está meio desconcertado, não sabe direito o que fazer com aquilo. Sol serve uma colherada do cozido nos pratos, dá uma garfada e fecha os olhos tentando saborear a folha de alface murcha como se fosse uma iguaria.
— Há quanto tempo eu não comia isso!
— Eu nunca tinha comido - responde o detetive.
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Começam a pipocar resenhas sobre a bebida recém lançada.
No Washington Post, o jornalista diz que Soylent cumpre mais ou menos o papel de uma dieta enteral que é administrada por tubos inseridos pelo nariz de pacientes hospitalizados em estado grave. Mas que, assim como essas dietas, poderia funcionar. Jay Mirtallo, professor de farmácia da Universidade de Ohio consultado para a reportagem, acredita que é possível levar uma vida saudável só se alimentando disso. "Mas eu não sei porque alguém o faria. Tem tantos aspectos sociais da comida em tudo o que fazemos", ele diz.
No The Gawker, o produto é avaliado por diferentes pessoas na redação e as reações são variadas. Uma sente como se estivesse entrando numa espécie de culto; outro diz que beber Soylent é parecido com experimentar um pouco de massa de um bolo genérico que ainda não foi assado; já o seguinte diz que amou e não quer nunca mais comer. O redator não consegue desviar sua atenção de como a cor, opacidade e viscosidade da bebida se parece com sêmem humano. "Eu não estou tentando criar algo delicioso", diz o engenheiro inventor de Soylent. "A questão aqui é eficiência, custo e conveniência. Você não precisa cozinhar, não tem que limpar as louças".
No New York Times, o criador de Soylent sugere que talvez você não precise substituir todas as refeições, apenas as principais. O jornalista, que passou pela experiência de tomar Soylent em 90% das refeições por cerca de 2 semanas, diz que no início a bebida pareceu extremamente conveniente, como prometido. Tinha sido um alívio encontrar comida saudável pronta num dia de trabalho agitado. Mas esse sentimento desapareceu ao cabo de 10 dias. "Quanto mais eu usava, mais beber Soylent me parecia uma tarefa. Comecei a ansiar pela mecânica das refeições sólidas - mastigar, engolir, usar minhas mãos e talheres e experimentar outras texturas e temperaturas. (...) Acima de tudo, senti falta de variedade. As instruções de Soylent sugeriam adicionar manteiga de amendoim, frutas, extrato de baunilha ou outros aromas à bebida. Eu experimentei, mas ainda assim, Soylent tinha praticamente o mesmo gosto dia após dia", ele conta.
Na avaliação do jornalista, "desde a embalagem branca simples até o sabor propositadamente suave (…), tudo em Soylent grita funcionalidade, nunca diversão. Pode oferecer nutrição completa, mas apenas à custa dos prazeres estéticos e emocionais que muitos de nós almejamos na comida". Pra ele parece que um dos componentes mais amados em novas tecnologias foi deixado de lado: o deleite.
O inventor contrargumenta que na sua visão os haters de Soylent são uma espécie de ludistas: "A comida é um paraíso para os reacionários", escreveu ele. "No passado, a comida era sobrevivência. Mas agora podemos tentar criar algo ideal."
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Seguindo na pista do mistério macabro que envolve o assassinato, o detetive se esconde em um caminhão que transportava cadáveres de pessoas que já não tinham mais grande capacidade produtiva, e se entregavam ao suicídio voluntário num centro especializado, livrando assim o mundo superpovoado de mais um peso.
O caminhão entra então em um complexo fabril, que o detetive não consegue distinguir muito bem. Ele vai sorrateiramente acompanhando os corpos, que são despachados do caminhão e colocados numa esteira. Galpão após galpão, escondido, ele tenta descobrir onde está e o que acontece com os restos dos que se foram. No piso superior, já quase na rabeira das máquinas, ele é descoberto por guardas da fábrica que atiram, o que faz com que o detetive caia ferido sobre uma esteira cheia de quadradinhos de cor verde saindo quentinhas das máquinas.
Atordoado, ele começa a ligar os fatos.
— Os oceanos estão morrendo, os plânctons estão morrendo... É gente. SOYLENT GREEN É FEITO DE GENTE!!!
Soylent green é feito de gente, gente esmagada e moída, processada pra ser transformada e alimentar o processo civilizatório que estamos vivendo. Marcada por essa aspiração produtivista, não há nada que tenha sobrado que possa ser simplesmente prazeroso porque o prazer é uma frivolidade inútil. São as pessoas e suas vidas que alimentam essa máquina macabra de eficiência, enquanto acobertam a falência da própria humanidade. Elas devoram, mas também são devoradas sem se darem conta, sendo sustentadas por um horror que sequer são capazes de imaginar. Estamos finalmente caminhando para a concretização do sonho de uma vida ideal, em que nenhuma pessoa jamais poderá existir sem ser produtiva, já que sua própria carne pode ser otimizada para manter funcionando esse monte de vida desalentada, sem direito a muito mais do que apenas sobreviver.
O detetive, atordoado pelos tiros que levou, grita pra todo mundo ouvir o segredo de soylent no meio da multidão, enquanto é carregado por guardas. "Precisamos contar pras pessoas! É GENTE!".
Mas na mutidão, onde todos estão suados, famintos e sofrendo é difícil se importar. Ele é só mais um pobre diabo se debatendo; não sabe como se salvar, não sabe o que fazer além de gritar o segredo agora que ele sabe do que é feita essa civilização.
SOBREMESA
A gente trabalha demais, mas não precisa ser assim. Na Jacobin Brasil, um apanhado histórico sobre como chegamos nisso. Pra sairmos, não basta apenas organização social pra brigar por menos trabalho, mas também pensar numa educação menos orientada para a empregabilidade, que nos faça mais livres pra viver e sentir prazer com o tempo que poderíamos ganhar .
Esse texto da Fabrina Martinez te fisga no primeiro parágrafo. Enquanto ela procura no cotidiano o que deseja de fato fazer com seu tempo, vê a incomunicabilidade aparecendo como uma dor que não sabe curar.
3. No The Marginalian, Maria Popova explora a ideia de "brincadeira imersiva" (deep play), que aparece no livro de mesmo nome da poeta, ensaísta e naturalista Diane Ackerman. Para a autora, essa habilidade de brincar tem uma relação forte com a nossa criatividade, e ela resgata como ela está presente mesmo em atividades humanas banais, como na linguagem.
CAFEZINHO
Eu vou passar um cafezinho pra fazer aqui um comentário.
Agora em março completo 7 anos de OutraCozinha. Nesse intervalo, apesar de não ter outra atividade profissional remunerada regular, foram 5 anos sem receber nada, e sem acreditar que era possível ganhar pelo que eu fazia. Foram anos de muita angústia, tentando separar o meu valor do que eu era capaz de ganhar em forma de dinheiro, e duvidando que eu tivesse qualquer habilidade que pudesse ter valor pra alguém.
Esses dias topei com uma frase da Toni Cade Bambara citada no livro O Ativismo do Prazer, que dizia que "O papel do artista é tornar a revolução irresistível". Depois desses anos brigando comigo mesma pra tentar entender o que é mesmo que estou fazendo, tenho pensado parecido com o que a Toni pensava sobre seu próprio trabalho.
O que eu faço é um trabalho de encantamento. De encantamento por coisas simples e cotidianas, que frequentemente são negligenciadas nesse contexto de competição e penúria em que a gente vive. Eu às vezes escrevo receitas mas a rigor eu não quero ensinar nada. Eu estou ali tentando emprestar meus olhos para algumas coisas que eu estou enxergando - assim como muitos outros escritores e artistas me emprestam os seus.
Eu sei o quanto é difícil dar valor financeiro pras essas sensações abstratas que chegam até nós porque o encantamento é a antítese do que a gente imagina que seja trabalho.
Eu sentia (e sinto) uma enorme dificuldade de pedir esse retorno porque assim como eu questionava se eu tinha qualquer valor, também duvidava que outras pessoas fossem capazes de perceber no encantamento mais do que uma frivolidade inútil.
Nesses 2 anos que tive coragem de pedir pra ser remunerada, vi o quanto esse sistema também é frágil porque o artista está sempre à mercê de que o outro diga se o que ele faz é suficiente. E a arte tem sempre algo de muito íntimo da gente, então é difícil não sentir muitas vezes que insuficiente é quem está fazendo.
Não é segredo que no último ano muitos projetos digitais tiveram um encolhimento de receita - a situação em que o país se encontra é de calamidade, e embora a gente finalmente esteja vendo horizonte, a gente sabe também que tem um trabalho gigante a ser feito pela frente, que vai demorar a aparecer de modo mais generalizado.
Pra quem apoiou e continua apoiando minhas criações eu agradeço muito. Faz uma diferença enorme me sentir amparada - não só pela tranquilidade financeira, mas por ter alguém que também vem e me diz: ei, este é um TRABALHO válido que eu quero que seja feito.
Como escreveu a Maggie Nelson em On Freedom - e eu tenho tentado mentalizar essa frase como um mantra - "a ação revolucionária não é uma forma de auto sacrifício, uma dedicação cruel em fazer o que é necessário para se chegar a um futuro mundo livre. É a insistência desafiadora de agir como se assim já fossemos."
Então deixo aqui mais uma vez o meu pedido: se você também acredita num mundo em que esses trabalhos de encantamento tem valor, pense em apoiar financeiramente o que eu já faço.
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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As imagens desta edição são de ex-votos, figuras de madeira representando partes do corpo que são oferecidas às divindades em agradecimento de fé a uma cura milagrosa alcançada. As imagens são do acervo de cultura popular da Universidade Federal do Ceará e do Sesc.
Não pude deixar de me lembrar do projeto do ex-governador de SP, João Doria, que consistia em alimentar a população de baixa renda, assim como as crianças na merenda escolar, com o que ele chamou de "ração humana". Felizmente a grita geral deu certo e o projeto não vingou.
Carla, você se superou com essa edição. Vou guardar para reler. Bjos