Quando escrevi esta newsletter que você está recebendo, ainda em janeiro de 2021, eu tinha acabado de me mudar de volta pra Belo Horizonte. O tema casa estava mais do que nunca na minha cabeça, mas de lá pra cá pouca coisa mudou.
Contei recentemente nas redes sociais como o meu drama pessoal da mudança de cidade vem se alongando e se complexificando. Neste momento, meu marido está de volta ao interior do Paraná, tentando articular uma mudança para o interior de Minas.
Ele me envia fotos no whatsapp todos os dias, me mostrando esperanças, besouros, gatos, lagartixas, passarinhos, teiús e gambás. Ainda que ele esteja morando acampado na nossa antiga casa praticamente vazia - a mudança dele se resumiu a tudo o que coube dentro de um carro popular que andou os 1500km - ele me conta que tem sentido um certo alívio por estar lá.
Abrir logo cedo a varanda pra sentir a brisa fresca, tomar café da manhã no sol morno, estar num lugar silencioso, poder ver o céu e ter espaço pra poder abrir os braços. Enquanto ele me mostra o quanto está cercado de vida, eu sigo os dias me sentindo enclausurada num lugar em que não consigo nem ver o céu, e as noite em privação de sono por conta do barulho que não dá descanso. São coisas pequenas, então a gente tende a achar que tudo bem. Mas o acumulado dessas pequenas indignidades diárias, que a gente acha que não tem direito de sofrer justamente por causa do tamanho aparente delas, vai deixando tudo azedo.
Foi por isso que resolvi retomar esse texto: porque ele ainda continua muito presente pra mim. Ele tinha sido escrito exclusivamente para os apoiadores, mas queria muito compartilhar por aqui. Fiz uma boa edição, porque não tem nada que não possa ser melhorado com o tempo. Escolhi falar das dificuldades de se encontrar um espaço que vá além da sobrevivência nas cidades, e da importância do sonho.
Espero muito que você goste de morar uns minutinhos por aqui.
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Tem um adesivo colado na janela que fica entre a área de serviço e o quarto de empregada da minha casa em que está escrito "Eu adoro morar aqui".
Todos os dias de manhã, quando vou limpar as caixas de areia dos meus gatos que ficam nesse quarto, eu enxergo esse adesivo, que já estava ali antes que eu chegasse. Sinto uma vontade tremenda de arrancar todas as vezes. É um pouco pela ironia do lugar da casa onde ele está colado - um cômodo que provavelmente nunca serviu nem pra abrigar uma pessoa esticada confortavelmente pra dormir, e que agora está subutilizado como um depósito de aleatoriedades e banheiro de gatos.
O adesivo me incomoda pelo lugar onde ele está no apartamento, mas também porque estou detestando viver neste lugar. Tenho me sentido tão limitada, sem muitas opções do que fazer dentro de casa. Tenho pensado no quanto os cômodos são inespecíficos. São um amontoado de quadrados pequenos, distribuídos um ao lado do outro e em cima de outros no prédio, sem muita diferenciação, como um monte de carros Ford T pretos enfileirados na esteira de produção. Eu olho pra eles e fico pensando no quanto esses cômodos não comportam quase nada além de ficar olhando pra telas - a da TV, a do computador e a do celular.
Nós não construímos casas pensando em ter diferentes formas. E embora não haja nenhum impedimento tecnológico, é praticamente impossível encontrar tijolos arredondados. Os materiais de construção disponíveis são criados somente pra construir essas formas quadradas e os ângulos retos.
Mesmo quando estamos falando de casas e não de apartamentos, também é cada vez mais raro encontrar lugares que comportem hobbies e respiros como marcenaria, jardinagem, ou sei lá, astronomia amadora. Chega até a ser difícil imaginar que tipos de outras coisas poderíamos fazer numa casa.
A bem da verdade que mesmo pra coisas básicas de sobrevivência a maioria das casas têm deixado bastante a desejar. As áreas de serviço estão tendendo a desaparecer ou a serem um espaço imaginário conectado com a cozinha. Elas têm pouquíssima área pra deixar um simples balde no chão com alguma roupa de molho sem que isso impeça a passagem. Os quartos só cabem as camas e a abertura de uma porta milimetricamente calculada de um armário de dimensões enxutas. As cozinhas são quase sempre lugares sofríveis: não raro são pequenas, mal iluminadas, mal ventiladas, com bancadas insuficientes, armários que não comportam as peças necessárias pra um uso cotidiano. Em imóveis pra alugar, elas são quase sempre a pior parte, a que está mais desatualizada, sem cuidados, deslocada de todo o restante da casa.
Pode parecer que uma cozinha mais ou menos é só algo com que você tem que lidar. Mas ter uma cozinha mal ajambrada é muito desestruturante. É uma tarefa cotidiana, que a gente tem oportunidade de realizar várias vezes por dia, e por isso nesses casos vira um improviso constante. Um monte de gente adora falar sobre o prazer de cozinhar, mas pouquíssimas expõem como é difícil sentir todo esse entusiasmo num lugar que não te comporta.
A gente facilmente coloca a culpa de estarmos sempre cansados e indispostos pra cozinhar nas nossas rotinas massacrantes de trabalho, mas o espaço também influencia, embora a gente nem sempre se dê conta. Um espaço que não nos convida a passar um tempo em pé de maneira agradável, numa altura que não exija muito da coluna, e nem leve a fazer malabarismos pra dar conta das tarefas que precisam ser executadas, cansa muito menos.
Isso sem contar o quanto um espaço organizado também nos ajuda a nos sentirmos melhor. Uma cozinha com bancadas atoladas de objetos e utensílios é cansativa não só porque pra cozinhar você precisa ficar constantemente movendo coisas e procurando uma brecha onde dá pra trabalhar. O excesso também cansa as vistas. E sem janelas, não dá nem pra descansar elas um pouquinho ali fora.
Fico incomodada pensando como espaços maiores, áreas verdes, varandas, cozinhas iluminadas e arejadas, e que comportem a atividade de verdade, assim como toda sorte de coisas que tornam a vida dentro das grandes cidades menos estéreis na sua parte íntima, são um artigo de luxo, raro e cada vez menos disponível.
A pandemia deixou mais claro que nossas casas não são tão confortáveis, nem abraçam tantas possibilidades. Muitas pessoas, porém, precisavam permanecer muito tempo nesses espaços bem antes da pandemia. Pessoas com mobilidade reduzida, pessoas em regime de home office, mães com crianças recém-nascidas sempre ficaram mais tempo nesses ambientes e precisavam de outras possibilidades. A proporção de opções que contempla outras funcionalidades, no entanto, sempre foi muito pequena.
As nossas casas hoje na maioria das vezes são pensadas pra serem dormitórios, em que a gente deve se dirigir pra passar a noite na frente de uma tela à escolha, até dar a hora de tomar um banho e dormir pra trabalhar no dia seguinte. Por mais bem decoradas e aconchegantes que a gente tente torná-las, se a gente olhar pra estrutura bruta dos cômodos essa é a função básica de uma casa que a gente vai encontrar. É também por isso que foi tão desconfortável ter que permanecer tanto tempo nesses espaços na pandemia: porque eles não comportam que a gente crie muitos momentos de respiro nem quando a gente tem tempo pra isso.
Minha imaginação fica vagando nessa possibilidade longínqua de mudança nas construções, mas a razão pra ficar sonhando não é só pelo desconforto com a minha casa neste momento, que me faz desejar que as coisas sejam bem diferentes. Os espaços que construímos são um espelho daquilo que a gente entende que precisamos, mas o contrário talvez seja ainda mais importante. Os espaços também moldam a forma como a gente é capaz de imaginar e estruturar o mundo. As construções fazem a gente organizar mentalmente como as coisas podem ser.
Prato principal
Muita gente sente falta de colocar o pé na terra e de estar no meio do mato, mas experimente dormir desabrigado pra ver como esse mundo também é bruto e ameaçador. As construções são tentativas da gente alterar uma percepção de um mundo selvagem pra algo mais confortável e gentil. Mas elas também podem trazer dureza, separação, confinamento, e uma diversidade de sentimentos hostis.
As paredes são uma lembrança bastante sólida de como podemos nos sentir nessa relação com o mundo. É por isso, por exemplo, que uma casa sem paredes internas, em que a privacidade pras pessoas que vivem lá dentro está diminuída, pode fazer com que as pessoas tenham que aprender a ser mais aberto. Excesso de vidros e aberturas podem criar uma disposição de transparência. Lugares pequenos demais podem ensinar a nunca demandar espaço e a se contentar com pouco, ao mesmo tempo que também pode te conectar com a necessidade de ir pra fora, já que a sensação de confinamento pode ser intolerável.
Alterar esses detalhes construtivos, então, faz surgir diferentes disposições e disponibilidades. Eu fico me perguntando: como as nossas casas seriam se fossem um ponto de partida pra vida e não um tipo de caixa em que a gente se fecha dentro?
Esta é a pergunta que o filósofo Alain de Botton também se faz. Ele é muito conhecido por falar e escrever sobre filosofia de maneira bastante acessível, a partir de vivências cotidianas. No livro Arquitetura da Felicidade, ele parte de um olhar sobre as casas inglesas pra tentar entender como as construções à nossa volta influenciam o nosso estado de espírito. Esse livro, que infelizmente está esgotado, também tem uma versão em filme documentário, que pode ser assistido no site do autor. Nele, ele examina não só casas mas também os templos (que são “a casa de Deus”) e as embaixadas (que são a "casa" de um Estado dentro de outro). Tenta encontrar respostas que estão sendo dadas pra se pensar nos espaços não como um refúgio, mas incorporados ao mundo. Ele e seus entrevistados imaginam e mostram espaços que nos permitem cultivar um sentimento de estar mais acolhidos e presentes no mundo em que estamos vivendo agora.
Fazer essa pergunta significa que procurar por uma arquitetura que nos faça sentir mais confortáveis é o oposto de criar coisas de que sentimos falta. Colocar numa construção as coisas que de que estamos privados é só uma arquitetura pastiche: traz de um outro contexto elementos que gritam tudo o que aquele lugar não é, em vez de possibilitar que as paredes sussurrem amavelmente o que elas têm de mais gostoso.
Talvez por isso pareça legal mas também um pouco estranho - e muito pouco prático - essa moda instagramável de se criar uma floresta urbana no meio da sala. Por mais que o mundo natural nas cidades seja mesmo escasso e a gente queira ter um pouco mais de verde por perto e não saiba viver sem um vasinho de plantas, a ideia de uma floresta em um lugar fechado e isolado como a sala de um apartamento é uma cópia deslocada de uma coisa que não tem como existir naquele lugar fechado.
Não é imitando uma floresta, com sua exuberância e excesso, que você vai encontrar conforto na cidade. A floresta é uma lembrança permanente de algo que a cidade infelizmente nunca vai poder ser. É preciso pensar em como estar mais em contato com o espaço urbano de maneira confortável, com o que ele tem de melhor, e com o que pode ser melhorado, e não dar um jeito de fugir dele. É encontrar nas experiências a melhor parte de estar nelas, em vez de arranjar a melhor rota de escape enquanto continuamos mais ou menos por ali.
Os efeitos dessa mudança de postura são imensos. Quando nos tornamos capazes de reconhecer e valorizar o que tem de melhor nos lugares, também fica mais fácil decidir quando é preciso lutar pra mudar o entorno, ou escapar, se ele não oferecer aquilo que é fundamental mesmo pra nós.
Acho curiosa a proposta do Alain de Bottom porque é menos comum esperar que paredes e janelas reflitam a vida que desejamos e as coisas em que acreditamos. A gente está mais acostumado a pensar na decoração e nas miudezas de uma casa como uma expressão das nossas identidades. E como miudezas são muito mais acessíveis que uma nova esquadria na sala, é fácil cair na tentação de mudar mais constantemente esses objetos pra dizer do que a gente precisa agora.
As vezes penso que as casas em que vivemos têm tantas faltas porque é como se dependessem da nossa insatisfação difusa, pra que a gente possa ficar comprando objetos que mudem o ambiente. E não raro, a gente termina um pouco soterrado por essas possibilidades, muitas vezes tentando destralhar as casas das sucessivas decorações. É um sinal de que a coisa não funciona. As estruturas de onde moramos, com o perdão do trocadilho, são concretas demais.
Perceber quantas mudanças poderiam ser feitas nas nossas casas, que cada vez parecem mais estranguladas por cidades apinhadas que sofrem um monte com a especulação imobiliária, pode dar uma sensação de impotência, e que mudanças nessa esfera são só uma utopia boba. Mas as coisas com as quais a gente sonha, mesmo que agora não sejam acessíveis, ficam ali guardadas e vão transformando devagarinho, as vezes ao longo de gerações, o mundo que a gente vive.
Embora não ache que essa seja a função da ficção porque sei lá pra que ela serve, e deus me livre de ficar fissurada em função, a ficção ajuda a gente a imaginar mundos. Eu fico reparando em quanta literatura distópica foi criada no início do século XX, e agora vários desses elementos que nos davam pavor se transformaram na nossa realidade. Mundos em que somos vigiados por telas, mundos em que uma teocracia cristã é o que nos governa, mundos em que não tem mais mundo. É importante se lembrar dos pesadelos, mas também é preciso sonhar. Como o pensador indígena Ailton Krenak escreveu, se estivermos caindo é melhor usar essa sensação pra construir um paraquedas coloridos e aproveitarmos a viagem.
O sonho é isso. Mesmo que as janelas de onde estou sejam pequenas e o horizonte curto, não ter medo de olhar pra fora é melhor do que acreditar que é preciso simplesmente fazer as pazes com o adesivo que diz que “eu adoro morar aqui”. Imaginar o lugar em que você adoraria viver é tornar possível que ele exista. Primeiro, no pensamento; depois, ninguém sabe.
Sobremesa
Nessa edição da newsletter Cabelo Nuvem, a quadrinista Janaína Esmeraldo retrata como são indispensáveis, porém frágeis, os pequenos respiros possíveis dentro das nossas casas na pandemia. E relembra uma mudança de cidade que fez, que teve ares agridoces. Sempre há o que se pode amar em qualquer lugar que moramos.
A jornalista Gaia Passareli entrevistou a urbanista Raquel Rolnik para o Paulicéia. Ela fala sobre o livro O Planejamento da Desigualdade, obra que publicou 20 anos atrás mas que foi relançada em 2022 pela editora Fósforo, com um prefácio escrito pelo rapper Emicida. Diante de tantas pessoas sem conseguir ter mais o direito à moradia, ela nos lembra de que “o espaço tornou-se inacessível para a vida porque ele foi destinado para a renda”.
No instagram, ainda no ano passado, fiz um post contando um causo de um dos apartamentos que visitei tentando me mudar. “Desejar viver com mais espaço não é errado. Idolatrar uma falsa simplicidade em vez de se dar conta das nossas necessidades é que não nos ajuda a ver os problemas, nem a mudar a nossa realidade.”
O deboche de que o paulistano só pode ser doido por ver beleza no meio daquele monte de concreto foi uma daquelas polêmicas que ocupam o tuiter por um interminável dia. Mas a partir disso a Aline Valek fez com muita graça o exercício de encontrar o que ela consegue ver de melhor no maior formigueiro da América Latina: “É uma paisagem feita de gente, circulando e habitando cada um desses espaços, mesmo que a gente não veja. Gente por trás das paredes, andando entre as árvores, dentro dos helicópteros, passando por túneis, andando pelo subsolo, fumando nas janelas. Para onde quer que você olhe: gente.”
Este ano quero voltar com a produção dessa newsletter gratuita mais frequentemente, mas com textos um pouco mais curtinhos do que esse. E agora, sempre acompanhado da possibilidade de você poder me ouvir lendo o texto enquanto lava a louça, que tá lá na abertura dessa cartinha (você reparou?). Me conta depois o que você achou dessa novidade <3
Não esqueça de compartilhar por aí se essa edição tiver conversado com você. Espero que a gente possa se fazer mais companhia.
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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As imagens dessa newsletter são sketches arquitetônicos de edificações feitos em guardanapos por arquitetos famosos. Foram retirados do site Archdaily
Eu adoro morar aqui