Se eu insisto em algumas vezes publicar coisas práticas sobre fazer comida é porque esse fazer, do qual eu não consigo escapar na minha vida e também não tenho certeza se eu gostaria, me leva a esbarrar em um monte de questões que de outra forma seriam só abstrações.
A forma como eu me aproximo desse fazer, no entanto, nunca acho que é corriqueira. Pra mim ela se parece muito com o jeito que eu escrevo. Eu tenho um fascínio por esmiuçar e entender os processos, de uma forma detalhada e que me permita construir alguma coisa própria, que vá além de só fazer o que precisa ser feito. Não é uma coincidência que tanto na escrita quanto na cozinha eu use essa minha curiosidade pra tentar construir um pouco do que me parece autonomia. No fundo é isso o que me interessa criar.
Resolvi trazer pra newsletter hoje o que geralmente só publico no blog: um post que traz uma explicação mais técnica (e que não é exatamente uma receita) sobre fazer uma comida. Esses meus posts, no entanto, tem sempre uma singularidade: o esmiuçar dos processos que não é comum de se encontrar numa receita (muito menos num vídeo de 1 minuto); a não convencionalidade dos ingredientes, que tornam raras as ocasiões em que a gente encontra explicações com esse tipo de detalhamento; e o cuidado com a forma com que eu escrevo, revelando contextos, relações e mantendo um certo estusiasmo com a coisa, e não só com a parte dura da técnica.
Esses posts me exigem um investimento grande em testagem, fotografia e pesquisa. Eu diria que estou escrevendo este tem pelo menos 1 ano. Isso acontece porque eu não quero registrar um monte de informações frias, mas sim aqueles detalhes singulares que tornam um texto generoso e que só quem já repetiu muitas vezes um processo é capaz de contar. O resultado, eu gosto de pensar, são elogios que eu faço sobre a prática, que tem o seu lugar.
Trouxe pra cá a carne de caju. Muito além de sucos e da fruta fresca, comecei a usar os cajus para produzir pratos salgados usando essa carne, macia como foi cantada pelo Alceu Valença (que na verdade não falava de cajus).
Reuni aqui 4 diferentes técnicas pra prepará-la, que podem ser usadas em inúmeras receitas. Enquanto algumas técnicas têm um rendimento muito baixo e exigem acesso a um número muito grande de frutas para ser executada, outras são possíveis de serem feitas com apenas 1 ou 2 cajus. Assim, dá pra satisfazer a curiosidade de quem mora em lugares onde caju é raridade, mas também ampliar o repertório de quem tem espaço pra inventar o que fazer com tanta fartura da fruta.
Prato principal
Uma coisa que me deixa feliz é perceber como as pessoas que conversam comigo mais frequentemente nas redes sociais ultimamente tem vindo de outros cantos. Tendo a ver com bons olhos esse acontecimento porque significa que o que meu repertório continua crescendo conforme vou experimentando novos lugares, e eu estou escrevendo sobre ingredientes que dizem respeito a elas. E eu não acho que isso seja simples de fazer.
A gente fala com facilidade que comida é cultura, mas há um abismo entre falar e reconhecer de verdade as implicações disso - como a de que essa relação é construída por hábitos que vão muito além da nossa mera vontade.
É por isso que é tão difícil mudar a seleção de pratos que se gostam e se repetem. Eles são parte de um repertório cultural que acontece independentemente de um reconhecimento racional de coisas abstratas - como o globalismo alimentar, o colonialismo, a falta de tempo ou o sistema econômico - que nós sabemos que afetam as nossas escolhas. É preciso mais do que esse conhecimento, e acredito que falar sobre coisas concretas muitas vezes é o que ajuda a pavimentar esses caminhos de mudança.
A carne de caju é consumida há muito tempo no nordeste e eventualmente também no norte, embora a centralidade da carne animal na nossa cultura alimentar não a torne exatamente um prato tão popular. Foi aliás conversando com uma feirante depois de comprar uma quantidade indecente de caju, e de contar pra ela dos meus planos e perceber que ela nunca tinha ouvido falar da tal carne foi que decidi que valia a pena registrar o que eu tinha aprendido.
Se a carne de caju é novidade pra você, assim como era pra mim algum tempo atrás, é bom dar uma ideia do que se trata. A real é que a carne de caju não lembra tanto o gosto da fruta porque ela é a fibra depois de se extrair o suco. Isso significa que a fruta perde a adstringência e boa parte do doce, já que essas características acabam ficando no sumo. Mas ela fica ainda com a fragância característica, o que a meu ver é a melhor parte da fruta.
A comparação com a carne de jaca verde é boa, embora eu não ache que o gosto da carne de caju fique tão neutra quanto a de jaca, justamente porque ela mantém o perfume. Ela também me parece mais versátil do que a carne de jaca. Além do desfiado, algumas técnicas mantém um pouco mais da suculência e do sabor, o que não acontece com a jaca verde. Mas é razoável a analogia se você quiser criar uma certa expectativa do que pode encontrar.
Independentemente da técnica usada, pra mim a carne de caju tem um sabor que lembra frutos do mar, e vai muito bem com temperos como coentro, alho, cominho, páprica, tucupi, shoyu, limão, alga nori. Nenhum desses temperos é uma prescrição, mas saber disso ajuda também a imaginar qual é a pegada.
Outra coisa importante é entender que o preço salgado e a raridade do caju em alguns pedaços do Brasil acontecem por duas razões curiosas: a primeira é que o cajueiro é uma planta que não tolera frio nem geadas, e por isso caju não se dá bem no sul e sudeste brasileiro - à exceção de parte do Espírito Santo e do norte de Minas, que têm um clima semelhante ao do nordeste. Tudo o que é vendido nessa parte do Brasil vem necessariamente de outros lugares mais ao norte.
A segunda razão é que caju é uma fruta não climatérica. Isso significa que se forem colhidos verdes os cajus não amadurecem - o amadurecimento acontece somente no pé. O problema disso é que só podendo ser colhido maduro, a durabilidade deles é muito curta. A vida útil dos cajus frescos em temperatura ambiente (sem refrigeração) não ultrapassa 48 horas.
Por todas essas características, dá pra entender que cajus são frutas muito delicadas e perecíveis, e por isso transportar cajus é caro. As caixas que acondicionam os cajus costumam ter espumas; os caminhões precisam ser refrigerados. Tudo isso resulta numa bandejinha com poucos cajus de preço alto onde ele não é produzido. Eu sei que a gente tá muito acostumado com encontrar de tudo em todos os lugares, mas isso tem um custo. As vezes ele é invisível porque subsidiado ou do interesse de alguém, mas em outras situações o preço sai bem caro, e faz mesmo algum sentido que seja assim.
Foi pensando nessas diferenças regionais que eu resolvi compilar técnicas diferentes, que tem usos e resultados distintos, mas que servem a essa diversidade de contextos que existem no país. Em cada uma delas eu detalhei não só como fazer, mas a dificuldade, as possibilidades de receitas, o que esperar em termos de sabor, textura e rendimento. O importante é que a partir delas você se sinta confiante pra imaginar, experimentar ou quem sabe só aumentar o seu repertório também.
1. O corte para grelhar
Esta é a técnica mais simples de todas, e em que com um único caju já é possível experimentar.
Ela consiste em simplesmente partir o caju - ao meio ou melhor ainda, como se você estivesse “desenrolando” a fruta, pra que ela fique um folha extensa - e marinar. O que vai extrair o suco vai ser justamente deixar a fruta descansando no sal, e também o calor da grelha. A consistência que resulta é suculenta e lembra a de um cogumelo eringy, e o gosto, de todas as possibilidades que estou listando aqui, é agridoce e perfumado, a técnica em que mais vai permanecer o sabor da fruta.
Use uma frigideira antiaderente ou uma grelha de ferro fundido. Deixe os cajus selarem na grelha e tostarem antes de virar. Prense um pouco de cada um dos lados para deixar com os tostadinhos bonitos. Aproveite o suco da marinada e o que se desprende enquanto você grelha pra formar um pequeno molho espesso. Ou experimente começar refogando cebolas também marinadas pra um bife de caju acebolado.
Uma advertência: assim como se você estivesse passando um bife de carne, o bife de caju, com seu aroma característico, pode deixar a casa com um cheiro bem intenso. Mas é indiscutivelmente uma técnica acessível para quem tem poucos cajus e muita vontade de experimentar.
Uso: grelhados do tipo "bife"
Rendimento: alto (1 ou 2 cajus por pessoa são suficientes)
Uma sugestão de receita: Experimente os bifes de caju acebolados temperados com tucupi
2.Espremer até sair
Essa técnica também não apresenta dificuldades, embora tenha uma etapa preliminar maior e exija um número de cajus mais substancial: pelo menos 3 cajus por pessoa.
Ela consiste em espremer cada um dos cajus com as mãos para retirar o sumo, e usar a fibra que sobrou para preparar um prato - isso que sobra é a carne. Dá pra ver perfeitamente no processo como o caju tem uma textura de esponjinha. O gosto da fruta permance um pouco, embora o doce e aquela sensação de que o caju amarra na boca abram espaço pros temperos e pra maciez que aparece depois de cozidos.
Pra fazer, retire as castanhas de cada caju e lave as frutas. Esprema cada um deles com as mãos, como na foto. Pode ser interessante antes de espremer fazer de 4 a 5 cortes longitudinais na pele do caju com uma faca, ou usar os próprios dedos afundando na casca enquanto espreme, pro suco ter por onde escorrer. Não fazer isso significa correr o risco de que os cajus esguichem longe, e acredite, isso é fácil de acontecer. Mas esprema sem dó: deixe que os cajus fiquem bem sequinhos, com formato semelhante ao de um bolinho amassado.
Como na técnica de cortar, aqui também é aconselhável fazer uma marinada antes de levar ao fogo. No cozimento o caju naturalmente absorve parte dos líquidos do tempero, ganha uma coloração mais amarelada, e termina com um formato mais bonito inchadinho. É uma excelente opção também para grelhar com ou sem o acompanhamento de outros vegetais, para acrescentar em guisados e cozidos, ou quem sabe variar aquela moqueca de banana da terra.
Bônus: O suco espremido que sobra é simplesmente o melhor suco de caju que você poderia tomar. Purinho purinho, cristalino e pouco travoso, não é preciso acrescentar nada para degustar.
Uso: moquecas, guisados e cozidos em geral; grelhados.
Rendimento: médio (3 cajus por pessoa é uma boa medida)
Uma sugestão de receita: Experimente uma deliciosa Moqueca de caju
3. Se espremer e salgar dá para desfiar
Essa técnica é a mais trabalhosa das que estou apresentando aqui, mas tem uma textura ímpar e um sabor mais amigável até pra quem não é tão afeito à fruta. Precisa, no entanto, de um número mais elevado de cajus pra se fazer um prato.
De início se parece muito com a técnica anterior, de espremer as frutas. Comece fazendo como ela: retire a castanha, lave as frutas, e esprema com as mãos. Neste caso, porém, acho mandatório fazer os 4 a 5 cortes longitudinais na fruta antes de espremer, não só por uma questão de aparência, mas porque eles serão importantes para a etapa seguinte da salga.
Com os cajus espremidos, é hora de salgar: vá abrindo esses cortes e passe com os dedos sujos de sal por toda a superfície exposta da fruta. Acondicione todas elas sobre uma peneira ou escorredor, com uma vasilha embaixo para recolher o sumo que porventura os cajus ainda soltem.
Deixe coberto por um pano de prato dentro da geladeira por 24 horas. Eu aconselho a só cobrir mesmo com um pano sem tampar porque na geladeira o ar que circula é seco, e isso também ajuda a desidratar os cajus, o que é importante pra se conseguir um bom desfiado.
No dia seguinte basta desfiar os cajus com as mãos minuciosamente. As cascas da fruta tendem a soltar depois desse tempo, e tem uma textura levemente diferente do resto, que não desfia tão bem. Mas não é preciso descartá-las se não quiser, elas ficam macias e não interferem na textura do prato. O desfiado tem a vantagem de já sair salgado, o que ajuda também na conservação por alguns dias na geladeira - mas fique atento a esse detalhe na hora de temperar pra cozinhar.
Com o desfiado dá pra criar recheios para sanduíches, ou quem sabe fazer um salpicão, mas fiquei apaixonada mesmo foi com o empadão.
Desafio: Desfiar demanda tempo e paciência. Coloque uma música, faça sem pressa, isso é prato de domingo. Mas compensa, o resultado é incrível e congela muito bem.
Uso: recheio de tortas, salgados, sanduíches e preparo de saladas
Rendimento: médio (1,5kg de cajus (aproximadamente 18 frutas) rendem cerca de 500g de desfiado de caju)
Sugestão de receita: Experimente fazer um empadão com massa podre. Você pode usar esta receita (que está super bem detalhada) como base, trocando o frango por carne de caju (e adaptando os temperos com as sugestões que dei no início do texto)
4. Triturado é mais gostoso
Essa é a técnica com menor rendimento, mas é mais fácil do que o desfiado. O gosto da carne é ligeiramente mais neutro que os anteriores, e é especialmente interessante pra quem gosta de suco de caju fresquinho porque sobra demais.
Aprendi essa técnica com um folheto da Embrapa que ensinava produtores de castanha a aproveitar a fruta produzindo algo de valor. Mas no folheto as quantidades eram adaptadas a essa realidade, de modo que falavam em fornadas com no mínimo 10kg de fruta, e tive que ir recalibrando pro meu espaço doméstico.
A técnica parte de se fazer o suco de caju do jeito tradicional: colocando as frutas partidas no meio no liquidificador e adicionando água para bater. Em seguida, passa-se esse batido por um pano de algodão do tipo pano de prato ou voil, como você faria com qualquer leite vegetal.
Aqui é importante espremer bem, que isso é indispensável pra se conseguir depois uma modelagem que não desmanche.
A carne é o que fica retido nesse pano, que agora já está pronto para ser temperado. O rendimento dela, você pode imaginar, é baixíssimo, porque basicamente o que você produz mesmo é suco. 1,5kg de cajus conseguem produzir pelo menos 2 litros de suco - a depender do seu gosto, é claro -, e apenas uns 200g de carne de caju triturada.
O triturado é perfeito para se fazer burgueres e almondêgas vegetais com a adição de pouquíssima farinha - que pode ser de trigo ou de outros cereais e tubérculos, como a fécula de mandioca. Também pode ser congelado assim puro, sem a adição dos temperos, caso você queira ir juntando um volume de resíduo de caju até que tenha o suficiente para produzir uma receita. Um macarrão com almôndegas de caju é simplesmente um prato pra ninguém botar defeito, e por isso fiz questão de compartilhar no blog.
Prêmio: O rendimento dessa técnica é bem baixo, mas isso significa que sobra muito suco, e também castanhas. Colecione para depois queimar numa fogueira e torrar suas próprias castanhas de caju, mas tome cuidado porque esse é todo um outro aprendizado.
Uso: hamburgueres e almôndegas
Rendimento: baixo (1.5kg de caju rendem 250g de almondegas ou hamburgueres - junto com pelo menos 2l de suco de caju)
Sugestão de receita: Experimente a minha receita de almôndegas de caju, publicada no blog.
Sobremesa
A newsletter da Monica Heringer do Santo Legume é uma que toda vez que chega eu faço questão de ler. Nesta última amei que além de fermentados ela também escreveu sobre remendos e costura, e a beleza da imperfeição. Uma vez vi um amigo querido contando que entre o texto e o têxtil existe uma série de semelhanças que não estão só na coincidência das palavras, e eu adorei ficar brincando mentalmente com essa contiguidade.
Se ainda estiver sobrando fôlego pra ouvir histórias sobre caju, dê uma chance ao episódio Do caju provamos o conhecimento, do podcast Bobagens Imperdíveis da
. O roteiro muito bem cuidado e com uma pesquisa ímpar, marca de tudo que a Aline faz, traz a fruta como um objeto cultural. Pra quem não é de podcast, o link traz também a transcrição do episódio - que é realmente imperdível, não é propaganda enganosa não.O escritor
- que aliás tem uma ótima newsletter sobre narrativas - compartilhou esse vídeo no notes do Substack de um fotógrafo que construiu um lago para fotografar pássaros e se impressionou com toda a vida que foi sendo atraída em volta dele. Vou te contar que eu não esperava mas chorei assistindo, e reabasteci minha crença de que quando a gente alimenta as coisas em volta a própria vida trata de existir de um jeito diferente.
Eu espero que nesse meu cantinho, assim como a vidinha que se formou em volta do lago, você tenha encontrado alguma coisa que te alimente pra fazer da vida um lugar com outro cuidado.
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
Me encontre também no
P.S.: Este post também está publicado no meu site, caso ache mais fácil de eventualmente voltar a ele.
Todas as fotos desta edição são do meu arquivo pessoal, observando os pés de caju na chácara; outras fiz especialmente para registrar os vários processos que experimentei e repeti ao longo do ano.
Eu amo muito trocar a banana da terra pelo caju na moqueca, mas agora já quero provar todas essas variações! ❤
Que delícia (literalmente) de texto ❤️