Entre algumas manhãs sossegadas na praia e tardes de perambulação pela cidade de Salvador, eu não podia perder a oportunidade de adquirir uma iguaria local pra trazer pra casa: uma garrafa de azeite de dendê. Orientada por amigas soteropolitanas queridas que o finado tuiter me deu, fui visitar a famosa Feira de São Joaquim, que fica no bairro Água de Meninos, de frente pra uma zona portuária, pra poder encontrar essa delícia.
Apesar de até fazer um uso bem acima da média de dendê pra uma não baiana - eu particularmente faço bastante moquecas de sabores variados, como banana da terra, maxixe, e de caju, e adoro fazer uma variação vegetariana do feijão tropeiro mineiro usando dendê na base e coentro na finalização -, a verdade é que antes dessa oportunidade, todas as vezes que comprei azeite de dendê foram muito circunstanciais, sem poder escolher. Já adquiri alguma garrafa no mercado central de BH, onde se acha uma ou outra casa que vende, ou trouxe de uma feira no norte do Espírito Santo, da cidade onde passava as férias na minha adolescência, e que eu sabia que existia uma única barraca com poucas garrafas e uma ótima farinha.
Dessa vez, diante da fartura e variedade que eu encontrei onde o azeite de dendê é tradição, pela primeira vez me veio a pergunta do que é que eu deveria procurar numa garrafa. Eu tentei então entender, e resolvi sistematizar alguns desses conhecimentos que acabei encontrando. Pode ser útil numa próxima viagem que você fizer à Bahia, mas também pra se pensar sobre como o que se fala de um ingrediente importa.
Dois nomes
A coisa mais irritante quando você começa a tentar encontrar informações sobre azeite de dendê é a indiferenciação que existe entre ele e o óleo de palma.
A rigor, os dois nomes são sinônimos, um produto feito da mesma planta: o dendezeiro, uma palmeira de origem africana, que também é conhecida como palma-da-guiné. Daí vem o nome internacional de óleo de palma (palm oil) para o óleo que ela produz.
Essa planta foi trazida pra cá pelos escravizados, mas o cultivo comercial mesmo só foi estabelecido após a abolição da escravatura. Com o declínio da cultura da cana, que deixou largas áreas de mata atlântica devassadas, e com as condições precárias em que essa população foi abandonada após a abolição, a produção do dendê emergiu dentro das comunidades empobrecidas de quilombolas da região do Recôncavo e da faixa litorânea do sudeste baiano como uma opção de sustento. Essa cultura se tornou tão importante a ponto dessa região ser conhecida hoje como Costa do dendê.
O óleo de palma, no entanto, é hoje surpreendentemente o óleo mais usado no mundo inteiro. Mas isso não quer dizer que o mundo inteiro está produzindo comidas com um gosto "abaianado", por assim dizer, e sim que a indústria está usando em massa uma variação processada do óleo dessa planta.
Essa versão refinada é muito valorizada por duas razões. A primeira é o que o processo de refinamento produz um óleo bastante neutro - sem odor, sem sabor e sem cor -, o que o torna bastante versátil pra ser usado numa diversidade de preparos. E a segunda razão, que é ainda mais valiosa que a anterior, é que o óleo de palma é muito rico em gorduras saturadas, o que o torna bastante estável. Por causa dessa composição ele demora a rançar, e aguenta um longo tempo nas prateleiras. Além disso, essa quantidade de gorduras saturadas deixa nos alimentos uma textura crocante e sequinha que é muito singular - quem já comeu um bom acarajé, que é tradicionalmente frito no azeite de dendê, conhece bem.
Por causa dessas características, o óleo de palma passou a ser muito usado na composição de ultraprocessados em substituição às gorduras trans, que têm propriedades sensoriais semelhantes, mas ganharam má-fama à partir da década de 90 por conta da dificuldade de metabolização no nosso organismo, entre outras questões de saúde.
Mas como você pode imaginar, o óleo de palma refinado da indústria é muito diferente do azeite de dendê não refinado do qual eu estou falando, de cheiro frutado, sabor quente e adocicado, e cor alaranjada intensa. E eu nem estou trazendo pra essa conversa o produto artesanal, o azeite de dendê de pilão, que a despeito da enorme produção mundial de dendê está na lista de comidas ameaçadas de desaparecimento feita pela comunidade Slow Food Brasil, dada a sua raridade. Ele já entraria numa outra seara e mereceria toda uma discussão à parte.
O jornal Correio 24h, por exemplo, noticiou em 2020 que a Bahia não é mais o maior produtor de dendê do Brasil - esse título hoje pertence ao Pará. Mas isso não significa que é mais fácil encontrar azeite de dendê no Pará, porque o que o Pará produz na sua imensa maioria é o óleo de palma refinado, usado pela indústria alimentícia, de cosméticos e biocombustíveis, e não o azeite de dendê avermelhado e cheiroso que a gente usa de fato tradicionalmente na culinária afro-brasileira.
Parece menor querer disputar uma questão de nomes e palavras quando a questão parece tão mais de outro campo, mas existem consequências importantes que refletem nessa diferenciação. Quando se marca que estamos falando de duas coisas muito diferentes, deixa, por exemplo, de fazer sentido o debate se o dendê é de fato saudável, pois na verdade é sobre o óleo de palma refinado que grande parte dessa conversa deveria estar sendo feita.
Outra consequência imediata dessa diferenciação é que cai também toda essa discussão da sustentabilidade do consumo do dendê - essa questão é obviamente da indústria alimentícia, e da produção e consumo massivo de óleo de palma refinado.
Acho importante também lembrar que "entre os iorubás, a preparação de todo trabalho mágico deve ser acompanhada de encantações (ofó) com o nome das plantas, que se não forem pronunciados perdem seu efeito", conta o professor Pierre Fatumbi Verger, no livro Ewé. É falando os nomes certos - e não apenas escrevendo, pois numa cultura marcada pela oralidade é preciso fazer uso do conhecimento através da palavra falada - que o axé das coisas é transmitido. Então, falemos.
O que sai da boca da garrafa
O azeite de dendê tem duas partes, e a sua não homogeneidade não é um defeito. Ele tem uma parte mais sólida e de cor mais amarelada, que recebe o nome de bambá; e uma fase mais líquida, que fica no topo e tem um tom vermelho alaranjado, que é conhecido como flor de dendê.
Se você quiser azeite de dendê para fritar alguma coisa - como acarajé - o melhor é comprar garrafas que tenham mais flor de dendê. Essa parte líquida tem menos gordura saturada, o que significa que o óleo vai demorar mais a "queimar" em altas temperaturas contínuas como as atingindas na fritura de imersão, deixando a fritura com melhor qualidade. Garrafas que tem um bom volume da parte sólida, o bambá, são as melhores para se fazer moquecas, farofas, carurus e outros pratos. O bambá tem uma cremosidade tão interessante que numa moqueca é suficiente pra deixar o molho naquela consistência desejada, e dispensa completamente essa quantidade absurda de espessantes que vem numa garrafinha industrial de leite de coco - que aliás, descaracterizam completamente também o leite.
Se o dendê que você for comprar estiver com um tom mais próximo do marrom, dispense. É sinal de que o óleo pode estar envelhecido e rançoso.
Saber fazer
Entre o processo industrial de refino que descaracteriza o azeite de dendê, e a produção artesanal do dendê de pilão, existem algumas outras possibilidades de produção. É difícil realmente saber enquanto a gente está comprando de que modo esses azeites foram produzidos, mas acho interessante saber que existem diferenças.
O rodão - uma peça grande de alvenaria em pedra, com uma pista escavada no centro por onde desliza uma roda, que vai passando por cima e triturando a polpa dos coquinhos -, é um equipamento rústico que permite uma semi industrialização do processo. Cerca de 70% do azeite produzido na Bahia faz uso dessa técnica, que pode ser movimentada fazendo uso de tração animal ou mecanizada.
E não é o caso da gente simplesmente fetichizar a artesania do pilão, porque mesmo esse processo semi industrial tem qualidades que merecem proteção. Mas a verdade é que ambos - o artesanal e o semi industrial - carecem também de investimentos e melhor estruturação. A geógrafa Ariane Teixeira conta na sua dissertação de mestrado que a mão de obra dos rodões está envelhecida, e por ser uma atividade muito mal remunerada e com uma produção bem mais lenta, quem tem qualquer outra oportunidade acaba saindo desse caminho. É por isso mesmo que, apesar de ser o óleo mais produzido no mundo, a produção na Bahia está em declínio. A dissertação, aliás, é uma proposta de denominação de origem do azeite de dendê, pra garantir algumas características e também preservar e valorizar esse saber-fazer cultural, que corre o risco de ser perdido.
O restante da produção é industrial, feito por empresas de médio e grande porte, que possuem grandes áreas de cultivo, e tambem compram a produção extrativistas de pequenos agricultores. Envolta com uma frequência assustadoramente mais alta em problemas de adulterações com óleo de soja do que os outros métodos de produçao, é principalmente o óleo produzido por essas empresas que chega a outros estados, vendido pra outras empresas menores e distribuidoras.
Um pedaço da história na boca
Durante um almoço em que eu comia mandioca cozida, fiquei pensando no quanto a gente tem coisas tão únicas. A Indonésia e a Malásia, que tem condições tropicais como as nossas, até produz mandioca e dendê, mas não consome nem mandioca cozida como a que eu estava comendo, nem o azeite de dendê.
Esse tipo de azeite de dendê não refinado só existe em dois lugares do mundo: no Brasil e em alguns países da costa oeste da África, como Ghana, Nigéria e Guiné. Claro que a Indonésia e a Malásia têm outras culturas únicas, mas eu não deixo de ficar muito assombrada de como o uso que a gente faz das coisas depende não exatamente do que tem plantado nos lugares, mas do que nós pessoalmente cultivamos: as histórias que contamos sobre esses alimentos.
Nós temos uma relação muito longa com essas plantas. E embora essa história continue a ser contada, especialmente pelas ruas de Salvador - o acarajé é a comida de rua mais numerosa pela cidade, e é patrimônio cultural reconhecido - essas histórias estão sempre sob risco de sofrerem uma grande guinada.
Um tempo atrás encontrei um vídeo bizarro de um famoso programa estadunidense que é o precussor de várias dessas modas de superalimentos, que nunca tem a ver de fato com nenhum superpoder vegetal, e sim com algum superpoder econômico. Algumas das histórias mirabolantes de como essas modas foram criadas - como a da chia - são contadas no livro The Tastemakers, que eu já mencionei vez ou outra em alguma rede social. Esse vídeo bizarro, pasmem, era sobre o nosso azeite de dendê. A recomendação: comer duas colheres de sopa por dia, que supostamente poderia salvar todos nós do envelhecimento, das calorias e se bobear até da morte.
O vídeo é de 2013, o que significa que a moda não pegou - ainda. Mas uma rápida jogada no google do termo "red palm oil buy" (compra de óleo de palma vermelho, o termo em inglês para esse óleo não refinado) pode te dar uma ideia do tipo de inferno que é possível se abrir. Várias empresas já estão à postos esperando essa grande onda - porque afinal, não está faltando produção de óleo de palma no mundo, nem investidores dispostos a nos convencer da próxima panacéia que vai curar todos os males a um preço módico. Mas é importante reparar que essa moda aí, apenas esperando o vento certo soprar, também não tem nada a ver com o nosso azeite de dendê. Não só por causa da forma de produção, que não envolve nada do que eu contei aqui, mas porque tudo nele é higienizado, limpo da história, da cultura negra, e até do sabor. "Nosso sistema especial de filtragem elimina sabores intensos encontrados em óleos de palma não filtrados, gerando um óleo culinário premium ideal para sopas, refogados e molhos de salada", conta a página de uma das empresas.
Essa é uma pequena amostra do quanto nossas histórias são frágeis e estão sempre a mercê de serem recontadas clandestinamente, a serviço de sabe-se lá qual bolso.
Uma das coisas que me deixou mais pensativa em Salvador foi uma visita ao Museu Afro-Brasileiro no Pelourinho, mantido pela UFBA. Foi a primeira vez que eu vi um museu contar a história da diáspora negra no Brasil sem ser pelo viés do sofrimento. Lá não estavam sendo exibidos instrumentos históricos de tortura, nem imagens que remetiam à escravidão, mas artefatos metálicos e cerâmicos que simbolizavam ou pertenceram à realezas africanas; instrumentos de guerra e artísticos de povos e etnias que pra cá vieram; e um conjunto de painéis em madeira e outros materiais com detalhes ímpar, feitos pelo artista plástico Carybé, que representam as divindidades e orixás cultuados por esses povos. É um jeito muito diferente de mostrar o povo negro, sem ser pelo olhar da piedade, da revitimização ou da expiação. É marcar que antes de tudo eles são povo; tem arte, cultura, reis e divindades, muito antes que essa história fosse atravessada por outros povos.
Nós podemos escolher contar as coisas de uma outra forma. A história da escravidão negra é sem dúvida importante, e precisa ser lembrada pra que possa ser reparada, mas há outras coisas que também precisamos contar. A história do azeite de dendê, que como dá pra ver, ainda está em séria disputa e continua sendo escrita, coloca um pedaço dessas outras possibilidades de histórias na nossa boca. É bom que a gente enfie a cara nessa oportunidade, antes que outras pessoas se atrevam a falar coisas que não queremos ouvir. Porque afinal, nessa cultura tão marcada pela oralidade, para que possam agir, as palavras não podem apenas ser vistas. Elas precisam de fato de serem saboreadas.
Sobremesa
35 caminhos que percorri e desviei, a Luísa Golçalves escreve uma crônica às beiras do seu aniversário de 35 anos sobre as várias histórias possíveis do que ela poderia ter sido, enquanto imagina também as histórias que ainda são possíveis de serem contadas.
Notícias da mãe terra Ceará, escrita pela Doceira Selvagem Rafa Medeiros, narra um pouco do processo de pesquisa e de preservação de artesanias culinárias do seu estado. Ela narra sobre leituras e conversas com agricultoras, e de como tudo isso reflete no seu intuito de educar atráves da doçura, preservando o ofício de doceira com o doce de leite de pedra - uma iguaria feita com leite de coco e mel de cana, temperado com especiarias locais diversas que variam conforme a safra, e que podem ser adquiridos acompanhando seu trabalho pelo Instagram.
Catorze dias de caminhada no Jardim Botânico de Curitiba é um diário delicioso de observações da paisagem e da rotina, escrita pela Luisa Pinheiro, acompanhadas por essa ideia da perambulação que faz dar volta nossos pensamentos.
Enquanto eu lia esse texto da Luisa, fiquei pensando no quanto depois de tanto ter perambulado por Salvador a ideia desse texto sobre dendê me veio tardia, mas também espontânea.
Uma armadilha muito estranha que acontece quando nos tornamos alguém que escreve com regularidade é observar as coisas já pensando no que poderia ser escrito. Pode parecer uma enorme vantagem - porque afinal, seu olhar parece estar treinado pra ir reconhecendo o que pode render algo interessante -, mas a verdade é que eu chamo mesmo é de armadilha, porque essa é a coisa mais contraprodutiva a se fazer. Enquanto caça sobre o que escrever mentalmente, você perde o momento em que as coisas acontecem, deixando de fato de experimentar a espontaneidade das coisas interessantes acontecendo. E ainda corre o risco de se tornar refém da sua própria produção, como se ela fosse mais importante que viver a vida, com toda a sua energia caótica e não dirigível que não cabe na fixidez de arrumar assunto dentro de uma periodicidade imaginária.
Não sei bem a razão, se foi a oportunidade de caminhar vendo tanta coisa diferente como a Luisa lembra no texto, ou também ver tanta coisa igual, como as ondas que quebram todos os dias na praia e que costumam esvaziar certos pensamentos. Ou quem sabe ainda o meu firme propósito de manter meu passeio privado, que de repente me colocou mais à vontade pra só estar ali sem compromisso.
Depois que eu voltei comecei a rabiscar sem ver esse texto porque de fato depois que eu comprei a garrafa fiquei obcecada lendo sobre dendê, e não porque eu precisava publicar algo. E sinceramente, essa é a coisa que mais me assombra na regularidade da escrita na internet: perder essa minha curiosidade espontânea, que não me deixa largar um assunto simplesmente porque eu me interesso, e que me faz olhar emocionada pra uma garrafa de azeite, pra no lugar perseguir regularidade, seguidores, dinheiro ou sei lá o quê.
Oxalá o passo não me esmoreça.
OutraCozinha é um projeto que pensa sobre o que a comida diz sobre nós desde 2016. É o apoio generoso dos leitores e meu entusiasmo que levam essas ideias para todos. Apoie o projeto aqui no Substack ou no Apoia-se, essa estabilidade faz uma enorme diferença pra mim <3
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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As fotos desta edição são registros meus da Feira de São Joaquim, em Salvador.
Que baita texto e pesquisa, Carla, bonito demais! 🧡 Muito importante pensar essa "limpeza" que querem fazer do dendê, tirando o cheiro e o gosto que são característicos dele. No fundo, tentando embranquecê-lo, né? É que nem querer tirar a baba do quiabo, parte constituinte dele. Mais um viés cruel e invisível do racismo.
Gostoso demais sentir o cheiro da Bahia nas suas palavras. Salvador é uma cidade muito querida e especial. Que declaração de amor linda essa que você escreveu. Um abraço com perfume de coentro <3