Quando conto para as pessoas que estou morando no campo e interessada em tornar essa situação mais permanente, elas dificilmente entendem o que eu estou querendo com isso.
Algumas gostam de me dizer que também pensam na velhice em fazer o mesmo, como quem compartilha comigo alguns gostos, mas que infelizmente só são possíveis mesmo de gostar amanhã. Mas a maioria suspeita que eu esteja pensando num futuro logo ali de fazer algum tipo de cultivo comercial, ou quem sabe aproveitar o que eu sei sobre fazer comida pra pensar na venda de algum produto beneficiado artesanal. Mas essa nunca foi a minha intenção, e eu sequer penso sobre isso.
Assim que elas ficam sabendo que esse não é o meu plano, as pessoas saem do estado de semi-horror de achar que eu virei agricultora pra incógnita de não terem a mínima ideia do que é mesmo que eu tô querendo com isso.
Eu ouço essas expectativas com muita curiosidade. O que eu gosto nessas conversas é que elas não dizem muito sobre o que as pessoas pensam de mim, e sim me contam sobre uma ideia que elas têm do que é viver no campo. E ainda que pareça contraditório, eu percebo nessas falas o quanto o nosso imaginário sobre esse espaço é muito modelado pelo que a gente entende que é a cidade.
Pra quem vive no espaço urbano, o campo é um espaço que existe pra ser o suporte desse outro lugar onde a vida realmente acontece. É do campo que vem o que comemos, a matéria prima pra muitos dos recursos que são beneficiados pela indústria, e é pra lá que vamos ou imaginamos que podemos ir quando queremos desacelerar e descansar um pouco a cabeça de tanto barulho e concreto. No nosso imaginário, o campo é um espaço útil, mas é um espaço útil que só faz sentido nessa relação com a realidade urbana. É difícil conseguir imaginar que o campo também pode ser um espaço autônomo, que tem cultura, questões, e possibilidades próprias que não estão necessariamente ligadas às coisas que acontecem nas cidades.
Outro dia o Guilherme Ranieri do Matos de Comer propôs uma discussão interessante nos stories. Ele se perguntava sobre as pessoas que estão migrando para o campo, e que pensam em viver do que a terra dá. O questionamento dele era: por que tanta gente migra pra fazer isso mas vive de ensinar a viver do que a terra dá? Quem então de fato vive da terra? É uma conta que não fecha.
No meio de várias pontuações importantes sobre a desvalorização do trabalho de produção de alimentos, e de que o processo de recuperação de solos degradados e desenvolvimento de uma agrofloresta, por exemplo, são longos, eu fiquei interessada em pensar sobre outro ponto.
Parece que mesmo as pessoas que migram ou pensam em ir morar no mato têm dificuldade de construir outra lógica que não a de sair das cidades pra viver fazendo a terra render dinheiro.
O que eu fico pensando é em como a vivência rural merecia ser mais discutida e estruturada como possibilidade de vida, e não como o sustento - e ainda assim isso poderia ser significativo e trazer mudanças no entorno, na comunidade, na vida que se leva e nas que a gente imagina que são possíveis de serem levadas. É o tamanho único dessas mudanças o que mais me incomoda.
Acho essa discussão interessante porque mostra como a lógica de monocultura - não só de produtos agrícolas, mas das nossas ideias - está muito bem enraizada. Escolhe-se sair da cidade, mas é preciso de algum modo monetizar esse processo de saída. A única forma de pensar o sustento além da monetização da saída é monetizar a própria terra. O rural parece só ser considerado um espaço possível se aponta para um modo de produzir.
O que me parece peculiar é que mesmo dentro de um pensamento que visa a biodiversidade, a variedade e a transformação da vida e da produção, uma parte importante do pensamento segue monolítica: o campo, assim como as cidades, têm que render algum dinheiro, e de preferência servindo às cidades.
Me parece ingênuo não pensar que possam existir pessoas que vão se interessar por uma vida rural mas não tenham aptidões físicas nem interesse em cultivar e comercializar muitas coisas. Saber o mínimo sobre cultivo talvez seja interessante e parte do que se quer experimentar, mas é muito diferente experimentar ou fazer disso um negócio.
Há muitas outras coisas além de cultivo a serem feitas no espaço rural. E há outras tantas a serem criadas. Pessoas podem se interessar pelo trabalho educativo, que pode ou não envolver algum tipo de hospitalidade, outras podem simplesmente fazer esse trabalho de reconhecimento de plantas, e trazer isso mais pra perto de todos, um pouco como as raizeiras, os indígenas, e tantos outros grupos tradicionais. E é claro, também há muita coisa para se construir em termos de arte e cultura, que como costumam ser próprios desse fazer, podem levar a gente a conectar novas ideias e cultivar um outro imaginário que antes não era tão claro.
Embora eu de fato tenha plantado alguma coisa, e experimentado lidar com a produção de frutas de uma chácara que desafiam a criatividade de um jeito muito diferente do que sempre experimentei na cidade, me dedicar a plantar comida nunca foi o meu projeto, nem o que eu estou mais interessada em fazer aqui. Colher alguns quilos de tomates ou duas melancias enormes, ainda que tenha me exigido algum esforço, pra mim ainda tem um lado lúdico que eu faço questão de manter. A verdade é que também dá pra experimentar o campo com essa ideia, num estilo de vida que pode ter diversões bem peculiares.
Isso tudo me faz pensar no quanto também existe espaço pra se repensar a própria ideia de trabalho. Essa lógica de trabalho que não é capaz de enxergar tudo o que pede a manutenção da vida, que inclui também simplesmente poder brincar, parece sustentar essa ideia de que é indispensável, ainda que de um jeito mais sustentável, fazer a terra render. Mudar isso não é fácil porque de fato é mudar a estrutura de tudo que a gente vive. Mas a vida rural pode ter muito mais pra oferecer do que isso da gente estar sempre tentando extrair algo dela.
Eu acho uma graça danada quando alguém me diz que quando estiver mais velho também tem vontade de morar numa chácara. Sempre fico me perguntando secretamente se nesse plano de velhice também está incluído um ou dois funcionários, porque a vida no campo tem um tanto de trabalho invisível que demanda bastante fisicamente, já que haja vida em volta pra dar manutenção. Tem um trabalho grande a ser feito pra manter as plantas e o mato que cresce, mas também com a casa, já que o volume de insetos e sujeira é muito diferente. Ou ainda com a comida, porque mesmo sem plantar tem que dar conta de cozinhar tudo tudinho que tiver que ser comido, sem a possibilidade de ir na padaria rapidinho. E depois ainda tem que pensar em como fazer com tudo aquilo que sobra.
Essa clareza do volume e da natureza do trabalho vem de pensar no campo fora desse raio transformador de tudo em dinheiro, mas também de fugir dessa ótica bucólica, que quase retoma o ideal idílico do fugere urbem dos poetas arcádicos. O problema de estar sempre frequentando o campo com essa visão é que a gente vê ele como lugar rústico onde nada acontece comparado com as cidades, mas essa rusticidade e um bom tanto de acontecimentos silenciosos na verdade são estética própria. Demanda trabalho e cultivo tal e qual a sofisticação das cidades, embora quase sempre passe despercebido pra quem não vive aquilo ali.
Comecei agora a responder ao contrário: quando eu for mais velha acho que eu gostaria de voltar a morar na cidade grande. Eu gosto da cidade. Gosto dos encontros, do movimento e do anonimato, das possibilidades que a cidade oferece que vão desde balançar uma árvore e cair meia dúzia de médicos a poder receber em casa tudo que eu compro. Talvez mais pra frente, quando eu estiver cansada, a cidade seja o lugar perfeito pra eu poder me cercar de todo tipo de comodidade que ela oferece, e finalmente poder descansar de todo esse trabalho invisível que o campo me demanda.
Sobremesa
Já que estamos falando sobre o campo mas também sobre as cidades, nada melhor do que ouvir quem pensa sobre as formas concretas que a gente dá pra elas. No Trem das Onze, a Luísa Gonçalves escreveu sobre toda a vida que existe por trás da criação assinada por um arquiteto estrela, que na verdade demanda tanta composição coletiva, silenciosa, secreta e tantas vezes invisível. O invisível está em todo lugar.
A Vanessa Guedes escreveu sobre nosso apego à ideia de um texto (ou ideia) original. A perspectiva que ela coloca sobre a arte como lugar de conexões que vão se materializando a partir da repetição de coisas banais é bem interessante. Uma lembrança de que pensar é prática também.
A Babi Carneiro escreveu sobre o quanto nossa compreensão do possível é estreita quando o assunto é a mobilidade nas cidades.
Este vídeo curto da ecofeminista Ninari Chimba sobre campesinar as cidades só é ruim porque acaba rápido pra caber no instagram, mas tem uma versão um pouco maiorzinha dele aqui.
Cafezinho
Ainda com alguns sintomas de abstinência do tuiter, venho fermentando a ideia de mudar a periodicidade da newsletter, que sempre foi mensal, para quinzenal.
Eu publico de 2 a 3 textos por mês, mas sempre dividi a editoria da newsletter com os posts do blog. No blog publico algumas crônicas conectadas com essa pergunta do que o comer diz sobre nós, que vagueia o tempo todo no meu trabalho. Mas também tenho receitas que nunca são bem receitas - seja pelo cuidado com o contexto, a história ou com a técnica. Eu gosto de pensar que são propostas práticas pra se pensar uma vida com mais fruição.
Mas grande parte dos meus leitores do blog vinham do tuiter. Sem o tuiter, é difícil que os textos sejam vistos, e quem pode ter interesse no assunto acaba perdendo.
Eu pretendo experimentar migrar ao menos uma parte dessas publicações pra cá - esse texto de hoje, por exemplo, é o tipo de coisa que costumo preferir publicar no blog, mas que agora devo enviar por aqui. Quero experimentar que essa newsletter seja quinzenal. Me conte depois o que você acha dessa ideia.
No Telegram, todas as sextas tenho enviado uma curadoria com 3 textos que refletem sobre a pouca valorização que recebem as atividades de cuidado, a aceleração da vida cotidiana, e o valor de fazer nossas coisinhas. Se você gosta desses assuntos apareça por lá <3
Pra todos que apoiam o meu trabalho compartilhando ou dando apoio financeiro, possibilitando que muitos possam usufruir dele, meu agradecimento sincero. Não é fácil insistir numa proposta como a minha que é cheia de não convencionalidades - que vão desde o tipo de assunto sobre os quais eu escrevo, até essa forma menos invasiva de lidar com as redes. Eu não teria como fazer isso sozinha, então obrigada por estarem aqui.
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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As artes dessa edição são desenhos naturalistas publicados em 1914 nO Livrinho das Aves, de autoria de Rodolpho von Ihering, mas cujas ilustrações não aparecem creditadas, apenas assinadas por Bellinha. O livro se encontra em domínio público.
Que delícia tomar meu café da manhã de domingo acompanhada por esse texto seu. Que reflexão importante - e que eu, particularmente, ainda não tinha visto ninguém fazer, a não ser você. Sempre, sempre aprendo com o seu jeito de nos mostrar um outro ponto de vista de quase tudo que está sendo visto e mostrado. É gostoso demais, dá uma coceirinha no cérebro, a sensação de que uma janela foi aberta e eu tô vendo uma nova paisagem.
Acompanhar você (não só nas redes, no nosso caso, mas na vida) é me pegar questionando tudo o que eu sei e sempre pensei. Brigada por tanto ❤️
Todo meu apoio à publicação quinzenal!