Uma voz feminina repete num tom monótono o que parecem ser números aleatórios numa língua que eu não entendo. Mas logo em seguida, uma sinfonia melancólica tocada por uma orquestra de cordas entra por cima dessa voz repetitiva estranha da moça. O violino tocando sobreposto tem um som tão melódico que, por contraste, deixa a voz parecida com qualquer coisa meio robótica.
"A Song for Europa", do músico Jóhann Jóhannsson, é o nome dessa composição que me fez pensar em como a repetição monocórdica parece esvaziada de emoção, enquanto o instrumento é capaz de causar um forte efeito emocional justamente pelas suas variações, que vem dos acordes, escalas, timbres e da própria alternância entre silêncio e som.
A gravação da voz pertence a uma transmissão de rádio feita durante os anos da Guerra Fria, e supostamente serviria para passar mensagens cifradas. Mas na verdade até hoje ninguém sabe ao certo o que essas mensagens significam.
As palavras em sequência que aparecem na música são articuladas de um jeito que mal importa o idioma delas, o que dirá o significado. Elas soam simplesmente despersonalizadas. Mas a gente só se desapega de entender o que aquilo ali está dizendo quando é arrebatado pela entrada do violino, que não precisa ser verbalmente estruturado. Aquela música passa então a encher os ouvidos, e é sentido, em vez de ser somente escutado.
É pra essa música que eu volto mentalmente muitas e muitas vezes quando eu estou zapeando no TikTok ou nos reels do Instagram, à noite, cansada, e ouço pela 5a ou 6a vez seguida os acordes do refrão Oh I love and I hate it at the same time, executada sobre a imagem de uma paisagem estonteante, feita com a nitidez de uma câmera profissional e um drone, enviada pro aplicativo por iphone. Eu nem mesmo sei o que há pra odiar nessas cenas porque pouco importa o que diz a música. É tudo parte da repetição mecânica e despersonalizada de uma trend agora já velha, tal e qual a gravação sem vida da transmissão de rádio. E ainda assim, não consigo desligar meu celular e fazer outra coisa, porque estou cansada, porque isso é fácil de ser feito, mas principalmente porque eu sinto que não tenho muito como escapar daquilo na telinha na minha mão.
Talvez eu esteja me sentindo particularmente desanimada com todas as mudanças que estou vendo acontecer nas redes. As redes que estão acabando, as que estão começando, as que tentam silenciosamente a todo o custo matar todas as outras alternativas que estão em volta pra que você tenha que seguir o script dela. As que eu tento me encontrar, tento construir algo, para em seguida me ver aflita, tentando de novo em outro lugar só pra simplesmente ter a chance de encontrar o meu povo. Mas eu sinto que é como se eu construísse um monte de castelos de areia, que o mar, numa brincadeira meio sem graça, engole cada vez que a maré sobe.
Isso é muito mais do que simplesmente o desejo de querer ser vista e ouvida, ou de poder ter o direito de mostrar o que eu faço, já que o mercado de trabalho é cada vez mais um espaço que não me comporta. Eu sinto que o gosto amargo que as redes deixam é o da gente nunca pode estar verdadeiramente entre os nossos, porque é muito difícil conseguir construir algo legítimo quando tudo o que fazemos é permeado por algum interesse financeiro - nosso ou dos que detém as redes.
Um artigo da Insider que topei outro dia botou um espelho na frente dessa minha angústia. Em vez de fotos do dia-a-dia das pessoas, as plataformas se transformaram numa curadoria de imagens que mesmo o que parece mais autêntico foi planejado meticulosamente. À medida que mais pessoas foram confrontadas com as consequências de compartilhar constantemente, as redes sociais foram se tornando menos sociais e mais midiáticas – uma constelação de plataformas de entretenimento. O esforço que nos exige fazer um post no instagram tem nos levado cada vez mais para mensagens privadas, close friends, aplicativos de mensagens como Telegram ou Discord, onde ainda cabe um pouco de espontaneidade, e é difícil encontrar marcas, ou pessoas que se transformaram de certa forma em marcas, com suas vozes robóticas para sobreviverem.
Uma das personagens do artigo é Victoria Johnston, uma engenheira de software de 22 anos, que imagina a plataforma de mídia social ideal como um “espaço seguro onde as pessoas podem simplesmente se conectar e não se sentirem pressionadas a ter muitos seguidores ou presença ou ser realmente conhecido.", ela conta. Victoria, como muitos de nós, no fundo quer ir além da tela. Ela quer uma rede social que sirva pra encontrar seus interesses, mas também pessoas com quem ela possa partilhar essas coisas, formando uma comunidade em sua vida cotidiana.
E as plataformas sabem o que queremos. Mas todas elas são comandadas por corporações transnacionais e uma elite de sociopatas bilionários, a quem isso não é do interesse. Pessoas que se encontram se reconhecem e se ajudam. Pessoas que se encontram estão satisfeitas, e não consumindo e sendo consumidas pelas suas angústias. É assim que o social dessas mídias vai sendo destruído, pra no lugar surgir um conglomerado de entretenimento que mais se parece com zapear uma TV no domingo a tarde, como fazíamos na década de 90.
Eu fico voltando nessa ideia da voz robótica da qual só se escapa quando se encontra o som do violino, porque embora a internet tenha me dado a oportunidade de ouvir minimamente um pouco do som emocional da música, e isso me mantenha aqui esperando eles tocarem mais uma vez, eu estou cada vez mais insatisfeita com o meu minimamente.
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Eu e meu marido temos acessado uma quantidade de artigos, vídeos e outros materiais na internet pra estudar sorvetes e gelatos há uns meses. Fizemos vários, tudo sem máquina, e com resultados surpreendentemente bons. Mas embora estejamos satisfeitos e animados, a principal conclusão é que a indústria - e por indústria eu quero dizer também as gelaterias 'artesanais' caras, de rede ou não, e também os restaurantes estrelados e cafeterias que servem seu próprio sorvete - nos acostumou a esperar certas características em termos de textura e sabor do que é um bom sorvete. Mas essa expectativa invariavelmente precisa de ingredientes industriais pra existir.
Quando eu estava produzindo uns blends de chá, cheguei nesse mesmíssimo lugar. O que empresas de diferentes portes vendem como artesanal e cobram caro por isso tem sempre aromatizantes, o que faz nosso paladar se acostumar e o resultado do que é realmente artesanal e caseiro soar insosso, como se faltasse alguma coisa.
Com o sorvete acontece a mesma coisa. Dá pra fazer uma cremosidade bem interessante com ingredientes naturais sem maquinário específico, - uma boa batedeira é ajuda suficiente, até porque o sorvete foi inventado antes que isso existisse. Mas não há possibilidade de ficar igual ao que se compra nem se você puder comprar uma máquina. Isso acontece não porque seja muito difícil dominar a técnica ou por uma questão de preço dos ingredientes. É que o artesanal que se vende precisa de maltodextrina como emulsificante pra criar uma cremosidade sem tanta untuosidade que o creme de leite fresco invariavelmente proporciona no céu da boca; precisa de goma guar e goma xantana pra reduzir a água livre a um gel e não ter nenhum tipo de cristalzinho, e aí sim ficar parecido com o que a gente aprendeu a esperar da textura de sorvete. A gente passa a tomar como defeito um negócio que não é defeito, simplesmente porque a comparação é feita com um produto industrial, com todos os poréns que ele carrega, mas que ficam meio apagados porque eles se intitulam 'artesanais', e parecem que estão ali, ao alcance de quem quiser se esforçar pra fazer o mesmo. Isso afeta demais as nossas expectativas sobre o que nos chega e até o que a gente pensa sobre a nossa própria produção.
A gente até tem ideia dessas coisas, mas é fazendo que a gente vê o quanto o artesanal parece excessivamente elástico, e que a ideia de "faça você mesmo" esconde um fingimento. É fazendo e olhando com esse olhar analítico que se torna muito visível o que está acontecendo, e o quanto tanta coisa que parece despretensiosa e espontânea, na verdade tem estrutura e ingredientes de um negócio. É feito com aditivo de gente poderosa, equipes, revisores, consultores de marketing, figurinos, fotógrafos e videomakers, entre outros profissionais, confundindo de um jeito duradouro os nossos paladares para o que é produzido.
Isso é parte desse paradoxo que a gente vive, no qual nós passamos a desejar dentro de casa um resultado profissional, enquanto todos os profissionais que participam dessa indústria tentam a todo custo nos convencer de que o que eles fazem é caseiro.
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Uma das leituras que mais ampliou meu desconforto sobre tudo isso foi o livro Terra arrasada: além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista, do crítico de arte e ensaísta Jonathan Crary. O livro é uma espécie de panfleto que oferece um contraponto radical e pessimista sobre nossas vivências nesse mundo digitalizado. Crary argumenta que o futuro onde uma saída do capitalismo seja possível precisa ser menos digital do que a gente imagina. Não há a possibilidade de uma internet socialista, assim como já entendemos que é incoerente e fantasiosa a ideia de capitalismo verde, porque qualquer forma mais igualitária de sociedade depende de existirem relações não monetizadas ou instrumentalizadas entre as pessoas. E a internet não vai magicamente mudar da mão dos bilionários para que isso seja possível.
Contrariando o que dizem os entusiastas da Creator Economy, ao promover uma realocação implacável de experiências sociais pras essas novas formas digitais que estamos aqui produzindo, o que estamos criando é apenas mais consumo - de bens, produtos e experiências digitais. Vivemos nas redes o colapso do nosso senso de agência e da nossa criatividade. Para Crary, ainda que estejamos aqui discutindo uma saída pra tudo isso, não é possível existirem pessoas realmente revolucionárias nas redes sociais. Aqui sempre dependeremos das instituições que nos permitem estar online, compartilhando e rolando feeds infinitos, e precisamos pra isso de algum jeito seguir as regras deles. E mesmo assim dificilmente somos vistos.
As redes sociais emulam uma vasta ilusão de escolhas e variedade, enquanto a nossa capacidade de recusas fica muito empobrecida. As assimetrias de escalas entre o nosso tamanho e o tamanho das redes globais e seus conglomerados deixam borradas qualquer noção mais qualitativa dos nossos valores. "Cada um de nós é diminuído pela veneração das estatísticas - seguidores, cliques, curtidas, toques, visualizações, compartilhamentos, dólares - que, fabricadas ou não, são investidas constantes contra a confiança em nós mesmos." Nos dão como parâmetro algo que não faz sentido e é inevitável olhar pro nosso apequenamento como se fosse defeito. A imensa quantidade de imagens e ideias circulando sobre como viver a vida produz uma cacofonia e uma desorientação que nos deixa meio atordoados, como a voz robotizada que repete sem parar números que não importam. Isso reduz a nossa capacidade de ouvir a música, e construir com ela algum diálogo que tenha sentido.
Sei que muita gente vai pensar que esse radicalismo de um mundo que não seja dominado pela internet é irreal, porque significaria ter que repensar o mundo todo, e todas as estruturas que agora já fazem parte das nossas vidas. Mas por mais estranho que pareça, talvez seja exatamente uma calibragem que nos faça ao menos pensar nesse tipo de mudança radical o que a gente precisa. Algo que retire um pouco da nossa ingenuidade de que é preciso se esforçar mais, dar mais, quem sabe dar algo extra, horas extras, brindes extras, edições extras, até que não sobre nada da gente. Parar de acreditar que a internet é terra de encontros e possibilidades, e que conseguir ouvir o som do violino está a um esforço ou golpe de sorte de distância. No capitalismo chegar lá é só a cenoura no cordão fazendo o burro caminhar; o resultado perfeito só existe com um aditivo secreto que nos engana dizendo que foi feito com amor. As promessas de algo melhor, na verdade, se parecem mais com "não tem outro jeito".
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Numa das noites em que eu lia o livro Terra Arrasada, aconteceu uma ventania de uma chuva se armando e a luz acabou. Eu estava deitada na rede do lado de fora, olhando a noite caindo do outro lado do rio. No momento em que a luz apagou, deu pra ver todas as outras casas no meio do mato do outro lado ficando no escuro. Com o céu nublado, também não tinha estrela nem luz da lua, não tinha mais nada, e a sensação era do mais absoluto breu. O silêncio da minha própria casa, sem o ruído branco das luzes e da geladeira, deixou tudo ainda mais esvaziado. Eu fiquei meio paralisada. Parecia que estava tudo muito vazio de repente. "Então é assim a vida que a gente poderia estar vivendo, uma vida no meio do mato sem eletricidade de noite".
Eu adorava os dias em que a luz acabava por algumas horas na infância. Ainda que fosse muito esquisito, era nesses dias que tudo o que restava aos adultos da minha casa era distrair e entreter as crianças, com joguinhos de sombra nas velas, conversas, e outras atenções que não eram o usual na minha rotina. Era uma quebra no cotidiano, tal e qual a variância de acordes que permite que a gente tire algum sentido do som, se emocione, e chame aquilo de música.
Mas aquilo que eu estava vendo deitada na rede era outra coisa. No momento em que a luz acabou, em vez de reconhecer essa variância, eu senti um desamparo tão grande naquele vazio de um mundo sem eletricidade que eu nem conheço. E deve ser por isso também que a gente cisma que essas estruturas todas como a eletricidade ou as redes sociais vieram pra ficar, e não tem como deixarem de existir. Mas as coisas mudam, e às vezes mudam as nossas vontades por nós mesmos.
Sobremesa
O Rodrigo VK escreveu sobre o sentimento de estar num limbo do meio do caminho. Sempre me intrigou por que parece ser mais fácil ver que é falaciosa a ideia de meritocracia, e que não dá pra vencer sem dinheiro e uma boa penca de conhecidos influentes de saída, mas ainda assim acreditar que na internet é diferente, que é terra de oportunidade pra todo mundo mostrar o que faz e crescer. Gente que nem eu e ele somos uber da internet, com uma dificuldade imensa de fazer as coisas rodarem e serem vistas não porque a gente não se esforça o suficiente, mas porque não tem como operar a máquina sem dinheiro ou poder. (E pra recuperar algum senso de conversa, vale também ler esse comentário sobre o texto do Rodrigo feito pela Aline Valek)
A Aline Valek, aliás, também escreveu recentemente sobre sucessos feito sob medida. O mais curioso foi que nos comentários seguiu-se uma chuva de "mas para mim chegar lá é ser mais ou menos como... a Aline Valek!". Isso é revelador porque a Aline é uma figura peculiar, que parece desprendida o suficiente pra fazer sua produção de maneira cuidadosa e consistente, com uma dose invejável de independência e sucesso. Mas o texto dela deixa ver nas frestas que tem alguma insatisfação invisível que nunca permite o descanso, alguma coisa que continua a fazer com que ela se sinta desconfortável. É a catálise de um sentimento de que é impossível vencer a máquina.
“Eu acho que os grandes músicos que já existiram entendem que o silêncio é a fonte da música. E eu acho que o Ryuichi é assim.”. Na escrita da Maíra Mello, uma escuta sensível a partir da obra do compositor Ryuichi Sakamoto sobre saber estar no silêncio e ouvir a musicalidade dos sons à nossa volta.
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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As fotografias desta newsletter são de duas performances do artista plástico francês Thierry Mandon, onde ele representa cenas privadas e íntimas em locais públicos e desconfortáveis. Apesar da sua atitude parecer tão plácida, o que se vê é o equilíbrio precário que desafia nossos limites, com um certo surrealismo e desamparo.
Ai Carla, suas cartas são sempre um afago no coração. Enquanto te leio, sinto que alguém partilha dos mesmos dilemas e indagações e isso me traz conforto porque infelizmente a maioria das pessoas está em outra direção. Já tem tempo que estar no instagram tem me feito mais mal do que bem. Como você bem colocou, a sensação é de que grande parte do conteúdo ali é "espontâneamente forjado". É mais do mesmo, as pessoas seguindo uma determinada fórmula que funciona, com conteúdos pra serem consumidos estilo "fast food" e no final das contas sinto que não fica quase nada do que vejo.
Essa semana não entrei e nem postei e por mais que no começo tenha sido um pouco estranho, ao final tenho me sentido melhor e em paz. Já tive expectativas maiores quanto a ocupar meu espaço no digital. Hoje ainda não sei ao certo se fico ou se vou, mas o meu desejo de estar menos ali, especialmente no instagram, é cada vez maior.
Amiga, pra mim é sempre terrível ler o que você escreve porque eu nunca consigo destacar um ponto favorito, por mim grifaria tudo.
Sinto muito esse seu incômodo aí também (os grandes e os pequenos). Um tempo atrás, participei de uma live de uma amiga que está formatando um novo oráculo e me pediu ajuda com os significados de algumas cartas. Nessa live eu comentei com ela que, pra mim, a criatividade é o anticapitalismo e que, por isso mesmo, ele sempre faz o possível pra destruí-la ou colonizá-la. São a criatividade e a espontaneidade que trazem o insondável pra o nosso mundo, o genuíno, o original, o inesperado. Tudo isso é muito ruim pro capitalismo porque traz algo para o qual ele não tem respostas imediatas. Então, a saída é mexer no nosso código-fonte, na nossa cosmovisão, pra que o que a gente aprende a chamar de criatividade seja algo que ele consegue controlar, monetizar, responder. Daí derivam muitas loucuras que as pessoas se deslumbram, tipo a inteligência artificial, que só vai rearranjando o que já foi visto em outras combinações. Por serem inéditas, a gente acha que é tudo original. A gente acha que tá olhando pro futuro com ela, mas na verdade, estamos olhando pra outros passados controlados por esse sistema massacrante. Um beijo em você.