Faz-de-conta
Qualquer receita que encontramos - não importa se no caderno da avó, num livro na estante ou num vídeo do youtube - é um registro de um modo de viver
Sempre passava pela minha cabeça toda vez que eu me arrumava pra sair pra trabalhar que eu estava me fantasiando. Era como se eu estivesse tirando do armário uma roupa que não era exatamente minha, mas de uma personagem diferente.
Meus empregos nunca foram muito distantes da minha personalidade - nunca tive por exemplo um emprego corporativo tradicional, que não combinaria nada comigo em tempo algum. Mas eu tinha um emprego que precisava lidar com o público, o que é sempre uma situação de tensão pra mim. As roupas pareciam que exigiam esse tipo de postura tensa - a barriga murcha, algum acessório dependurado no pescoço ou na mão, e eventualmente os pés em ponta num sapato um pouco mais alto.
Eu tinha um colega num dos meus empregos que era famoso porque já tinha ido trabalhar de pijama. Parece libertador aparecer no trabalho em trajes de dormir, mas eu sempre pensava que deveria ser estranhamente desconfortável aparecer vestido assim. Usar uma roupa que não é o que todo mundo espera também é faz-de-conta, que veste bem um personagem transgressivo e descolado. Mas ainda assim é fantasia porque foi por isso mesmo que esse colega se tornou famoso. ele criou e vestiu um personagem que fazia sentido.
Festa elegante era outro lugar que eu também me sentia claramente fantasiada. E nesse caso nem era porque me sentia desconfortável - eu adorava o toque dos tecidos finos, a possibilidade de inventar uma maquiagem extravagante, e de ter que andar em outro ritmo por causa do tamanho do vestido e do sapato. Esse tipo de roupa tem umas possibilidades que não existem em outras situações da minha vida. Eu nunca tirava os sapatos altos, por mais que eu estivesse cansada, porque eu gostava de experimentar ser aquela outra pessoa.
Prato Principal
Nunca me pareceu muito simples definir as coisas que sou e que gosto porque sinto que essas coisas são efêmeras. A gente é uma coisa hoje, depois isso passa, e logo a gente é alguém que gosta de coisas tão diferentes. Mas quando lembro das sensações vestindo qualquer uma dessas roupas, fico pensando que entender quem somos é estranho porque nem sempre a gente tem dimensão do faz-de-conta que estamos vivendo.
Nós somos o que vamos fazendo, a cidade e a casa que habitamos, as coisas que comemos, e todas essas microescolhas que vão se somando. A história de quem somos é aquela que vai se reprisando nos gestos mais banais: nas roupas que vestimos, nas combinações que fazemos, na vida que, mesmo sem querer, levamos. Viver a vida tem muito a ver com essa nossa capacidade de ficar bem com as coisas que tomamos emprestadas.
A artista performática Beatriz Cruz talvez tenha entendido isso de um jeito muito singular. Em 2016, Beatriz começou um projeto em que pegava roupas, acessórios e toda a parafernália de se vestir de alguém que era desconhecido dela. Passava uma semana usando as roupas emprestadas, pra ficar em casa e em todos os compromissos que ela tivesse.
Cada semana ela usava as roupas de outro alguém. Pegava roupas de mulheres e de homens; roupas claramente de tamanhos inadequados pra ela, essas coisas não importavam - ou talvez poderia de repente se tornar muito importante que fossem tão distantes do corpo dela.
Ela sempre se encontrava com os usuários originais das vestes, e eles davam instruções sobre o “modo de usar”, como quem dá uma receita, entregando os ingredientes e o modo de fazer ser eu.
Além de fazer fotos e publicar no Instagram, Beatriz escrevia legendas que sintetizavam suas sensações e sentimentos enquanto fazia uso daqueles objetos. Também anotava reações que captava ao longo da performance. Falava as vezes dos cheiros, registrava fotos das roupas ainda nos cabides, dentro do armário, esperando para se avivarem como um sonho no corpo dela. Ela escreveu: “As vezes me anestesio até que um toque sutil me tira da inércia - podem ser de dois anéis pequenos que mudam os movimentos dos meus dedos, que levam ao pulso e no final contaminam o braço todo”.
Beatriz parecia ao longo das semanas ir se tornando mais familiar a essa grande estranheza de se tornar outra coisa. Parece que assim ela encontrou um jeito de não somente se fantasiar de outra pessoa, mas de sentir o que é ter tantas possibilidades.
Depois de um ano registrando as trocas, Beatriz Cruz montou uma exposição pra partilhar a experiência. Ela deixava roupas nos cabides pra que os visitantes pudessem experimentar se vestir de outra pessoa e, quem sabe, pensar sobre como é habitar a própria pele. O que faz com que eu seja eu? Como é ser alguém que faz determinadas escolhas, leva uma vida, gosta dessas cores? Que fantasias são essas que a gente habita? Que história estamos contando sobre nós mesmos nessas coisas mais miúdas?
Todos nós construímos nossa existência nesse conjunto de atos cotidianos, recorrentes e ainda assim imprevisíveis, entre cidades, pessoas e coisas que estão por aqui muito antes da gente chegar — e que continuarão entre nós bem depois que a gente partir. Vários desses aspectos não agradam propriamente o nosso gosto, nos causam estranhamento, repulsa, as vezes até constrangimento. E ainda assim, a gente tenta se fazer um pouco mais à vontade com as coisas como elas são.
Alguns lugares, pessoas e objetos parecem que funcionam como chaves. Tudo já estava ali dentro da gente, mas nem sempre se consegue trazer essas coisas à tona. O que nos define não está nas coisas, pessoas ou lugares que frequentamos, e no entanto, quando a gente se encontra com elas, algumas possibilidades são vistas e se abrem. Qualquer tentativa de mudar nosso cotidiano usando coisas concretas como roupas, mas também cidades, casas, caminhos, amigos e sabores carrega um pouco dessas novas possibilidades.
Assim como acontece com as roupas alheias, experimentar novas comidas nos permite ao menos por algum tempo pensar como é viver uma vida alheia. É uma tentativa de estabelecer uma conexão, tensionando proximidade e distância (gosto, mas não é o que eu normalmente como), que nos faz oscilar entre a intimidade de sentir o outro dentro da boca e o estranhamento.
Cozinhar tem um pouco de faz-de-conta. Qualquer receita que encontramos - não importa se no caderno da avó, de um livro na estante ou de um vídeo no youtube - é um registro alheio de um modo de viver. Ela registra ingredientes e modos de fazer, mas também o tempo que se dispõe pra cozinhar, as habilidades e combinações que se conhece, os ingredientes e sabores que lhe são aceitáveis e familiares.
Elas muitas vezes também podem trazer aquele gostinho de que não levo a vida do outro, não tenho o tempo que o outro tem pra fazer isso, e não uso ou nem tenho acesso aos ingredientes exatos que ele tem. Ela pode ser uma fantasia desconfortável, que não sei direito usar.
Como acontece quando usamos roupas que não parecem nossas, é preciso prestar atenção no que se sente quando se come algo diferente, pra entender como é ser essa outra pessoa. Por isso também é tão gostoso conversar sobre comida. Falar sobre comida traz a oportunidade de se concentrar em quem se é e onde você está, e perceber combinações que à princípio não seriam as minhas. Mas especialmente, falar sobre comida aumenta o repertório sobre outras possibilidades de ser e de viver a vida.
Adoro provar comidas que os outros fazem porque quase sempre isso me permite improvisar fantasias que até então eu não tinha entendido que podia. São aquelas coisas que embora façam todo o sentido quando ponho na boca, jamais teria espontaneamente pensado em usar.
No processo de incorporar outras ideias é preciso um pouco dessa brincadeira, de experimentar alguma coisa que nem sempre de cara nos serve muito bem. Tenho que tomar pra mim a receita e adaptá-la de um jeito confortável no meu corpo. Como acontece com algumas dessas fantasias que gostamos, pode chegar o momento em que parece que elas sempre estiveram conosco. E a grande performance acontece quando a gente se sente confortável assim. É que nenhuma roupa, lugar ou comida deixa alguma hora de ser um faz-de-conta. Elas só se tornam algo que a gente não mais distingue muito bem como fantasia porque finalmente nos veste muito bem.
Sobremesa
A partir de agora todas as sobremesas das cartinhas vão ser receitas - algumas próprias, outras parte da minha curadoria. Tenho retomado com tanto gosto minha própria cozinha que tem me dado vontade de pensar no que nos mantém vivos, como gosto de falar que faço, assim, de uma maneira mais concreta.
A receita de hoje é um Salada arcoíris de macarrão com molho de amendoim, que tem um tom bem indonésio.
Encontrei essa sugestão num perfil gringo do instagram, e quis tentar usando as fantasias que faziam mais sentido na minha cozinha. A melhor adaptação que fiz, e que por isso mesmo achei que valia a pena compartilhar a receita, foi a troca do edamame pelo feijão andu verde.
Edamame é na verdade o nome japonês que se dá pra soja verde. É soja comum mesmo, colhida num estágio imaturo. Geralmente é vendida dentro das vagens, que não costumam ser consumidas porque são duras, ou já debulhado congelado. Não deveria, mas no Brasil edamame é um ingrediente caro e raro de ser encontrado.
Já os vários outros feijões verdes, que podem ser o andu como eu sugiro, mas também o de corda, o fradinho, entre outros que tem pelo país afora, são bem mais acessíveis e com um sabor que merece ganhar uma diversidade de pratos. Esse daqui é uma sugestão que pode parecer inusitada, mas que faz muito bonito:
Salada arcoíris de macarrão com molho de amendoim
Para o macarrão (para duas pessoas)
100g de bifum (ou outro macarrão que achar interessante)
Repolho verde ou roxo
Cenoura fatiada com o descascador de legumes
Pimentões fatiados finos
Feijão andu verde cozido
Coentro
Para o molho
1/4 xícara de pasta de amendoim
1 pimenta fresca ou seca de sua preferencia
2 ou 3 tomates cereja
2 colheres de sopa de shoyu
2 colheres de sopa de vinagre
1 colher de sopa mel ou melado
1 colher de sopa de óleo de gergelim torrado
1 dente de alho pequeno
2-3 lascas de gengibre
2 colheres de sopa de água para dar o ponto
Junte todos os ingredientes do molho em um processador ou liquidificador e bata. Em seguida despeje sobre o macarrão previamente cozido, misture, e por fim incorpore aos legumes misturando tudo. Se você não tiver pasta de amendoim, pode usar amendoim sem casca torrado - só lembre de dobrar a quantidade porque ele diminui muito o volume quando está transformado em pasta.
A receita com os ingredientes e quantidades também está no site do OutraCozinha, pra você recuperar mais fácil. Quando quiser, é só procurar pelo nome ou algum dos ingredientes no site.
Um enorme abraço,
E até a próxima
Carla Soares • OutraCozinha
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As imagens que ilustram essa cartinha são da ilustradora Olga Svart. Você pode prestigiar o trabalho dela no Tumblr ou no Instagram.
Nunca pensara que uma receita poderia ser "um registro alheio de um modo de viver" e essa ideia agora me fascina.
Lendo seu texto fiquei pensando nas minhas eternas reflexões sobre esse "estar na própria pele". De onde vem quem sou, quem né tornei, meus gostos, como decido me vestir. Sei que a socialização determina grande parte de quem somos, mas tem aí um pouco de mistério e você falando sobre todas essas coisas me lembrou de que certas coisas não se explica ao certo, se vive.
Não a toa, duas pessoas fazem exatamente a mesma receita e nunca fica igual. Isso é muito legal e porque não, interessante.