A newletter que você está recebendo hoje começou a ser escrita ainda em 2019. A primeira versão dela era uma carta pessoal, que escrevi para a Lorena, uma amiga que dividiu comigo as aulas dos cursos que ofereci ano passado - e que, em algum momento desse ano devo repetir.
Era um texto despretensioso, privado, em que eu contava pra ela algumas coisas que estava vivendo.
Eu sempre gostei de cartas, e tenho o costume de colecionar não só o que recebo, mas também uma cópia - que costuma ser o rascunho - das coisas que envio. E essa carta ficou na minha cabeça durante muito tempo porque ela tinha alguma coisa de muito sincera pra mim.
No início de 2020 eu resolvi mexer nessa carta e transformar num ensaio, pra fazer parte do livro que estava editando, e que apesar de finalizado até hoje não sei bem como fazer pra publicar. É muito difícil conseguir a chance de ao menos apresentar o que você fez quando se é uma autora iniciante sem contatos no mercado editorial, e ainda estou tentando lidar com o assunto.
O texto entrou então pro manuscrito, e por lá ficou descansando durante quase 1 ano. Em 2021 resolvi enviar pros apoiadores - e depois desse tempo, com um olhar mais fresco e distante do que eu tava sentindo quando escrevi, fiz mais algumas alterações.
Apesar da dificuldade que tenho encontrado pra publicar esse livro, ainda acredito que ele vai sair de alguma forma, e me deu vontade mais uma vez de sacudir o pó e tirar da gaveta. Sentei mais uma vez pra reler, cortar e simplificar umas palavras. E, eu imagino, essa não vai ser a última versão dele.
Quis dividir essa trajetória porque a gente ouve por aí pessoas dizendo que um texto nunca termina, a gente é que abandona ele. Não é só um jeito de falar. Este é um texto que continuo a reescrever, que nem a gente faz com todas as histórias que a gente conta sobre nós mesmos, e as coisas que a gente passou, sentiu e viveu.
Espero que a versão que está chegando até você seja a que você precisa ler hoje.
A próxima edição, exclusiva para os apoiadores, vai ser sobre outro refazer sem fim, que é o trabalho doméstico, com uns pitacos desse livro da Silvia Federici. A Editora Elefante me mandou uma cópia pra ser sorteada entre os apoiadores das faixas de $15 a $30. Ainda dá tempo de apoiar meu trabalho por aqui e concorrer.
Se você não é apoiador e só quiser receber esse texto em especial porque ficou curioso ou se interessa pelo assunto, pode fazer um pix no valor de $5 reais para outracozinha@gmail.com com o seu email no campo de comentários do pix que envio ele para você. Essa newsletter sai dia 30 de abril.
Quase não acreditei quando descobri passando pela rua que tinha uma exposição de verdade acontecendo sobre o documentarista Eduardo Coutinho justo no fim de semana em que eu estava em São Paulo. Tinha um filme dele que eu gostava tanto e já tinha revisto tantas vezes que a exposição foi como encontrar um amigo andando pela rua.
O nome do filme era Jogo de Cena. Ele começava mostrando um cartaz colado na rua, que procurava por moças dentro de uma determinada faixa etária pra irem contar suas histórias, que seriam gravadas prum filme. Em seguida, aparece uma cadeira vazia no palco de um teatro, e o diretor Eduardo Coutinho está sentado no lado oposto dessa cadeira. Mulheres anônimas, uma de cada vez, iam se sentando ali, e narrando episódios das suas vidas, numa conversa que parecia uma entrevista com o diretor. As histórias eram emocionantes e diversas, e você rapidamente se vê envolvida, curiosa com os desfechos.
A surpresa aparece quando de repente você ouve algo que já tinha sido contado por uma mulher sendo contado outra vez por uma outra. Não eram só os detalhes que eram repetidos, mas também as palavras e o jeitinho de quem conta eram os mesmos. Algumas dessas personagens que se sentam na cadeira pra entrevista são atrizes famosas, mas não dá pra ter certeza se elas estão ali como atrizes ou se as histórias são delas - pelo menos não até que as histórias sejam recontadas.
Parece que nesse filme a linha entre o real e a ficção fica meio borrada, e você presta cada vez menos atenção às histórias e mais aos jeitos de contar. É tudo mentira ou é tudo verdade? Sobre o que é esse filme afinal?
A coisa ganha mais complexidade quando a gente descobre que esse limite entre o real e a ficção é borrado não só pra quem está assistindo, mas também pra quem está ali tentando representar o papel. Numa cena, a atriz Fernanda Torres aparece repetindo uma história que já tinha sido contada, mas interrompe pra falar de como estava incomodada: "É tão engraçado, nossa. Parece que eu tô mentindo pra você. Eu não separo ela do que ela diz, entende? Acho impossível separar. (...) A diferença é que com um personagem fictício, se você atinge um nível medíocre você pode até ficar ali nele porque ele é da sua medida. Com um personagem real, a realidade esfrega na sua cara onde você poderia estar e não chegou", ela conta durante o filme, refletindo sobre sua própria atuação.
Um programa de TV também já explorou essa mesma premissa, de um modo muito diferente. Chamava-se Faking It. Era uma espécie de reality show inglês, exibido pela BBC, que convidava a cada semana uma pessoa aleatória que tinha um trabalho qualquer, e que deveria se passar por uma pessoa que trabalhava em uma coisa completamente diferente. Pra isso, ela tinha 1 mês pra aprender algumas habilidades que a ajudassem a fingir ser o que não era. O objetivo era enganar uma banca de examinadores especialistas, que julgariam quatro pessoas diferentes - o "fingidor" e outros três profissionais da área - pra tentar apontar quem é que estaria mentindo.
Um dos episódios - que mesmo depois de 20 anos nunca esqueci - era sobre um pintor de paredes que deveria se passar por um artista plástico. Ainda que tivesse uma relação entre as duas atividades, isso era completamente irrelevante pra que ele se tornasse outra coisa. O pintor de paredes seria julgado pela sua performance numa vernissage junto com outros três pintores de quadros. O que o pintor de paredes precisava mesmo aprender pra se tornar um pintor de quadros era o tipo de roupa que um pintor de quadros deveria usar, a maneira de falar, o que se espera que um artista conheça e tenha como referência pra usar em conversas. Saber pintar quadros era o menos importante nessa história.
Eu era completamente obcecada por essa ideia do reality porque pra mim ele era uma síntese do que significava estar no mundo. Tinha a impressão que todos nós vivemos num tipo de Faking it, tentando criar uma persona que se saia bem num tribunal imaginário, e os participantes que são capazes de se sair melhor não são os que sabem pintar paredes ou quadros, mas os que sabem ler o entorno, a situação social, e sabem como se comportar nela.
Não pensava isso como se fosse uma desculpa por eu não dar conta direito dessa parte do tribunal - eu sou bem ruim nisso mesmo. Gostava da ideia porque tinha a impressão de que ninguém sabe muito bem o que está fazendo e, só numa brecha, numa cena repetida e passada outra vez, é que a gente descobre os limites entre ser e representar.
***
Nas férias passei por um constrangimento. Eu e o meu marido estávamos na fila de um brinquedo de um parque aquático quando um funcionário nos parou e perguntou quanto a gente pesava. Nem tinha certeza de quanto eu estava pesando, é uma coisa que evito há anos porque não me faz bem, não muda em nada o meu tamanho mas afeta profundamente minha percepção. Disse o número que eu imaginava, já que continuo usando praticamente as mesmas roupas com uma outra perda ao longo dos anos.
Foi difícil ouvir o "que constrangimento" soltado por alguém que estava próximo na fila, e que viu sem querer a cena. Me senti terrivelmente envergonhada. Tentei dizer pro marido que a gente deveria desistir de usar o brinquedo - quer dizer, eu nem tinha certeza do quanto pesava, e a pergunta apareceu porque o brinquedo tinha um limite, e nós estávamos, na percepção do funcionário, muito próximos dele.
Quando cheguei no alto da torre do brinquedo depois de pelo menos uns 20 minutos na fila, outra funcionária que não havia visto a primeira cena parou e nos perguntou de novo quanto pesávamos. Dessa vez respondi com um artigo indefinido na frente do número e nenhuma convicção. "Só isso? Tem certeza?". Eu disse que sim, mas em seguida, enquanto meu marido se ajeitava no brinquedo e eu esperava minha vez de fazer a mesma coisa, disse que estava com medo da altura e que não queria mais brincar. Desistimos eu e ele, fomos embora, e foi isso.
Mais tarde, ainda um pouco chateada e pensativa sobre o que tinha acontecido, uma das minhas sobrinhas veio me perguntar o porquê da gente não ter descido no brinquedo - ela estava esperando pra assistir a gente. E, antes que eu pudesse dar uma resposta que explicasse o que aconteceu, veio: “papai me disse que você não podia usar o brinquedo porque está gorda demais”.
Estou carregando essa história agora pra cima e pra baixo em tudo o que faço. Voltei a sentir e pensar e fazer coisas que há tanto tempo não sentia. Passei a restringir as coisas que como. Voltei a me pesar e, embora esteja vendo um número menor cada vez que subo na balança, sempre tenho uma explicação mirabolante que não a diminuição do meu tamanho, como o peso das roupas na semana anterior, ou um mal estar intestinal dias antes de me pesar. E apesar de saber que não tem nada demais no meu tamanho, estou com dificuldade de lidar com ele.
O episódio foi desagradável, mas não foi ele em si que causou qualquer coisa. Essa prisão que experimento com a obsessão com peso e com comida são uma forma estranha de dizer que existe um incômodo, uma sensação de inadequação difícil de ser materializada, e com o qual não estou conseguindo lidar. Tudo aquilo intangível que me incomoda pode pelo menos ganhar um pouco de visibilidade na inadequação imaginada do meu corpo, que é concreto.
É uma cena repetida. Restringir a alimentação de modo drástico, por mais bizarro que seja, é muito mais fácil do que atuar em outras coisas da vida. O incômodo com o tamanho do corpo e a situação constrangedora repetidamente voltando à minha memória são uma coisa concreta com a qual consigo fazer com que o problema possa ser reinterpretado pras câmeras ou pro meu tribunal imaginário, diferente de coisas que não me foram ditas.
Sei que o burburinho de "ela está tão gorda que não pode usar o brinquedo", que escapa da boca de uma criança que não participa do pacto de silêncio dos adultos, que não podem verbalizar outras coisas sobre mim que os incomodam, é a única coisa visível com a qual posso lidar. Parar de comer ou se pesar obsessivamente, são, pra quem está em cena, um jeito de expressar uma vontade de resolver os problemas muito evidente e frenética, ainda que completamente equivocada.
Apesar de dolorida, é a repetição da cena que me permite entender que tem algo no lugar errado, como acontece enquanto assistimos Jogo de Cena. Em vez de seguir envolvida com a história que está sendo contada, de uma hora pra outra percebo que preciso é ficar atenta nos jeitos de contar essa história repetida, pra descobrir o que é de verdade e o que não é. O filme não é um amontoado de histórias que se desenrolam, mas uma pergunta sobre o que é real.
As personagens isoladas no palco sentadas numa cadeira de frente pra câmera estão deslocadas dos seus espaços habituais, e de muitas outras características que compõe as suas identidades. Existir, ali, passa a ser significado só por aquilo que essas pessoas são capazes de contar sobre si mesmas. Como a atriz Fernanda Torres diz, parece impossível separar a pessoa do que ela diz.
Já em Faking It, "ser de mentira" é a própria premissa. A expectativa é que o personagem vai se trair, vai entregar na encenação que ele não é aquilo que parece ser. O que você busca enquanto vê o programa é aquilo que nunca é dito, o que está além do que o personagem quer aparentar.
E não é que exista uma mentira ou uma verdade. Cada uma daquelas pessoas e atrizes encenando ou reencenando a história está fazendo uma coisa real, assim como o pintor também não está simplesmente fingindo. Eu consigo me emocionar e me enternecer com as histórias contadas, de modo que tanto faz se ela aconteceu ou não com a pessoa. O pintor de paredes, ao ver que conseguiu enganar os juízes no final do programa, se questiona se ele não é mesmo um artista plástico - e começa a pensar em ser de fato um. É difícil realmente bater o martelo e dizer que algo ali não é de verdade. O que Jogo de Cena e Faking It parecem fazer é mostrar que os limites entre o que acontece e o que a gente diz que acontece são muito pequenos. Se eu acredito e convenço a plateia, é isso o que importa.
Se sentir inadequado num corpo não é uma ficção. Tampouco é a verdade. Ela é uma repetição, uma repetição insistente e ressentida, mas que aparece deslocada, e que não consegue encontrar alívio direito porque não é capaz de agir totalmente sobre o cenário novo onde a história é recontada. O que estou comendo e quanto é mesmo que estou pesando não são o problema que preciso resolver. Mas eu reenceno o desconforto de estar na minha própria pele porque esse é o caco mais parecido que com o que eu sinto agora, especialmente quando não sei de verdade reconhecer ou atuar sobre outro desconforto de ser eu, aquele que me aflige neste momento.
É muito fácil incorporar essa inadequação do corpo ou com o que se come porque essa é uma mensagem que é repassada o tempo todo no mundo em que vivemos, independente dos nossos tamanhos e do que a gente come. Quando, porém, esse papel é repassado à exaustão e se entende que esse é um nó que não se resolve, uma hora nos damos conta que tem qualquer coisa que está faltando na interpretação, que nem a atriz que interpreta um personagem real. O que será que deixamos de pensar enquanto nos ocupamos tanto do sofrimento com o tamanho do corpo e com o que se come?
Nunca consigo desmontar esse desconforto me lembrando de caprichar mais no papel do fingidor, do artista plástico que na verdade é pintor de paredes mas que agora até se convenceu que é artista plástico. Eu tento fazer o papel das atrizes, que pra reencenar não esquecem que são atrizes, e precisam estudar a personagem. Sem esquecer do meu desconforto, é preciso encarar a cena repetida com a consciência de que é um papel. É reinterpretando a cena com esse respeito que surge a estranheza da repetição, e as contradições de ser quem se é. Com sorte, a atuação deixa de ser uma história que estou acostumada a estar sempre contando pra aparecer a história de verdade que agora precisa ser contada.
Sobremesa
Dois projetos que valorizam cartas que vale muito conhecer:
A Paula Maia no Te escrevo cartas envia newsletters mas também cartas físicas. Recebi dela um postal lindíssimo, com a fotografia de um trabalho de bordado que ela fez numa folha de árvore.
A Livia Aguiar no A toa pelo mundo está recontando uma viagem de volta ao mundo que ela fez em 2012 - tempos passados em que o dólar e o colágeno deixavam tudo mais simples. Lívia mantém o site Eu sou a toa (nome muito inspirado!) há 10 anos, e tem também enviado postais com fotografias que fez durante a viagem. É dessas coisas que só o tempo permite cozinhar.
Esse post da Daniela Araújo sobre os azulejos da cozinha que quebraram num dia importante pra ela, e ela ficou atônita: como isso pôde acontecer agora? Mas na verdade, coisas e pessoas sempre irão em algum momento se partir. Você também briga com as rachaduras da vida?
Um enorme abraço,
Carla Soares • OutraCozinha
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As imagens da newsletter são estereogramas, uma técnica de ilusão de ótica em que imagens bidimensionais complementares escondem uma imagem tridimensional. Para ver, tente desfocar um pouco as vistas enquanto olha pra elas. São criações do Jesse Jackson Brown, que não tem Instagram.
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