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Companhia pra comer
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Companhia pra comer

Querer companhia pra comer é querer ser nutrido do que vier dos outros

Estou experimentando um contexto muito novo pra mim, de morar fora da cidade. Foi muito fácil me acostumar com os ruídos da noite aqui, que ainda existem mas são bem mais naturais; e também com a escuridão que só é quebrada nas noites de lua cheia. Rapidinho passei a dormir muito melhor, e andei fazendo uma sequência de observações sobre o assunto:

A post shared by Carla Soares | Escritora (@outracozinha)

Mas as mudanças não são só no sono. Estar fora da cidade também exige criar toda uma nova logística fora do eixo do comércio, das atividades, e é claro, das pessoas. Mas, apesar de passar uma parte dos dias sempre sozinha, ainda não me senti solitária aqui.

Tudo é ainda muito recente pra conseguir elaborar muita coisa, mas me vi lembrando esses dias do livro A Cidade Solitária, da Olivia Laing, que fala sobre intimidade e conexão na vida nas cidades usando pra essa investigação a arte. Resolvi reeditar um texto que escrevi em 2017 em que falo desse livro, mas principalmente sobre dificuldades de comer sozinho e querer estar junto. Espero que converse com você.


Pro próximo domingo estou preparando o texto do mês exclusivo para os apoiadores, que será sobre adaptabilidade - das plantas e do bicho gente. Vai com uma receitinha, pra você aumentar seu repertório na cozinha.

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Eu contei: eram seis mesas além da minha em que alguém comia sozinho. Eu voltava de viagem, e Curitiba era a metade do caminho até minha casa. No intervalo que separava minha aterrissagem na cidade e a partida do meu ônibus, fui andar pelo Mercado Municipal, que fica logo na frente da rodoferroviária, e procurar um lugar pra comer. Vaguei por um tempo pelos corredores, mas ainda era cedo, e sentei pra esperar o restaurante abrir porque estava cansada. Comecei então a contar as mesas solitárias. Sozinha, eu precisava me distrair com alguma coisa, nem que fosse com a solidão alheia. Eu não sei comer sozinha. 

Sempre achei meu incômodo com esse tipo de situação meio vergonhoso, porque fazendo ao menos umas três refeições diárias, as chances de hora ou outra eu precisar comer sozinha são muito grandes. Achava que devia aceitar que cedo ou tarde todo mundo tem que aprender a lidar com isso, em vez de ficar tentando escapar da situação.

Quando morava sozinha, eu sempre estava tentando escapar. Comia em frente ao computador, cercada por companhias nas redes sociais, que estiveram sem saber conversando comigo em vários dos meus jantares. E nesse almoço em Curitiba, além de contar mesas unitárias, eu tinha um olho no prato e outro no celular. Acho que falhei em almoçar sozinha, mais uma vez.

Dias antes desse almoço solitário no mercado de Curitiba, eu lia o livro A cidade solitária - aventuras na arte de estar sozinho, da inglesa Olivia Laing. Nele, a Olivia olha pra obra de alguns artistas que ela interpreta que a temática da solidão está muito presente. Ela assume uma leitura bem própria e corajosa, daquelas que faz a gente entrar no google com uma interrogação na cara pra conhecer ou rever as obras de que ela fala.

Ela tenta entender essas obras, mas nunca separadas de quem as produziu. Ela examina infâncias terríveis, que me pareceram completamente habitadas pelo sentimento de abandono. Ela fala da experiência que várias dessas figuras tiveram de mudar de cidade em busca de não se sabe bem o quê, e de se encontrarem completamente isoladas, perdidas. E embora quase sempre ela recorra a biografias e documentos esquecidos em bibliotecas e arquivos públicos pra falar da vida desses artistas, ela também não poupa a si mesma: ela compara o tempo todo essas vivências com as suas experiências mais solitárias por Nova York, pra poder compor melhor de que cores é feito esse sentimento.

Sentir-se sozinho, a autora conta, não tem muita relação com estar fisicamente sozinho, sem ninguém próximo. É por isso que a solidão na cidade é o tema, e não simplesmente a solidão. A vida urbana, apesar de ser tão densamente povoada pelo contato incessante com os outros, pode ser incrivelmente solitária.

Sentir-se sozinho é estar privado de afeto, de relacionamentos íntimos, de pessoas com quem dividir profundamente o seu cotidiano.

A vida urbana nos faz ficar reservados porque apesar da quantidade de pessoas, ou justamente por conta da quantidade enorme de pessoas, a gente precisa criar uma proteção contra essa avalanche de estímulos que é viver nas cidades. A gente não se relaciona com todo mundo a nossa volta porque isso é impossível. Só dá pra conviver com algumas pessoas, escolhidas a dedo, que tem alguma coisa em comum pra dividir com a gente que seja menos óbvio do que o fato de morarmos no mesmo lugar.

Encontrar quais vão ser os nossos critérios de afinidade, e como vamos achar as pessoas que atendam a esses critérios, qualquer morador de cidade sabe: são questões tremendamente angustiantes, que sempre tentamos responder, mesmo sem estarmos muito conscientes delas.

Talvez justamente por estarmos tão acostumados com a vida urbana, cheia de solidão na sua gênese, a gente nem se dê conta do quanto o sentimento é universal. Quando nos sentimos solitários, Laing escreve, experimentamos uma espécie de hipervigilância de ameaças sociais. Perceber que está sozinho significa ter de dar conta de qualquer coisa que aparecer pelo caminho. Isso faz a gente redobrar o cuidado e inspecionar tudo o que vier pela frente, já que a gente não tem com quem contar.

Só que estar hipervigilante é cansativo. É um estado que exige estar sempre com uma expectativa negativa das coisas, esperando que elas possam dar errado. Pressupõe também que os momentos de rejeição e atritos com os outros fiquem sendo remoídos dentro da nossa cabeça, pra evitar uma nova catástrofe. E quanto mais a gente fica ali tentando digerir esse tipo de acontecimento passado ou antecipando os futuros, mais difícil é encontrarmos companhia. Ficamos assustados, com medo de nos relacionarmos com os outros, e nos isolamos mais ainda.

Não é simples passar por cima desse tipo de sentimento. Eu nunca soube comer sozinha, mas tavez não tenha nada de estranho nisso.

***
 

Não se sentir compreendido, não ter abertura suficiente para falar, não saber como se colocar, se colocar mal, não saber usar as palavras certas, ser interrompido, não ser ouvido, não saber ouvir. Tudo isso são pequenas formas em que a solidão se torna concreta, e que nos lembram do quão imperfeitas são as nossas possibilidades de estar juntos.

É por isso que a gente cultiva a arte, com todas as formas que ela pode assumir, pra tentar expressar o que for necessário sem precisar só de palavras. A gente se apega ao gesto, ao riso, ao toque dos corpos e ao modo como todos eles comunicam o que seria incomunicável de outros jeitos; e a gente se anima com os rituais, aqueles em torno da comida, da bebida, da festa, do calendário. Querer companhia pra comer é querer ser nutrido do que vier dos outros.

A gente ouve por aí que estamos vivendo uma crise de intimidade por conta da internet, do smartphone, e dos dispositivos tecnológicos. Você já viu isso: aquela cena de duas pessoas sentadas à mesa, cada uma completamente obcecada com sua própria central brilhante de entretenimento. Elas estão num espaço público, mas parecem estar isoladas em cabines privadas. Mas a gente erra em achar que qualquer crise de intimidade é causada por esses dispositivos e se esquece de pensar o oposto.

E se só inventamos tudo isso pra poder lidar com nosso desejo de conexão com o outro? A gente já inventou a arte, a festa, os rituais. Nada mais aceitável que continuar tentando. As redes sociais não são a causa dos problemas de intimidade, mas talvez uma consequência da dificuldade que a gente tem de estar junto de verdade. Postar uma foto, compartilhar uma notícia, escrever uma newsletter são manifestações do nosso desejo de não estarmos sozinhos e encontrarmos ressonância.

E por mais que a gente procure pessoas pra comer com a gente ou pra estar com a gente nos smartphones, eu não sei se é possível fazer esse desejo ir embora. A verdade é que a gente fica aí, sempre atrás de mais, pensando em quem convidar pra próxima refeição, pra próxima foto, pro próximo like, pra ler o próximo texto. Nunca nos satisfaz.

Lidar com a solidão não tem a ver com encontrar companhia, mas com estar a vontade na própria pele — inclusive admitindo que o sentimento de estar sozinho é muito difícil. Ser honesto é melhor que disfarçar nossa angústia. Ser honesto nos dá ao menos a chance de nos reconhecermos profundamente uns nos outros pelo sentimento comum que a gente partilha. E é daí que pode surgir a intimidade. Alguém por aí, eu sei, também deve ter sentido isso.

Somos mesmo um bocado sozinhos, mas é sempre muito bom encontrar companhia pra comer.

Sobremesa

  • Sonhos esquecidos é um episódio do podcast Vibes em Análise que chegou até mim por indicação da Roberta Felix, quando comentei das mudanças que alteraram o meu padrão de sono. O podcast vai mais longe e fala sobre algo que vem junto com o sono e que também anda escasso: os sonhos. Muitos de nós nos vemos exaustos, sonhando com dormir infinitamente, pra descansar ou produzir ainda mais. É um sonho estranho. A pergunta aqui é porque deixar de sonhar afeta a nossa vida subjetiva.

  • Um vídeo curto tocante e estranho sobre um homem que limpa a casa de pessoas que morrem sozinhas na Coreia do sul. A regra mais importante que tenho é não julgá-los de forma irresponsável.

Se ficou com vontade de ler A cidade solitária, de Olivia Laing, use um dos links dessa newsletter pra comprar. A indicação é sincera, e esse link é aquele maroto, que me dá uns trocados e ajuda a continuar esse trabalho por aqui <3

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Um enorme abraço,

Carla Soares • OutraCozinha

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As imagens que ilustram essa newsletter são do pintor realista Edward Hopper, famoso por retratar figuras solitárias. Ele é um dos artistas que Olivia Laing investiga em seu livro.

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